Blimunda há só uma. Sim, a tal, a navegadora de passarola, a mesma a quem, por esta altura, pedimos poderes emprestados. O piano que temos diante dos olhos podia bem ser Baltasar. Podia, dizemos bem, o pretérito não podia estar mais imperfeito. Que o diga Joana Sá, pianista que ocupa um aquário distinto dos demais e que o apresenta, esta quinta e sexta no Teatro Maria Matos.
À escuta: o aberto é a paragem terminal de uma trilogia que vem de 2011, quando tocou Through This Looking Glass nesta sala que agora ocupamos, que viria também a ser o palco de Elogio da Desordem, em 2013. Sorte a dela, a da sala, claro, e já agora a nossa, que pela primeira vez presenciamos as entranhas do piano. A céu aberto é vestir a bata e pedir bisturi, que a verdade, assim exposta, pede cesariana, ou no mínimo um check-up completo.
[O “Elogio da Desordem” de Joana Sá no Maria Matos em 2013]
Se no Elogio da Desordem se trabalhava perante um piano preparado – ou seja, um piano onde se instalam uma ferramentas ou objetos para atingir outras sonoridades – “neste solo isso não acontece”, afirma Joana, antes de assegurar que toca “de uma forma bastante mais convencional, embora depois tenha bastante coreografia, o gesto é um elemento central da composição”.
Se acha que este é um daqueles momentos solenes e límpidos – aqueles onde mais nada se encontra do que o pianista, o piano e foco de luz correspondente – desengane-se. Aqui há um cenário, uma enorme preocupação com o estético, daí que o visual importe — e de que maneira. É quase majestosa, digna de teatro real, a instalação de chapas metálicas que enquadram o piano, e por certo Joana Sá, na audiência. E é claro que isto não está por estas bandas por acaso, está ligada ao piano analógica e digitalmente: “Estas placas são todas diferentes e ressoam de formas distintas, não servem tanto para criar ambiente, são mais espaços de ressonância fora do piano, lá está, é a escuta, há que saber ouvir”, explica.
Escutemos, então. Perdemo-nos na profundidade com que Joana Sá pressiona as teclas com o antebraço, é o peso, o corpo como um severo aumento das probabilidades deste instrumento. Com Joana Sá por perto podemos estar certos disso:
“Sim, claro que quero provar que o piano tem mais possibilidades e que nós também. Nós, criadores, artistas. É importante que não estejamos todos a fazer o mesmo. Esta trilogia tem sido essa procura, a primeira peça foi mais focada no piano e nessas possibilidades, um mundo novo, o segundo foi mais um confronto, entre um corpo performativo e o instrumento. Aqui, o foco está sobretudo no corpo”.
A ordem é para deixar o corpo fugir, ganhar membros. A forma como Joana Sá se desdobra é uma dança desordenada. Ou nem tanto: “Não é bem uma dança, é uma coreografia, sinto o movimento como música na hora de compor. Trabalhei a coreografia com o Luís Antunes, bailarino e coreógrafo, que me ajuda a ver de fora, a limar e a consciencializar. É uma proposta artística ousada, sei disso”, confessa.
O piano aqui não foi opção
Um pouco da história de Joana Sá nas teclas: “Comecei a tocar porque tinha um piano em casa e uma bisavó que tocava, não foi assim uma escolha, como o tinha ali… depois tive um percurso bastante clássico. Lá para 2005 ou 2006 descobri outra vida em mim, sempre tive mais apetência por fazer música contemporânea e segui por aí”.
Já falámos das placas ressoadoras de metal, da componente visual da peça, saber mais seria batota, “há coisas que não posso contar”, diz-nos a própria. Com À escuta: o aberto a nossa missão é descobrir à medida que se vê e ouve, mesmo que as coisas não sejam imediatas. “Ainda existe a ideia de que a música é um ideal meio abstrato, tens a ideia na partitura, à qual os intérpretes se esforçam para chegar só que nunca chegam, é tudo uma aproximação, algo platónico, a minha abordagem é exatamente contrária. Componho com o corpo, com o gesto, com os materiais”, contraria a pianista.
Opção, melhor, conquista, foi esta relação duradoura que Joana Sá estabeleceu com o Maria Matos, onde cumpriu esta trilogia e se fez outra.
“Ao início confesso que não foi fácil, mas é normal, não conheciam o meu trabalho. Quando isso aconteceu apoiaram-me sempre e isso dá-me mais confiança, já conheço o palco, as pessoas com quem estou a trabalhar, tocar no Maria Matos é jogar em casa, no fundo”.
No que ao futuro diz respeito, esse pedido sempre teimoso de jornalista, Joana Sá confirma-nos o trabalho; a insistência, a solo, contudo, é para ir com calma: “Tenho muitas coisas próximas a sair, outras encaminhadas, mas não a solo, isso vai ter que esperar, isto não sai género micro-ondas”.
Joana Sá atua no Teatro Maria Matos em Lisboa esta quinta e sexta, dias 13 e 14, às 22h. Bilhetes entre os 6 e os 12 euros.