A orientação já tem três anos. Em 2013, a Direção Geral de Saúde (DGS) recomendou a administração de um suplemento diário de iodo às mulheres em preconceção, grávidas ou a amamentar, mas muitos obstetras recusam a ideia, alegando a inexistência de estudos suficientes que sustentem a necessidade das grávidas fazerem este tipo de suplementação. Já os endocrinologistas alertam para os riscos e perigos da carência de iodo, sobretudo nas grávidas, e também nas crianças.
“As mulheres em preconceção, grávidas ou a amamentar devem receber um suplemento diário de iodo sob a forma de iodeto de potássio – 150 a 200 microgramas por dia, desde o período preconcecional, durante toda a gravidez e enquanto durar o aleitamento materno exclusivo, pelo que deverá ser prescrito o medicamento com a substância ativa de iodeto de potássio na dose devidamente ajustada”. A recomendação que, ao Observador, fonte oficial da DGS garantiu ainda estar válida não podia ser mais clara.
Iodo: o que é e para que serve
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O iodo é um oligoelemento, obtido através da alimentação, necessário para a biossíntese da tiroxina e triiodotironina — duas hormonas da tiróide –, que têm um papel essencial no crescimento e desenvolvimento dos órgãos, sobretudo do cérebro. A carência de iodo é particularmente grave durante o período fetal e até aos três anos de vida porque é nessa altura que se dá o máximo crescimento e desenvolvimento cerebral. O défice de iodo pode causar dificuldades na aprendizagem, bócio, hipotiroidismo e cretinismo.
A Direção Geral de Saúde justifica-a, explicando que, durante a gravidez, as necessidades de iodo “estão aumentadas pelo aumento da necessidade da tiroxina, para manter o normal metabolismo da mulher; pela transferência de tiroxina e iodo para o feto durante a gravidez; e pelo aumento da depuração renal na grávida”. E cita estudos internacionais que demonstram que a suplementação com iodeto de potássio permite atingir os valores recomendados de 250 microgramas por dia e que os fetos dependem “do aporte materno de iodo até às 20 semanas de gestação”.
Garantir que todas as mulheres em situação de risco recebam suplementos de iodo no início da gravidez é um objetivo importante, eventualmente temporário. Idealmente, as mulheres devem ter uma adequada reserva de iodo antes da conceção”, escreve a DGS.
Além desta recomendação, o Programa Nacional de Vigilância da Gravidez de Baixo Risco, publicado em final de 2015, também aborda e reforça a necessidade da suplementação de iodo como um aspeto muito relevante desde a consulta pré-concecional até ao pós-parto.
Contactado pelo Observador, Francisco Carrilho, presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, sublinha a importância desta suplementação, frisando que “o embrião não produz hormonas tiroideias” e que estas “são muito importantes na maturação de áreas do sistema nervoso central”.
83%
Num estudo levado a cabo em 2010, em que foram abordadas 3.631 grávidas de 17 maternidades, concluiu-se que 83% das grávidas não tinham níveis adequados de iodo.
Segundo o especialista, “uma mulher quando engravida tem de produzir cerca de mais 40% de hormonas tiroideias e se não tem iodo suficiente não vai conseguir fazê-lo”. E isso poderá, segundo o especialista, prejudicar o desenvolvimento cognitivo ou comportamental do bebé. Na sua forma mais extrema, o défice de iodo pode mesmo resultar em cretinismo – lentidão nos movimentos, retardamento do crescimento físico e deficiência no desenvolvimento mental. Há estudos que dizem que uma carência moderada de iodo durante o primeiro trimestre de gravidez está associada a uma maior probabilidade de a criança vir a ter um QI (quoficiente de inteligência) mais baixo.
Uma mulher quando engravida tem de produzir cerca de mais 40% de hormonas tiroideias e se não tem iodo suficiente não vai conseguir fazê-lo”, alerta o endocrinologista Francisco Carrilho.
E para sensibilizar as grávidas (e não só) para a necessidade de fazerem suplementação em iodo, o endocrinologista recorda o estudo de 2010, — o único do género feito em Portugal — em que foram analisadas 3.631 grávidas em 17 maternidades de todo o país e cuja principal conclusão é que apenas 17% das grávidas inquiridas tinham níveis de iodo satisfatórios. O pior cenário foi encontrado nos arquipélagos: no caso da Madeira, 92% das grávidas apresentavam níveis inadequados e nos Açores a percentagem de grávidas com níveis insuficientes chegava mesmo aos 99%. Um outro estudo, realizado em 2008 na região do Minho, já tinha identificado bócio em 14% das grávidas daquela região.
90 a 250
Segundo a Direção Geral de Saúde (DGS), baseada em estudos internacionais e na própria Organização Mundial de Saúde, uma criança até aos cinco anos precisa de 90 microgramas por dia, entre os seis e os 12 anos necessita de 120 microgramas e os adolescentes e adultos precisam de 150 microgramas por dia. No caso das grávidas e lactantes as necessidades sobem para 250 microgramas por dia. Ingerir mais de 1.100 microgramas por dia pode ser prejudicial, refere a DGS.
“Estamos no limiar inferior do normal, sendo que nos Açores estamos mesmo abaixo dos níveis”, resume Francisco Carrilho, preocupado, acrescentando que, apesar do estudo, “os colegas de obstetrícia não veem necessidade de suplementar as grávidas”. E isso mesmo confirma Luís Graça, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal.
“Estar a dar iodo puro como medicamento a todas as grávidas é uma aberração“, começa logo por dizer ao Observador o obstetra Luís Graça, explicando que as análises ao iodo são feitas com base no iodo eliminado pela urina e que este “está diminuído pela expansão do volume plasmático” e “como há aumento do volume urinário, as grávidas vão ter necessariamente iodúrias inferiores”.
Estar a dar iodo puro como medicamento a todas as grávidas é uma aberração”, respondeu o obstetra Luís Graça, quando questionado sobre o motivo pelo qual muitos obstetras não prescrevem o suplemento.
O resto da conversa seguiu um rumo muito em torno do ceticismo que os obstetras sentem em relação ao dito estudo feito em 2010. “O artigo feito em Portugal, que baseou a recomendação da DGS, é um artigo único e, além disso, no próprio artigo, há coisas altamente contraditórias. Em segundo lugar não há história de haver em Portugal, salvo em zonas endémicas como Castelo Branco, crianças com cretinismo. E, em terceiro lugar, não é tomado em conta que o iodo passa por um mecanismo ativo, através da placenta, para o feto. E mesmo que os níveis de iodúria sejam baixos os fetos não vão ter défice de iodo. Além de que não há normas internacionais que recomendem a administração eletiva de iodo a todas as grávidas”, argumenta Luís Graça.
“Se este estudo mostrou que cerca de 80% das grávidas têm défice de iodo, temos de concluir ou que o estudo está mal feito ou então se 80% têm níveis baixos isso tem de ser considerado o normal. Preciso de uma contraprova. Além disso, nos Estados Unidos, mesmo com a população a viver em montanhas rochosas e longe do mar têm níveis de iodúria baixos em apenas 10% da população.”
O presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia conclui a conversa, afirmando que “é preciso provar que o feto e o recém-nascido têm carência de iodo. Se assim fosse, e de acordo com este estudo, em Portugal teríamos 80% de atrasados mentais. Isto foi um exagero, a DGS precipitou-se nesta recomendação. Sal iodado, ok, nada contra, agora medicação com iodo a todas as grávidas não.”
Além disso, frisa o obstetra, fica por saber se a suplementação surte mesmo efeito. Segundo um estudo publicado no site do Serviço Nacional de Saúde inglês, na Bélgica as grávidas apresentam níveis baixos de iodo, apesar de 60% tomarem suplementação.
Quase metade das crianças com níveis insuficientes de iodo
E embora um dos grupos de risco seja o das grávidas, a preocupação estende-se às crianças, uma vez que é nas idades mais tenras que a falta de iodo causa mais impacto a nível, sobretudo, cognitivo.
Num estudo levado a cabo em 2011, com uma amostra de 3.680 crianças provenientes de 78 escolas de todo o país, de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os 6 e os 12 anos, chegou-se à conclusão que na totalidade dos casos, há um aporte de iodo no limiar (mediana de 105.5 μg/L), mas que 47% das crianças estudadas tinham valores ligeira a moderadamente insuficientes.
Já mais recentemente, uma equipa do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, divulgou um estudo feito junto de 2.018 crianças, entre os seis e os 12 anos, de 83 escolas do Grande Porto, do Tâmega e de Entre Douro e Vouga. E no Grande Porto 37% das crianças apresentavam carência de iodo.
A investigadora Conceição Calhau, que coordenou este grupo, afirma que “os médicos não estão sensibilizados para isto” e lembra as complicações que a falta de iodo pode trazer para as crianças.
Nesse mesmo estudo, que foi publicado no final de agosto, a equipa denuncia ainda que as 83 escolas monitorizadas ignoraram a indicação dada pela Direção-Geral da Educação, em 2013, de utilizar sal iodado na preparação das refeições escolares.
O cenário ainda é mais negro uma vez que as famílias desconhecem a importância do sal iodado. E não é por se tratar de uma “modernice”.
Todos a favor do sal iodado. Até Salazar
O consumo de sal iodado é uma prática com muitos anos em vários países do Mundo. O sal iodado foi introduzido, pela primeira vez, em 1920, nos Estados Unidos e na Suíça, mas só em 1990 a Organização Mundial de Saúde adotou a sua universalização, como método para eliminar os défices de iodo.
A própria DGS, na recomendação de 2013, refere-se ao sal iodado como uma alternativa aos suplementos. “A iodização universal do sal pode eliminar a necessidade de suplementação específica na gravidez e lactação. A utilização de sal iodado (20 a 40 miligramas de iodo por quilo de sal) é uma prática corrente e segura e cobre 2/3 da população mundial”, lê-se na recomendação.
Mas não é a primeira vez que em Portugal se fala neste sal. No passado não só foi sugerido como foi mesmo imposto por Salazar, no concelho de Oleiros, pela incidência de bócio, de forma endémica, naquela região.
Segundo um estudo publicado no Reino Unido em 2014, em 13 países o sal iodado era de consumo obrigatório e em 21 não há qualquer obrigatoriedade. Ou seja, pelo menos 400 milhões em todo o mundo, naquele ano, não tinham acesso a este produto. E mesmo entre aqueles que consomem este tipo de sal, há uma grande diversidade. Na Suíça, por exemplo, 80% da população consome sal iodado mas, no Reino Unido a taxa não ultrapassa os 5%.
Ganhar iodo à mesa
O sal iodado é uma grande ajuda, mas a ingestão de iodo é conseguida através de uma alimentação equilibrada e rica em peixe. O Instituto Ricardo Jorge, num relatório preliminar, publicado em setembro deste ano, onde explora a quantificação de iodo em alimentos consumidos em Portugal, conclui — após a avaliação de seis grupos de alimentos – que o grupo do pescado (marisco, bivalves e peixe) é o que apresenta maiores concentrações de iodo, com um valor médio de 114 microgramas de iodo por 100 gramas de produto, seguido dos lacticínios, com valores médios de 22 microgramas por 100 gramas.
Em suma, conclui o INSA, “os resultados permitem concluir que em Portugal uma alimentação rica em pescado e lacticínios supre a dose diária adequada (150 microgramas por dia) para adultos saudáveis, não gestantes”.
Questionada sobre esta questão da alimentação e sobre se tinha sido possível identificar um perfil de hábitos alimentares junto das crianças com níveis mais baixos de iodúria, Conceição Calhau diz que “não foi objetivo da equipa saber quais as fontes alimentares do iodo”, mas “foram feitas algumas perguntas sobre alimentação e as crianças que tinham mais deficiência de iodo bebiam menos laticínios”.
Já Francisco Carrilho, presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, tem dúvidas de que só a alimentação chegue. “A nossa ideia é a de que a nossa alimentação não é o suficiente.”
Problema de carência de iodo tem vindo a melhorar no Mundo
A carência de iodo não é de hoje e já foi bem mais problemática. Em 2003, de acordo com um estudo publicado pela Organização Mundial de Saúde, havia 54 países com carência de iodo identificada — no Mundo, um terço da população tinha défice de iodo –, em 2007 esse número caiu para 47 e em 2011 havia 32 países com défice de iodo, 11 dos quais na Europa, segundo um estudo publicado no National Center for Biotechnology Information, do Serviço Nacional de Saúde britânico.