Estes são tempos de contagem decrescente até ao Natal, não há volta a dar. E, por isso mesmo, é uma temporada fértil em novos discos, lançamentos que merecem a nossa atenção. Mas a verdade é que qualquer altura é boa para exercícios de memória. Vai daí, escolhemos cinco discos que, por serem inesperados, pioneiros ou quase únicos, merecem ser recordados para que não fiquem apagados no calendário. Se há mais álbuns que entram neste campeonato? Claro que há. Mas esta é um lista ingrata, como as listas se querem. Ora cá estão eles:
Ágata: “Amor Latino”
Todos a conhecemos, provavelmente desde que lançou o seu segundo disco. Sim, tem aquela canção: “Maldito amor que me enlouquece, às vezes parece que fazes bruxedo”. Chama-se Perfume de Mulher e enfeitiçou Portugal, permanecendo no top de vendas durante mais de 50 semanas. Mas, antes de se tornar um fenómeno nacional, a cantora explorava outras sonoridades. Fernanda de Sousa — é este o nome verdadeiro de Ágata — participou no Festival da Canção de 1981 com as Cocktail, girl band em que entrou na sua fundação, em 1977, com 17 anos, e no Festival da Canção de 1982 em nome próprio, onde conseguiu um 3º lugar. Ainda chegou a fazer parte das Doce no último ano do grupo, substituindo Lena Coelho, que estava grávida. Sim, também fez muitas outras coisas antes de ser coroada “Rainha do Pimba”, como cantar o genérico da série de desenhos animados “Abelha Maia”. Mas estes momentos antes de ter adotado o alter-ego Ágata explicam melhor o seu primeiro disco “Amor Latino”.
[Ágata a cantar com as Cocktail num programa da RTP. Tinha apenas 17 anos]
https://www.youtube.com/watch?v=q7nRwY90U5c
Antes de subir ao trono, a “rainha” espreitava sonoridades mais eletrónicas, aproximando-se do italo-disco mas numa abordagem com sotaque português, sobretudo através dos meios técnicos, mais rudimentares e que rapidamente haveriam de se aproximar do “pimba”. Tudo com teclados que permitiam aos artistas compor as músicas e tocar todos os instrumentos, mesmo que com sons pouco convincentes.
Em 1989, já como Ágata, Fernanda de Sousa lançou o seu álbum de estreia chamado Amor Latino. O disco tinha sido antecedido dois anos antes, em 1987, por um duplo single: “Quentinhas e Boas” e “Mexe-te Mais Um Pouco”. Ouça o lado B. Acredite ou não, esta é mesmo a Ágata.
Tantra: “Mistérios e Maravilhas”
Em 1977 lançavam o seu disco de estreia, Mistérios e Maravilhas. Enquanto outras bandas faziam versões de bandas de rock progressivo — o som na moda da altura, que já estava em declínio no estrangeiro — como os Yes, Genesis ou Pink Floyd, os Tantra insistiram em ser uma banda de originais. Naquela época parecia impossível ter sucesso sem tocar versões ou sem o “nacional-cançonetismo”. Apesar disso, nunca se comprometeram, não tocaram música dos outros e conseguiram ter (algum) sucesso. Conseguiram gravar um álbum de estreia, foram, muito provavelmente, a primeira banda portuguesa a ter pirotecnia em palco e a primeira banda de rock português a tocar no Coliseu dos Recreios. Apenas um ano após o primeiro concerto do grupo e a lotação estava esgotada, 5 mil pessoas. Duas noites consecutivas.
Alguns membros dos Tantra passaram por outros grupos conhecidos. Armando Gama — sim, esse mesmo — fundou a banda com o vocalista, Manuel Cardoso, que mais tarde foi conhecido por Frodo — e no final dos anos 70 poucos conheciam os livros do Senhor dos Anéis. Armando Gama acabou por abandonar o grupo pouco depois do primeiro disco e de ter conhecido Cristiana Kopke, com quem formou o Duo Sarabanda. Foi substituído por Pedro Luís Neves, que mais tarde viria a fundar os Da Vinci e a compor a música vencedora do Festival da Canção de 1989, “Conquistador”. Junto com Manuel Cardoso, produziu Tutti-frutti, o último álbum das Cocktail. O baterista Tozé Almeida, acabou por trocar os Tantra pelos Heróis do Mar, com quem dividiam a sala de ensaios.
A banda acabou por se render ao som New Wave que marcou os anos 80, tal como fizeram os Genesis de Peter Gabriel. Manuel Cardoso ainda lançou disco a solo enquanto Frodo, mas sem o sucesso de outrora.
https://www.youtube.com/watch?v=BpRKZ8zrbKk
Kriskopke: “La Nuit Americaine”
Nunca ouviu falar? É normal. Cristiana Kopke desapareceu de cena algures nos anos 80, quando foi morar para o Brasil. Se não conhecer o seu trabalho a solo, é a tal cantora que formou com Armando Gama os Sarabanda, quando ele saiu dos Tantra. Conheceram-se quando Cristiana passava férias no Algarve e os Tantra tocaram lá. Apaixonaram-se e uniram-se também musicalmente. A sonoridade dos Sarabanda contrastava com o rock progressivo dos Tantra, com o seu folk-pop aveludado. Chegaram a participar no Festival da Canção de 1980 com a canção “Made in Portugal” mas ficaram depois de Lena D’Água e de Helena Isabel na semifinal e não conseguiram o apuramento.
Quando terminou o romance também terminou o Duo Sarabanda. Deixaram para trás um disco, o Export, e dois singles, “Um amor” e o “Made in Portugal”. Tocaram por todo o país. A editora, encantada com Cristiana, manteve o interesse em trabalhar com ela e lançar um disco a solo. Queria fazer algo fresco e moderno, por isso convidaram Carlos Maria Trindade para produzir. O resultado é La Nuit Americaine, um dos melhores exemplos de synth-pop nacional e um dos primeiros. O disco tinha apenas quatro temas. Duas destacaram-se nos media portugueses. “La Nuit Americaine”, que é também título de um filme de François Truffaut, é inspirado por sonoridades latinas, como o tango, e o vídeo chegou a passar na RTP — o único canal de televisão na altura. A outra canção a destacar tocou muito nas rádios em 1982. Chama-se “Kodak”, calão utilizado por Cristiana Kopke para descrever um momento único ou bizarro. Depois do disco, fartou-se da indústria e abandonou o país.
Carlos Maria Trindade & Nuno Canavarro: “Mr. Wollugallu”
Carlos Maria Trindade é conhecido por diferentes razões: foi teclista dos Heróis do Mar, produziu discos clássicos da música portuguesa como o Circo de Feras dos Xutos e Pontapés, Dar & Receber de António Variações ou o Libertação dos Delfins, faz parte dos Madredeus e muito mais. Internacionalmente, a razão pelo qual é mais conhecida é outra. Trata-se do disco de música ambiental que fez com Nuno Canavarro, músico que tocou nas bandas Street Kids e Delfins. Nuno já tinha mergulhado na música experimental e tinha lançado 3 anos antes Plux Quba, também um clássico. Em 1991, ambos moravam em Cascais e conversavam muito sobre conceitos musicais. A ideia veio de Carlos Maria Trindade, que apreciava o estilo musical de Nuno Canavarro. Conhecia-o desde os Street Kids, grupo onde tinha vários amigos. Convidou-o para esta aventura eletrónica de sintetizadores, sem voz. Nuno gostou da ideia.
Juntavam-se diariamente das 9 às 5 como se fosse um trabalho de escritório. Apresentavam ideias e compunham. Passados 5 meses tinham um disco criterioso, tanto que metade do que criaram nunca foi gravado. Dividem as composições do disco, que ambos produziram e trabalharam. Ganhou algum hype internacional e ao longo dos anos foi conquistando as atenções de muitos DJs internacionais, que usam o disco em compilações e mixtapes. Um crescente fenómeno que justifica a venda deste disco por €450 euros na internet.
Tó Neto: “Láctea”
Tó Neto — Anthony Eduardo Benedy Neto — é uma espécie de Jean-Michel Jarre português e foi assim chamado muitas vezes por estes lados. Quando lançou o seu primeiro disco, Láctea, já o artista francês entusiasmava Portugal (pelo menos) desde o álbum Oxygene, de 1976. Não quer dizer que copiasse a sonoridade do francês, simplesmente não havia muitos discos populares feitos de sintetizadores na altura e foi a referência mais óbvia que os fãs encontraram. O disco de Tó Neto, lançado em 1983, foi muito importante: não foi o primeiro a usar sintetizadores, mas foi o primeiro longa duração a fazer uso exclusivo destas máquinas. O que esperar quando ouvir este disco? Ambientes espaciais, retro-futurismo e muitos sintetizadores. Ainda se nota a influência da escola do rock progressivo, mas de outra uma perspetiva.
A apresentação do disco certamente terá sido cósmica: uma série de concertos no Planetário Calouste Gulbenkian. Apesar deste sucesso, uns meses antes do lançamento as coisas não pareciam tão risonhas para o músico. Em entrevista para ao semanário Êxito, em 1985, desabafou: “Já passámos fome para nos aguentarmos. Durante três meses, enquanto preparávamos o primeiro LP, num estúdio montado numa quinta, dormíamos em sacos-cama entre os amplificadores, já não podíamos ver fios à frente. Mas, se nos sentirmos músicos, não podemos desistir”. Tó Neto tocou o disco até morrer, em 2013.