Foi uma das notícias do dia: a Justiça brasileira quer que Duarte Lima seja julgado em Portugal como o único responsável pela morte de Rosalina Ribeiro, ex-companheira e herdeira do milionário Lúcio Feteira, ocorrida em dezembro de 2009. A notícia é do jornal i e diz respeito a uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que determinou o envio do processo para Portugal para a realização do julgamento da acusação formal pelo crime de homicídio que o Ministério Público produziu a 27 de outubro de 2011 contra o ex-líder parlamentar do PSD. Lima foi acusado de ter sido o autor dos disparos que mataram Rosalina, 74 anos, na localidade de Saquarema.
A concretização desta transferência será inédita mas levanta 7 perguntas essenciais que o Observador vai responder com a ajuda dos advogados Paulo Saragoça da Matta e Rui Patrício.
Pode ser feito o julgamento em Portugal?
Sim. O Código Penal português aplica-se a factos praticados fora do território nacional. De acordo com a alínea b do número 1 do artigo 5.º, “salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional (…) contra portugueses por portugueses que vivem habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados”. Isto é, Rosalina Ribeiro era uma cidadã portuguesa que alegadamente, segundo a acusação do Ministério Público brasileiro, terá sido assassinada por outro cidadão português (Duarte Lima) que, na altura dos acontecimentos, vivia — e continua a residir — em Portugal.
Por outro lado, as restrições à aplicação da lei nacional, ainda de acordo com o Código Penal, a factos semelhantes ao caso Rosalina Ribeiro só se aplicariam se, por exemplo, Duarte Lima já tivesse sido julgado no Brasil pelos mesmos factos. O que não aconteceu.
“Não tenho dúvidas que a lei portuguesa viabiliza este julgamento”, afirma Paulo Saragoça da Matta.
“Do ponto de vista de Portugal, a Lei da Cooperação Judiciária Internacional prevê expressamente esta possibilidade («delegação do procedimento penal nas autoridades judiciárias portuguesas») e a Convenção da CPLP em matéria de Auxílio Judiciário em Matéria Penal, embora não a regule expressamente, não a exclui e a mesma pode caber na cláusula geral de «outras formas de cooperação acordadas entre os Estados, nos termos das respetivas legislações», assegura, por seu lado, Rui Patrício.
O advogado do escritório Morais Leitão acrescenta ainda que “esta é uma figura que, tal como outras, algumas legislações e tratados preveem para tentar evitar situações de impunidade. Nem todas as legislações vão por estes caminhos, mas a nossa é nesta matéria muito ampla”.
“Este tipo de situação é possível e está previsto nos termos legais e convencionais, aliás na lei portuguesa até com bastante desenvolvimento; tem obstáculos e dificuldades (nenhum à partida insuperável, mas depende da análise da legislação de cada país envolvido e das circunstâncias e dos elementos do caso concreto)”, diz Rui Patrício.
Porque não pode Duarte Lima ser julgado no Brasil?
O ex-dirigente do PSD pode ser julgado no Brasil mas o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro entende, concordando com o Ministério Público local, que o cumprimento da pena no caso de uma eventual condenação será sempre prejudicada pelo facto de Duarte Lima sempre ter recusado regressar a terras brasileiras desde que foi dado como suspeito do homicídio de Rosalina Ribeiro.
Ou seja, a lei penal brasileira, como a portuguesa, permite o chamado julgamento à revelia — isto é, sem que o réu esteja fisicamente presente no território da jurisdição que o está a julgar. Sendo igualmente certo que qualquer pena decretada por um tribunal de um julgamento com essas características nunca é executada.
Por tudo isto, a Justiça brasileira quer que seja um tribunal português a julgar Duarte Lima.
O que vai acontecer agora?
De acordo com o jornal i, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ordenou a remessa dos autos do processo para a Secretaria de Cooperação Internacional do Gabinete da Procuradoria-Geral da República (PGR). Será este departamento da cúpula do MP, localizado em Brasília, que tratará da transferência do processo para Portugal.
A primeira análise que a PGR do Brasil terá de fazer é verificar se os tratados de cooperação judicial assinados entre o Brasil e Portugal preveem esta possibilidade. Se isso não se verificar, terão de ser estudados os mecanismos internacionais de cooperação judiciária para perceber como pode ser executada a ordem do tribunal do Rio de Janeiro.
Como se processa a transmissão do processo para Portugal?
Inevitavelmente, a PGR do Brasil terá de dar o pontapé de partida, acionando os mecanismos de cooperação judiciária internacional e dirigir um pedido formal à sua congénere portuguesa liderada por Joana Marques Vidal. Serão as duas cúpulas do respetivos titulares de ação penal de cada país que tratarão, em primeiro lugar, de chegar a um acordo sobre a transmissão do processo. Tendo em conta a natureza original desta situação, é expectável que o caso obrigue à comunicação direta entre a procuradora-geral Marques Vidal e o procurador-geral Rodrigo Monteiro de Barros. Os dois encontraram-se outubro em Lisboa no âmbito do “Encontro de Procuradores-Gerais da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa” organizado pela PGR de Portugal.
Quais são os principais obstáculos?
A validação da prova é o primeiro grande obstáculo. Isto é, toda a prova reunida pelo MP do Brasil terá de ser validada pelos tribunais portugueses à luz do Código de Processo Penal nacional. Depoimentos de testemunhas ou de peritos, relatórios periciais, escutas telefónicas, entre outro tipo de provas — tudo terá de passar pelo crivo de um tribunal português para ser verificada a sua validade de acordo com a lei portuguesa.
“É preciso satisfazer as condições de validade da lei portuguesa e, por outro lado, não é fácil garantir a operacionalidade, a produção e a eficácia de alguns meios de prova num país quando se estão a averiguar alegados factos passados noutro”, explica Rui Patrício.
Um exemplo: a lei nacional obriga que os relatórios periciais sejam sujeitos a contraditório. Caso Duarte Lima nunca se tenha pronunciado sobre as provas, isso terá de ser feito em Portugal antes do julgamento se iniciar. Estas é apenas uma entre muitas outras situações que se colocarão e que derivam das diferenças que existem entre as regras processuais portuguesas e brasileiras.
Essa validação da prova pode ser feita qualquer tribunal nacional — até mesmo pelo tribunal que eventualmente julgue Duarte Lima. Este, por seu lado, terá sempre direito a exercer o contraditório e tentar anular qualquer prova que entenda como proibida à luz da lei portuguesa.
Outro exemplo prático para o caso do julgamento se verificar: como serão ouvidas as testemunhas brasileiras? Por vídeo-conferência ou presencialmente? Esta é uma questão relevante pois a esmagadora maioria das testemunhas e peritos têm nacionalidade brasileira.
A vídeo-conferência é permitida pela lei portuguesa mas sempre em casos excecionais. Não é comum que um juiz autorize que um grande número de testemunhas possa estar ausente da sala de julgamento e ouvida à distância por meios tecnológicos. Tudo em nome do princípio da imediação da prova, explica Paulo Saragoça da Matta. Isto é, a prova testemunhal tem de ser produzida presencialmente na sala de julgamento para que o juiz ou o coletivo de juízes possa aferir a sua credibilidade, nomeadamente a linguagem verbal e corporal das testemunhas ou do réu.
Um terceiro exemplo prático: os magistrados brasileiros que estão por dentro do processo, podem estar no julgamento em Portugal? Como representantes da acusação, claramente não. Por uma questão de soberania, o titular da ação penal é o MP português representado através dos seus magistrados. Contudo, pode verificar-se a situação de o tribunal autorizar que o MP nacional seja assessorado por um magistrado brasileiro.
Uma questão é perfeitamente clara: o julgamento decorrerá de acordo com o Código de Processo Penal e o Código Penal portugueses. Poderá ocorrer, eventualmente, de se aplicar alguma regra brasileira que seja mais favorável ao réu.
Como podem ser ultrapassados?
De acordo com Paulo Saragoça da Matta, a forma mais eficaz de ultrapassar estes obstáculos será a PGR de Portugal encarar a comunicação que será feita pela sua congénere brasileira como um auto de notícia. Isto é, como uma denúncia. O que obrigaria a que fosse aberto um inquérito criminal de raiz em Portugal.
Quais são as vantagens? Várias:
- possíveis nulidades da prova recolhida no Brasil ficavam logo resolvidas, permitindo assim um julgamento muito mais célere e com prova ‘limpa’ de qualquer problema;
- as testemunhas e peritos brasileiros poderiam ser ouvidos em fase de inquérito logo em registo de memória futura perante um juiz de instrução criminal. O que significa que essas declarações valeriam de imediato em julgamento, ficando as testemunhas dispensadas de vir a Portugal;
Mas este será sempre um processo complexo — ou de “‘operações’ jurídicas complexas, e obriga a lidar com duas legislações”, como diz Rui Patrício.
O essencial é “a satisfação dos princípios gerais e das regras processuais penais da lei portuguesa, pois é esta que se aplica ao processo. Quanto à eventual punição aplica-se também a lei portuguesa, exceto se a lei do país que pede a cooperação for mais favorável”. O que pode levar às tais “questões jurídicas complexas”.
Duarte Lima pode tentar impedir o julgamento em Portugal?
Sim, claro. É seu direito opor-se a essa decisão da justiça brasileira, tendo em conta que os recursos ainda não estão esgotados. O ex-líder parlamentar do PSD anunciou esta tarde de sexta-feira, através do seu advogado no Brasil, que vai apresentar recurso no Supremo Tribunal Federal. Mesmo que perca, e caso se verifique a transferência do processo, Lima vai ter o direito de contestar em território nacional essa transferência que tem a sua oposição desde o início.
Uma coisa parece certa: apesar do crime ter ocorrido em 2009, não se coloca, para já, qualquer questão prescricional. Por exemplo, o crime de homicídio simples tem uma pena em Portugal que pode variar entre os 8 e os 16 anos de prisão, sendo que o prazo prescricional máximo atinge os 20 anos.