Há quem saiba tudo sobre a saga Star Wars. E há quem saiba pouco ou nada. Faço parte do segundo lote e foi por um triz que o anúncio da morte da Leia não me remeteu para o conglomerado editorial com sede em Alfragide. Afinal não é o excelente catálogo da Caminho que está em causa mas sim o desaparecimento de uma das figuras mais icónicas da cultura popular do século XX e posteriores. Num ano em que o Império tem contra-atacado de forma mortal as estrelas mais ligadas à música, a morte de Carrie Fisher corre o risco de ser tratada como nota de rodapé da história do entretenimento, o que é mais injusto do que ver a Death Star estacionada em segunda fila numa rua de Alfama em Lisboa quando o eléctrico quer passar.

Até um leigo em Star Wars (nota mental: não é nesta saga que entra o Doutor Spock) sente algum pesar quando nos despedimos de uma actriz e de uma personagem que se lhe colou à pele, tornando-se inspiradora para milhares de espectadores de cinema. Fisher foi mais do que uma princesa rebelde, uma espécie de heroína feminista with a cause com um penteado que remete para os nativos de Áries. Trabalhou como actriz, argumentista, escritora, dramaturga e produtora e reflectiu repetidamente e de forma ácida sobre a indústria de Hollywood e sobre a sua própria participação numa feira de vaidades que acabou por potenciar os problemas para os quais ela própria pendia: o abuso de drogas, com e sem receita, a instabilidade emocional e mental, a inquietação permanente.

Trabalhou com Woody Allen em “Ana e as Suas Irmãs” e escreveu uma autobiografia cujo título diz tudo sobre a sua sageza e a sua capacidade de auto-imolar-se em benefício da transparência: Wishful Drinking. O mais dramático é que Carrie Fisher acaba por sair de cena aos 60 anos (jovem, muito jovem), o que faz com que seja a primeira personagem de referência da saga a desaparecer para sempre. Isto numa altura em que o universo Star Wars ganha novo fôlego, depois da estreia de “O Despertar da Força” em 2015. E o problema é que a Princesa Leia era um dos poucos pontos de contacto entre alguém que não é fã deste mundo povoado de naves e merchandising e esse mesmo mundo. Parece confuso? É. Mas explico-me.

O que se passa é que a personagem de Carrie Fisher era solidamente humana num cenário de bicharada que nunca foi a minha praia: de Jabba the Hutt ao gorgolejo de Chewbacca, dos Ewoks fofinhos aos robôs com sotaque de Eton, do mestre Yoda — uma espécie de Topo Gigio mais desenvolto — àquele ser com orelhas ondulantes estreado no episódio I, nunca houve grandes razões para aprofundar a minha empatia com a série. Sim, o Luke Skywalker aparenta ser humano mas é filho de uma qualidade de demónio asmático que nunca deixa cair a máscara nem as luvas e nesse particular sempre simpatizei mais com o Artur Semedo. Já o Han Solo sobreviveu a uma espécie de criogenia, sem demonstrar efeitos secundários relevantes, e mantém-se sardónico quando tudo corre mal, o que só prova que pertence a outra espécie.

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Como tal, e considerando, tal como o tunisino Terêncio, que nada do que é humano me é estranho, era pela Princesa Rebelde que eu mantinha a maior das simpatias. Por ser uma diplomata, uma guerreira, uma estranguladora impiedosa, uma espia, uma mulher zangada e feroz, um ícone pop, uma sexy lady em biquíni dourado, uma rebelde capaz de pegar em armas, uma sedutora capaz de arriscar um desfecho como o d’Os Maias durante o filme “O Império Contra-Ataca”, ao beijar de forma, digamos, sôfrega, o próprio irmão. Situação que George Lucas resolveria mais tarde, enrolando o penteado de Leia na personagem de Harrison Ford.

Uma coisa é certa. Mesmo por interposta pessoa, ou personagem, Carrie Fisher conseguiu construir uma relação duradoura com várias gerações de fãs, dos mais indefectíveis aos não-praticantes, atravessando décadas e mantendo uma frescura assinalável numa era vocacionada para o descartável e para a substituição sucessiva de ídolos, sem remorsos nem pestanejares. Convenhamos, não é uma qualquer Xena, a Princesa Guerreira que vai substituir no imaginário da ficção uma personagem com a força e a densidade de uma Leia Organa. Lutadora contra um Império do Mal que faz com que o Daesh pareça um coro de igreja e Mestre Jedi. Guerrilheira e Chefe de Estado. Líder política e promotora do female empowerment, como dizem os americanos. Longa vida à Princesa Fisher. Como diria Yoda, muito mais pobre o futuro é.

Pedro Vieira é consultor da Booktailors, pivô de televisão e ilustrador relutante