Foi a melhor homenagem que o Parlamento podia ter dado a Soares: política e pluralismo, mas sem faltarem as críticas ao homenageado. Na sessão evocativa de homenagem, realizada esta quarta-feira na Assembleia da República, houve unanimidade a lamentar a morte, mas divergência no elogio ao legado. Mais do que obituários elogiosos houve statements políticos. A bancada do PCP aprovou o voto de pesar, levantou-se, mas foi mais-do-que-tímida a aplaudir e aproveitou para deixar claro que não lhe perdoou o 25 de novembro de 1975 nem a adesão à CEE. O CDS deu voz aos retornados que criticam uma descolonização “apressada”.

O funeral já tinha sido. Era agora tempo de homenagear, mas sem abdicar de uma frontalidade à Soares. A família Soares (a filha Isabel e os netos) assistiu da galeria à cerimónia, à exceção do filho João que ocupou o lugar de deputado. Foi de lá que ouviu as críticas comunistas ao legado do fundador do PS.

O líder parlamentar do PCP explicou que seria “hipocrisia política esconder as divergências que existiram entre Mário Soares e o PCP“. João Oliveira começou por dizer que Soares “convergiu com o PCP na luta contra o fascismo, pela liberdade [e] pela democracia”. No entanto, pelas “razões reais” e não por “efabulações construídas no processo de revisão da História”, o PCP “divergiu profundamente de Mário Soares”. E essa divergência é “pelo papel destacado que este assumiu no combate ao rumo emancipador da revolução de abril e de muitas das suas conquistas, incluindo a soberania nacional.” Ou seja: por apoiar o 25 de novembro de 1975, que pôs fim ao gonçalvismo e ao único período da história de Portugal em que o país foi governado pelos comunistas.

Mais tarde, a intervenção de Luís Montenegro fazia uma defesa (e um elogio) de Soares neste preciso ponto, tendo o líder parlamentar do PSD lembrado que Mário Soares em 1975 “combateu o fanatismo ideológico e totalitarismo programático que alguns desejavam.”

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Mas as críticas do PCP não se ficaram por ali. João Oliveira lembrou que os comunistas continuam hoje a ser “oposição a um conjunto lato das suas ideias e posições, cujas consequências permanecem e, em alguns casos agravam, os problemas nacionais com um balanço que está longe de poder ser feito.” Desde logo, continuou o comunista, “pelas consequências da adesão à então CEE, em que assumiu responsabilidade destacada.”

João Oliveira lembrou, numa alusão à pertença à União Europeia, que o que “em muitos casos é destacado por uns, como elogios da ação de Mário Soares, é por muitos outros sentido como prejuízo causado por expectativa frustrada.” Um aviso à navegação: o PCP reconhece o papel de Soares na construção da democracia, mas não lhe fará elogios entusiásticos. Após a aprovação do voto de pesar, a bancada do PCP levantou-se toda, mas só três deputados ensaiaram timidamente palmas (o líder Jerónimo de Sousa manteve os braços para baixo, tal como o líder parlamentar).

O retorno à casa torna

Mário Soares também não se livrou de críticas do CDS, que também aproveitou o momento para enaltecer o 25 de novembro de 1975. O líder parlamentar do CDS começou por elogiar a “coragem e a lucidez política” que Soares demonstrou ao opor-se a “toda e qualquer tentativa de transformar uma revolução democrática noutra de cariz contrário em nome de uma ideologia totalitária que a História fez ruir mais tarde”. E completou, em mais uma provocação ao PCP:

Se Portugal não se transformou então numa ditadura em muito se deve a Mário Soares”.

Nuno Magalhães lembrou , no entanto, que não pode ser negado que “tantas vezes” o CDS esteve em desacordo com Mário Soares. O líder da bancada centrista criticou então o “processo de descolonização apressado” e que “trouxe sofrimento a milhares de portugueses que não tiveram qualquer responsabilidade na teimosia do Estado Novo em não reconhecer a tempo e horas o direito à autodeterminação de povos que hoje são Estados independentes e países irmãos.”

Guterres na ONU também é efeito Soares

O líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, também não deixou de destacar que foram adversários: “Na bancada social-democrata, divergimos muitas vezes de Mário Soares.” E mais: “Divergimos até ao fim”. Ainda assim, destacou Luís Montenegro, “nunca nos separámos dele daquilo que era o povo fulcral no seu combate: evitar qualquer tipo de ditadura, defender a democracia, a interdependência dos poderes soberanos e o primado do poder político face ao poder económico. Por isso estivemos com ele em 1974 e 1975.” Mais uma vez, o 25 de novembro a ser lembrado no hemiciclo.

Montenegro disse ainda que “esta casa [o Parlamento] era a cara dele.” Dele, Mário Soares. O deputado do PSD afirmou ainda “mais do que qualquer vitória eleitoral, a vitória de Mário Soares foi nunca ter desistido de lutar” pela democracia.

O líder da bancada do PSD lembrou ainda a “rede de partilha de influência internacional” criada por Soares, que considerou “decisiva para a sociedade portuguesa” e para o destaque os portugueses tiveram no mundo. Deixou uma pergunta, onde sugeriu influência de Soares no prestígio internacional que deu a Portugal: que democracia “tão jovem fez eleger um presidente da comissão europeia e agora um secretário-geral das Nações Unidas?“.

Perfeito e imperfeito, desafiou o príncipe de Maquiavel

Ainda com António Costa na Índia, coube ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, falar em nome do Governo. Nessa intervenção, Santos Silva optou por enumerar as conquistas do Portugal democrático, onde incluiu, por exemplo, a possibilidade de “afastar governos por meios pacíficos” ou a defesa da “prevalência do poder político sobre os poderes económicos”.

O ministro lembrou que a “democracia é um combate permanente” e defendeu o Portugal europeu que começou a ser construído no Mosteiro dos Jerónimos, quando Soares assinou o tratado de adesão em 1985. O governante terminou, por isso, desta forma: “Combater o isolacionismo e o obscurantismo. Isto nos ensinou Mário Soares. E, por isso, lhe devemos tanto. Do fundo do coração, obrigado Mário Soares.

O líder parlamentar do PS, Carlos César, destacou a forma como Mário Soares projetou Portugal no mundo. “Não me recordo de alguma vez ter ouvido Mário Soares a definir Portugal como um país pequeno (…) nunca pertenceu à categoria dos dirigentes que diminuem o nosso país para justificarem a mediocridade da sua própria ação”, atirou o socialista.

Numa alusão à obra de Maquiavel, César disse ainda que “Mário Soares desafiou as regras do Príncipe na política. Foi perfeito e imperfeito. Foi ousado e cometeu imprudências. Apostou e ganhou. Apostou e perdeu. Foi fraterno e foi difícil. Nunca foi, porém, desinteressante e muito menos irrelevante”.