O Governo não vai poder contar com o PCP e com o Bloco de Esquerda (BE) para regulamentar a Uber e a Cabify. Ou, pelo menos, não como quer. A proposta de regulamentação que versa sobre os veículos descaracterizados (TVDE) — que já foi aprovada em Conselho de Ministros e está agora para ter discussão agendada na Assembleia da República — merece a “discordância” dos comunistas e leva o BE a querer avançar com uma “iniciativa legislativa própria”. Quem decide então a regulamentação? O PSD. Contactado pelo Observador, o ministro do Ambiente, João Matos Fernandes – que tutela a área -, não quis comentar.
Uma fonte do Governo assumiu ao Observador que se o PSD for coerente vota ao lado do Governo contra a esquerda, não admitindo que se repita o cenário que se está a viver em relação à redução da Taxa Social Única (TSU). Quer isto dizer que o Executivo tem, outra vez, os parceiros contra si. E está nas mãos do PSD aprovar um diploma, que neste caso é essencial para a área dos transportes.
Para Bruno Dias, deputado do PCP, não há dúvidas sobre o futuro da proposta de regulamentação do Governo. “Não se pode aceitar uma lei que é feita como se fosse um fato à medida para uma multinacional“, diz ao Observador. O deputado, que já tinha questionado a ministra da Administração Interna sobre a ausência da fiscalização da PSP aos carros que prestam serviço para a Uber e a Cabify — no âmbito da lei publicada em Diário da República a 21 de novembro, que aperta as coimas sobre o serviço de transporte em táxi ilegal e que nasce de uma proposta do PCP –, sublinha que “a proposta, assim como está, merece discordância“.
Heitor Sousa, do BE, acrescenta que a proposta do PS levanta “algumas reservas e críticas”. Quais? As suficientes para que os bloquistas queiram avançar com uma proposta legislativa própria.
Esta proposta de lei está construída sob um conceito com o qual não estamos de acordo e onde parece existir divergência com o Governo. É uma coisa quase estrutural: o Governo acha que o serviço de transporte em veículo descaracterizado e nós achamos que isto é um serviço de táxi. A única diferença é o veículo estar descaracterizado, mas, no resto, é equivalente ao serviço de táxi. É um aluguer individual, onde há um veículo que é transportado por um profissional, um percurso definido e onde as pessoas pagam uma tarifa”, diz.
A “geringonça” está, então, desacertada. E tudo indica que o PS vai precisar do voto do PSD para conseguir aprovar a proposta de regulamentação que está em cima da mesa. A expetativa do Governo é, exatamente, que os sociais democratas viabilizem aquilo que a esquerda se prepara par chumbar, uma espécie de novela da TSU, parte II. Entretanto, a comissão parlamentar de Economia vai elaborar um parecer à proposta de lei do Governo em breve, sabe o Observador. O documento é da responsabilidade do PSD e o objetivo do partido é que o parecer seja aprovado por unanimidade.
Para o Governo, a necessidade de regulamentar o serviço de transporte em veículos descaracterizados passa por exigir aos motoristas da Uber e Cabify que sejam titulares de um certificado de motorista (que tem de passar pelo IMT e é válido durante 5 anos); que tenham carta de condução há pelo menos três anos; que frequentem um curso de formação de 50 horas (que pode ser dispensado se já tiver certificado de motorista de táxi); e que seja certificada a sua idoneidade. Quanto aos carros que circulam na estrada, não podem ter mais de nove lugares nem mais de sete anos. Devem ter seguro de responsabilidade civil e acidentes pessoais e estar identificado com um dístico visível.
Por terra, ficou aquela que era a grande luta dos taxistas: o contingente, ou seja, um limite aos carros que circulam nas ruas através destas plataformas. E à qual nem o Bloco nem o PCP é indiferente.
Nenhum taxista, seja quem for, pode ter um alvará em Almada ou no Seixal e apanhar um passageiro em Lisboa. Há uma organização da oferta em função do licenciamento do setor e as autarquias têm um poder fundamental. Isto é um detalhe importante, quando parece normal para estas multinacionais apanharem passageiros onde quiserem, completamente à margem da organização da oferta. Os contingentes são um problema central”, explicou Bruno Dias.
Para Heitor Sousa, “é surpreendente” que “este serviço de transporte esteja por cima das autarquias”. “Há duas coisas que têm de ser homogéneas. Se o serviço de táxi é contingentado em cada autarquia, então o serviço em TVDE também deve ser. Não há nenhuma razão para que não haja o mesmo tipo de contingentação. A segunda questão é que as exigências profissionais que são exigidas aos taxistas têm de ser extensivas aos motoristas TVDE”, esclareceu. As diferenças entre os partidos que compõem a solução governativa, ficam por aqui? Não.
Proposta de lei que considera Uber ilegal foi aprovada com voto do PS
A guerra que tem oposto taxistas às tecnológicas Uber e Cabify começou nos tribunais, no início de 2015, com uma providência cautelar interposta pela Associação Nacional dos Transportes Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL), para impedir a primeira (na altura isolada no mercado) a operar. Em dois anos, levou (duas vezes) vários milhares de taxistas às ruas, naquelas que foram as manifestações mais acesas do setor.
A posição do PCP sobre esta matéria tem sido clara: está ao lado dos taxistas. Em 2016, os comunistas avançaram com uma proposta de alteração legislativa para combater com mais eficácia o serviço de transporte em táxi ilegal. A proposta traduziu-se num diploma publicado em Diário da República a 21 de novembro de 2016, que aperta as coimas dos ilegais e inclui, pela primeira vez, os serviços prestados através de aplicações eletrónicas.
A proposta de alteração à lei, apresentada pelo PCP, foi aprovada no Parlamento com os votos a favor do PS, PCP e BE. Já o PSD e o CDS abstiveram-se. Os valores destas coimas podem chegar a 15 mil euros e, em dois meses, a PSP e o Instituto de Mobilidade e Transportes (IMT) já multaram 131 carros Uber ou Cabify em várias operações de fiscalização.
É assim evidente que o dito ‘transporte Uber’, ou outro de natureza equivalente, promove e executa um transporte remunerado em viaturas ligeiras de passageiros que, pela própria natureza e características do serviço apresentado e propagandeado, é ilegal em todas as suas vertentes”, lê-se na proposta de alteração do PCP que foi aprovada no Parlamento com os votos do PS, PCP e BE. PSD e CDS abstiveram-se.
Contactado pelo Observador, o IMT esclareceu que participou em duas ações que envolviam operações de fiscalização a carros Uber e Cabify, “tendo sido levantados 43 autos de contraordenação por falta de alvará, 2 autos por falta de licenciamento de veículo e passada uma guia para apresentação de documentos“. A Associação Nacional de Transportadores Utilizadores de Plataformas Eletrónicas (ANTUPE), que representa as empresas parceiras das tecnológicas, está, por causa das multas, a aconselhar os motoristas a deixarem de prestar este serviço até a regulamentação ser aprovada. Mas vai ser aprovada?
As instruções da PSP para os operacionais são igualmente claras: “Até que seja publicado e entre em vigor o diploma que regulamentará estes serviços [Uber e Cabify], estão em violação do n.º4 do art.º 28 (prática de angariação, com recurso a sistemas de comunicações eletrónicas, de serviços para viaturas sem alvará)”, lê-se num documento da polícia a que o Observador teve acesso. Assim, os motoristas que forem autuados podem ser multados entre 2 mil e 4.500 euros. As empresas podem ser alvo de coimas que vão dos ou de 5 mil a 15 mil euros.
Em dezembro, o Observador questionou o Ministério do Ambiente se as novas coimas aos ilegais, publicadas em Diário da República a 21 de novembro, chocavam com a proposta de regulamentação do Governo. Fonte do ministério respondeu que “não via como”.
“Para que haja uma solução aceitável tem de haver uma discussão de fundo”
Bruno Dias disse ao Observador que o PCP tem chamado a atenção do Governo sobre “três aspetos fundamentais”: Não pode haver um “estatuto de impunidade, como se a lei se aplicasse a uns e não a outros”; essa lei “não pode ser um fato à medida” de outras empresas” e “não se pode estar a legalizar uma concorrência que é desleal“. Para o deputado do PCP, “o transporte de passageiros em veículos ligeiros tem um nome, chama-se táxi. Não há dois regimes, há um”.
As condições de trabalho dos motoristas e as tarifas praticadas neste tipo de serviços também não ficam de fora da mira dos comunistas. “As tarifas nos transportes não podem ser completamente à vontade do patrão”, afirmou Bruno Dias, referindo-se às tarifas dinâmicas da Uber, que oscilam consoante a oferta e a procura.
Na proposta apresentada [pelo Governo], estes três aspetos não têm uma resposta adequada e são aspetos centrais, relativamente aos quais não há uma proposta aceitável. Para que haja uma solução minimamente aceitável, tem de haver uma discussão de fundo e uma solução que não seja aquela que está colocada na proposta de legalização do Governo”, afirmou Bruno Dias.
Heitor Sousa, do BE, diz taxativamente que o Governo não pode contar com o voto do seu partido. “Há aqui um equívoco essencial e isto precisa de ser bem discutido”, diz, acrescentando que o BE está disposto a conversar com todos os intervenientes para encontrar uma solução. “Regular esta atividade é indispensável, porque a Uber está aí. E quanto mais tarde se fizer uma regulação disto, pior é”, afirma.
Para Paulo Neves, deputado do PSD que tem acompanhado este dossiê, a posição do partido é aquela que tem sido defendida ao longo do tempo. “Há lugar para os dois serviços. Em relação à legislação, sempre dissemos que a lei tem [atual] é para respeitar, mas que tem de ser revista e que os táxis não são incompatíveis com as plataformas de mobilidade urbana”, afirmou ao Observador.
No início de janeiro, quando o Parlamento discutiu duas petições (uma contra e outra a favor da Uber), Paulo Neves disse que o PSD defendia “uma rigorosa legislação, que defenda os direitos de quem utiliza e de quem trabalha na mobilidade urbana. E isto aplica-se a taxistas e a estas plataformas”, acrescentando que “é errado ‘ideologizar’ esta questão”. Sobre aquele que será o sentido de voto do PSD quando for discutida a proposta de regulamentação, não teceu comentários.
O PCP demarca-se e diz mesmo que regulamentar a Uber e a Cabify não é uma prioridade do partido. “Não estamos com grande preocupação em abrir a porta e alertar a lei para fazer entrar as grandes multinacionais. Isso, para nós, não é uma prioridade. A nossa prioridade é fazer cumprir a lei, modernizar os transportes, mas sem que ninguém esteja acima da lei”, afirmou Bruno Dias ao Observador, defendendo que haja uma discussão com decisões “justas e adequadas”.