Dois recrutas do 127º curso de Comandos garantem ter sido impedidos pelos seus superiores de abandonar a recruta quando manifestaram a sua intenção de desistir. Um dos militares que integrava a formação em que morreram Hugo Abreu e Dylan Araújo da Silva disse ao Ministério Público ter-se sentido “um prisioneiro“, obrigado a prosseguir com os exercícios contra a sua vontade. Outros militares sentiram-se “humilhados” por superiores que “desprezavam a vida humana“.
Os depoimentos constam do processo em que o Ministério Público, coadjuvado por inspetores da Polícia Judiciária Militar, investigam os acontecimentos que levaram à morte de dois recrutas de 20 anos, em setembro do ano passado. À procuradora Cândida Almeida e ao major Vasco Brazão, um dos recrutas relata que, na semana que se seguiu à morte do segundo recruta — Dylan Araújo da Silva, a 10 de setembro, vítima de falência hepática na sequência de um golpe de calor –, manifestou a sua vontade de desistir do curso.
Desiste mas continua na instrução
Essa intenção foi expressa a dois instrutores do 127 curso: o alferes Costa e o capitão Monteiro, que será constituído arguido no início da próxima semana. Apesar disso, “a pretensão não foi atendida” e o recruta diz ter sido “obrigado a continuar no curso“.
O militar em questão, soldado José Bento, fez parte do grupo de mais de 20 homens que recebeu assistência médica no primeiro dia de recruta. José Bento esteve na mesma tenda de campanha que o camarada madeirense. Quando ali chegou, recorda-se, Abreu mostrava “dificuldade em respirar” e “emitia uns sons estranhos como se estivesse a pedir ajuda”. Assim ficou durante “cerca de duas horas”.
Quando Bento fechou os olhos, num estado de exaustão provocado pelos exercícios quase ininterruptos das 16 horas anteriores e fragilizado pela falta de água (tinha bebido, no máximo, dois litros nesse período), um dos socorristas destacados para dar apoio ao curso avaliava o estado de Hugo Abreu. O madeirense já estava sem reação. Tinha caído a noite quando Bento voltou a abrir os olhos, e nesse momento já o madeirense estava rodeado de pessoal da equipa médica a receber “choques no peito”. Os socorristas iam-se revezando nas compressões. No aparelho de desfibrilação, o soldado leu a sentença: “Não há reação“.
Na semana seguinte, o soldado Bento disse aos superiores que não aguentava mais, queria ser ir embora. Não conseguia continuar num ambiente onde “havia um desprezo enorme pelo estado de saúde dos instruendos“. Mas só no final dessa semana, a 16 de setembro, o capitão Monteiro se dirigiu a ele — já a maior parte dos desistentes, 17, tinha saído. Bento foi questionado sobre se “realmente queria desistir”. Sim, queria. Mas ainda não estava livre.
Chegou o fim de semana. Passou sábado, passou domingo. Só na terça-feira lhe terá sido apresentado o documento que oficializava a desistência. Durante esse tempo, o recruta continuou a formar com os colegas de curso e a realizar os exercícios previstos na instrução. Sentia-se “um prisioneiro”, disse, perante os responsáveis pelo processo, no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa. Não só os instrutores não o retiravam da instrução como “agravavam” os tratamentos a que era sujeito, ele e os restantes desistentes, “humilhando-os” e “ordenando castigos”.
No processo, o soldado Bento relata um exemplo. Já depois de assinar o documento de desistência, foi chamado para a formatura para participar numa prova topográfica. Eram 20h30, mas ainda havia alguma luz do dia. Aos recrutas, todos alinhados, os instrutores deram cinco minutos para correram à camarata para apanhar um lápis e uma lanterna. Demorassem ou não mais que esse tempo, os desistentes eram sujeitos a mais um castigo: “Um banho de mangueira antes de irem fazer a prova topográfica“.
Dylan “ia acabar o curso”
No final do primeiro dia de recruta, Jorge Silva já tinha bebido três cantis de água. Mais do que muitos camaradas de instrução, mas mesmo assim uma quantidade muito abaixo dos cinco cantis que um dos guiões (porque houve dois guiões a circular, com informações contraditórias entre si) da Prova Zero estipulava.
Lidou de perto com Dylan Araújo da Silva, o recruta que viria a morrer no dia 10 de setembro, depois de vários internado no Hospital Curry Cabral. Do colega de instrução Dylan Araújo da Silva, o solda Jorge Silva disse que era
Muito calmo, dotado fisicamente, bom atleta, não tinha vícios, muito educado e respeitador”.
Entre os camaradas de curso, havia uma ideia comum: todos acreditavam que Dylan “ia acabar o curso”, sobretudo “pela forma como falava do curso” e “se entregava às instruções”.
Hugo Abreu tinha morrido. E Dylan ainda estava internado, a lutar pela vida, sem que se conhecesse o desfecho do seu caso. Pouco importava. O soldado Jorge Silva tinha atingido o seu limite. Tinha sido “agredido” e o ambiente era muito agressivo”. Queria desistir. E disse-o ao alferes Monteiro.
O superior garantiu que ia passar a mensagem ao capitão Monteiro. Insistiu, voltou a dizer que não aguentava mais, mas ainda foi “obrigado a permanecer mais uns dias” com o grupo e só no dia 8 de setembro conseguiu libertar-se. Antes, o capitão Monteiro deixou-lhe uma mensagem de despedida: “Você aqui não foi agredido, quando muito encostaram-lhe a mão à cara”, reproduziu o recruta para os autos.
Estas práticas, garante fonte do Exército, fogem à “regra”. Quando um militar manifesta vontade de desistir, “é imediatamente afastado da recruta”, não participa em exercícios ou provas e não deve ser sujeito a castigos. Fica à espera de assinar o documento que oficializa a saída e, assim que toda a “burocracia” está tratada, volta para o seu quartel. No entanto, até ao fecho do artigo, o Exército não tinha oficialmente respondido às questões do Observador.
Desistentes dão “o exemplo”
Curso de Comandos sem desistências não existe. Ao Observador, em resposta a questões ainda em setembro do ano passado, o Exército esclarecia que “a taxa de atrição dos cursos de Comandos ronda os 45%”, em termos médios, desde que a instrução foi reativada, em 2002.
Mas manter os homens em campo mesmo depois das manifestações de desistência não foi caso exclusivo do curso 127. É prática recorrente. Ao Observador, um ex-comando que pediu para não ser identificado, aponta duas razões para que estes recrutas continuem próximos da companhia de instrução, mesmo querendo dar por terminada a sua formação.
Por um lado, acontece com frequência que estes militares se “arrependam” da sua decisão. Durante os treinos, sobretudo nas fases mais críticas da instrução, há desabafos. “Quero desistir”, “não aguento mais”, “para mim chega”. Mas, mesmo contrariados, resistem. E, em certos casos, conseguem mesmo recuperar o ânimo, incentivados pelos restantes colegas de equipa, acabando por concluir com aproveitamento o curso. Por outras palavras, há desistentes que se tornam comandos e recebem a boina vermelha.
Noutros casos, nas situações em que não há volta a dar, os desistentes funcionam como um estímulo positivo para os resistentes. São o motivo para a aplicação dos castigos do grupo — porque atrasam as provas, porque não se esforçam — mas são, também, um escape para a frustração do grupo. São alvo de “tareias” que servem de ajuste de contas para as privações ou esforços redobrados ordenados pelos instrutores.