“Primeiro foi aquele barulho enorme. A única coisa a que podia comparar aquilo era como se cada molécula de ar tivesse explodido. Aquilo subiu e depois embateu com força no chão. As luzes desligaram-se e as chamas deflagraram. Lembro-me de por as mãos no meu rosto e pensar: Senhor, é hoje que te vou ver“. Erma Shclecht era uma das passageiras do Boeing 747 da Pan Am que embateu há quarenta anos num avião do mesmo modelo comprado pela KLM. Uma das 61 sobreviventes. O acidente, na pista do aeroporto Los Rodeos envolto pelo nevoeiro a 27 de março de 1977, havia de resultar na morte de 583 pessoas. É desde então o maior desastre aéreo da História. Fez esta segunda-feira quarenta anos.
Eram duas da tarde quando os Boeing 747 da Pan Am e da Royal Dutch Airlines (KLM) aterraram no aeroporto em Tenerife. Ambos tinham sido desviados para aquela ilha das Canárias porque o aeroporto onde iriam originalmente aterrar, noutra ilha, Las Palmas, tinha sido palco de um ataque terrorista levado a cabo por separatistas das Ilhas Canárias. Não era seguro levar 600 pessoas para um palco de guerra, mesmo que a maior parte estivesse ansiosa para embarcar nos cruzeiros que os levariam de férias pelo mar dentro.
Esperando lado a lado no canto sul da pista e com as asas quase a tocarem-se, os dois aviões já transportavam história. De um lado, o avião da Pan Am, com o nome de “Clipper Victor”, exibia uma amolgadela histórica no nariz: tinha-a feito no voo inaugural deste novo modelo Boeing, o maior e mais glamoroso que já tinha sido visto a rasgar os céus. A viagem entre o Aeroporto JFK em Nova Iorque e o aeroporto de Londres-Heathrow testemunhava uma vez mais a magnificência da Pan Am, a pioneira companhia aérea norte-americana que havia de revolucionar a indústria da aviação antes de encerrar nos inícios dos anos 90. Do outro lado, também o “The Rhine” da Royal Dutch Airlines (KLM) era a montra de uma herança: a KLM era a mais antiga companhia aérea continuamente operacional do mundo. Entre as nuvens desde 1919, a empresa era bem reputada pela sua pontualidade e segurança.
Aos comandos do Boeing 747 da KLM estava uma estrela da companhia aérea: Jacob van Zanten era considerado o melhor instrutor deste novo modelo de aviões, aparecia nos anúncios da marca, em revistas e era reconhecido sempre que descia as escadas em caracol da primeira classe de qualquer voo. A experiência dizia-lhe que o avião precisaria de mais combustível antes de voar de novo para Las Palmas por isso, quando o aeroporto de destino reabriu — apenas duas horas após o atentado –, van Zanten atrasou-se a levantar voo. Enquanto o Boeing da KLM era abastecido, o tempo mudou: o nevoeiro que até àquele momento tinha escondido apenas as montanhas da ilha tinha descera até à pista e comprometera a visão dos pilotos. Mas os problemas só agora estavam a começar.
Era tarde, havia pessoas ansiosas por ir de férias e pilotos cansados demais para esperar. Estava na hora de seguir viagem. A pista do aeroporto em Tenerife estava francamente congestionada com todos os aviões que tinham sido desviados de Las Palmas. A rota normal da pista 30 estava bloqueada e portanto os dois grandes titãs da pista tiveram de se ajeitar: ambos fizeram um “backtaxi”, uma manobra de aviação rara em que os aviões são conduzidos até ao fundo da pista e depois dão uma volta de 180º antes de descolar. Assim posicionados a pista, nem os pilotos eram capazes de enxergar os outros aviões por causa do nevoeiro que bloqueava a pista, nem a torre de controlo os conseguia controlar à distância por não haver radares no solo.
Ambos os aviões receberam as instruções. O capitão da KLM devia dirigir-se até ao fim da pista, dar meia-volta e manter a sua posição até ordens em contrário, enquanto o piloto da Pan Am devia esperar pela passagem do outro avião na pista mais à esquerda. O avião a descolar primeiro iria avisar a torre de controlo que já estava no ar. Foi aqui que começou a confusão: o nevoeiro impediu o piloto da Pan Am de diferenciar as pistas de descolagem e acabou por atravessar a pista do avião da KLM e entrar no local errado. Ninguém se apercebeu até ser tarde demais.
Entretanto, o avião da KLM chegara finalmente ao ponto de paragem indicada pela torre de controlo. Klaas Meurs, o co-piloto do “The Rhine”, recebeu instruções de descolagem que, afinal, não são mais do que as indicações de altitudes e frequências que o avião comandado por van Zanten devia utilizar. Já saturados pela série de erros, atrasos e enganos, van Zanten e os colegas mostram-se irritados nas conversas com a torre de controlo. Nesta altura, impacientes por partir, interpretam as indicações dadas pela torre como uma autorização para descolar e começam o trajeto: “Estamos agora… na descolagem”, diz van Zanten, mais hesitante do que altivo. Os motores são ligados e começam a andar na pista a uma velocidade de 3 nós.
Ali perto, o avião da Pan Am continua atravessado na pista ao lado. A frase de van Zanten chama a atenção da tripulação: “Em descolagem” não é um termo comum entre os pilotos, muito menos num tão reconhecido como o que comanda o infortunado Boeing 747 da KLM. Bob Bragg, primeiro-oficial do avião da Pan Am, decide certificar-se se tudo está bem: “Nós continuamos aqui em baixo na pista”. “Tudo bem, esperem para descolar. Já vos ligo”, terá respondido a torre. O silêncio veio depois e antecipava a morte de 600 pessoas.
À altura em que esta última conversa aconteceu, van Zanten podia ter ouvido as palavras da Pan Am e ter carregado a fundo no travão. Havia tempo para impedir o acidente, mas o piloto não ouviu a comunicação: a informação da Pan Am foi dada à torre precisamente ao mesmo momento que van Zanten transmitia à torre a frase “Vamos!”. Nos sistemas de comunicação dos anos setenta, semelhantes a walkie-talkies, se duas pessoas comunicam ao mesmo tempo para o mesmo dispositivo, eles são incapazes de ouvir o que a outra pessoa está a transmitir. Tudo o que o avião da Pan Am pode ver através da janela direita, já tarde demais para agir, é um gigante a vir na sua direção e a apenas 700 metros de distância: “Está ali, olha para ele… Filho da mãe, está a vir! Sai! Sai! Sai”, ficou gravado na caixa negra.
O KLM atravessa o avião da Pan Am a meio.
O acidente de Tenerife, entre um avião com 380 passageiros e tripulação e outro com 234 a bordo, resultou na morte de seis centenas de pessoas. Apenas 61 escaparam à morte. A Royal Dutch Airlines chegou a telefonar a van Zanten, sem saber que estava a bordo do avião, para que contribuísse com a sua experiência para a investigação. O mundo assistia, a 27 de março de 1977, ao maior desastre aéreo do mundo. O acidente tinha resultado numa série de erros. Fatais.