E eis que, depois de Cara d’Anjo, de 2015, Luís Severo edita um segundo álbum no qual aprofunda a sua especialidade em canções amorosas e o seu talento para a composição. Se o primeiro disco daquele que já foi conhecido como Cão da Morte dava início ao romântico baile com temas como “Ainda é Cedo”, “Santo António”, “Canto Diferente” e “Nita”, o segundo é um mestrado sentimental, que se inaugura com uma canção de título inequívoco nos enunciados, “Amor e Verdade”. Mas já não há apenas sol nesta praia. Também se fala de avalanche e de medo. E de cidade.
Há aqui muito coração para distribuir, com Lisboa como cenário e como uma personagem de quem se fala e que nem sempre é tratada com o esmero que merece (“não há filho teu que não te vende”), feira na qual cada um tem de se habituar a defender. É um namoro urbano o que se propõe, algures entre a Alameda e a Penha de França, muita passeata de mão dada ao som de versos, ou floridos ou melancólicos, de um bardo romântico, alguém que percorre becos e praças debaixo de um céu de humores variados e envolto por um nevoeiro ocasional.
Mesmo que o segundo tema, com um ritmo que remete para uma fachadiana afro-xula, se chame “Planície (Tudo Igual”), é de referir que houve mudanças importantes na vida de Luís Severo e que estas tiveram reflexo neste segundo fôlego criativo a solo. O próprio, na primeira pessoa: “Mudaram algumas coisas na minha vida que penso terem influenciado o rumo do disco: deixei Odivelas e mudei-me definitivamente para Lisboa. Além disso, este foi um álbum gravado no único período em que estive exclusivamente a fazer música”. Foram várias as mudanças. Mudou de estúdio, de músicos de apoio, de meio de transporte. E de método para escrever as canções: “Passei a escrever ao piano, a escrever a música antes da letra”. É ouvir o bom resultado.
Continua a ser, antes de mais, o sentimento amoroso que o inspira para a escrita de canções? “Sim, mas apesar de tudo acho que este disco já é um bocadinho menos centrado no amor que ‘Cara d’Anjo’. Claro que continua lá e com um peso muito forte. Mas já vai beber a outras águas, nomeadamente as águas da urbanidade, contextualizando mais o amor no espaço onde muitos de nós o vivemos”. Aquele que na jornada anterior disse ter uma “vida de escorpião” sente-se dividido quando tenta identificar a real intenção deste novo gesto: “Ainda hoje não sei se neste disco falo do amor como uma desculpa para falar da cidade, ou vice-versa”.
O amor e a paisagem. E os passos em volta, grupo da editora Cafetra nomeado em “Escola”, o primeiro single, em que, depois de uma entrada melódica com violinos, se evoca o primeiro beijo, o frio de Santa Apolónia e ensinamentos primordiais:
“fui à escola aprender a estar sempre alerta/e a não confiar em ninguém”. A dado passo, depois de uma passagem de carta amorosa, desce sobre a letra uma súbita reguada de ironia: “a escola que é a melhor parte da vida/ mas só porque a vida é mesmo uma merda”.
Será mesmo assim ou fica bem na letra ser assim?
“Quando era criança e adolescente ouvia muitas vezes a frase: ‘Aproveita agora que estás na melhor parte da tua vida’. Eu não gostava nada da escola e desconfiava muito dessa afirmação. Agora, na idade adulta, olhando para trás, considero cada vez mais que a escola não é de todo a melhor parte da vida. E para mim só é possível achar isso se a vida estiver mesmo a ser uma merda”.
Todos os versos desta canção, diz, são uma espécie de graça sobre “ser saudosista em relação a uma coisa que não foi especialmente boa, só porque já passou muito tempo e a distância adocicou o que resta das vivências”. A sabedoria servida com irónica temperatura.
[ouça aqui o álbum “Luís Severo”]
Até ao fim do álbum há duas canções que merecem uma referência conjunta, “Meu Amor” e “Boa Companhia”, intervaladas pela despreocupada “Cabeça de Vento”. Tratam do mesmíssimo apaixonado dossier em tonalidades diferentes. Diga-se que não é qualquer um que compõe, toca e canta um tema tão desprotegidamente romântico (muito para lá do título), que caminha sobre um trilho de piano, como “Meu Amor”. Magnífica cantiga, desenhada e interpretada com um despudor inocente, lembra uma noite em Janeiro, passeios e beijos a ver o castelo, mãos enlaçadas, “suspiros de paz”, “arco-íris para rever”, “carinhos que me deixam em flor”. Tudo o que muitos sonham e magicam mas só poucos se atrevem a dizer.
“Boa Companhia” é outra história dentro do romance. Tem a leveza de uma música dos Broa de Mel e é uma carta excelente para sacar em momento alto dos concertos. Se bem trabalhada pelas rádios, reúne condições para ser um hit de Verão. Estará Severo preparado para a eventualidade? “Sempre foi claro que a ‘Boa Companhia’ seria um dos singles deste trabalho. É uma canção que, através do arranjo feito em estúdio, ficou mais insuflada e contagiante. Gostava que fosse um hit, claro!”. Pratica uma fórmula de que gosta bastante: traz uma punchline na letra que serve para anular tudo o que foi dito antes.
“Dizer ‘és Boa Companhia’ depois de me referir a tantos problemas do quotidiano é uma forma de dizer que esses mesmos problemas pesam pouco ao lado de outras coisas, e que nisto das relações é bonito viver um dia de cada vez”.
A estas duas músicas também se pode encostar “Olho de Lince”, composição adequada para encerrar o baile. Traz, sem peso e até com sentido de festa, a consciência de que as mais sublimes benquerenças têm prazo de validade numa etiqueta oculta.
[o vídeo de “Boa Companhia”]
Um apontamento para a produção, muito cuidada, feita de arranjos e pormenores que se entendem melhor em audições atentas. O disco assinala uma mudança, aludida no início: a passagem de Luís Severo para o estúdio de Alvalade comandado por Diogo Rodrigues (baterista da sua formação ao vivo), no qual ensaia a banda Capitão Fausto. Luís sabia que Diogo iria gravar o disco consigo, mas sentia que faltava outra pessoa para os ajudar, para trazer ideias novas e romper as rotinas da dupla. E eis que chega uma oportuna cumplicidade com os celebrados Capitão Fausto.
“Lembrei-me do Manuel Palha (guitarrista da banda), que me impressionou bastante durante uns ensaios. Os três produzimos e tocamos a maioria dos instrumentos. O Francisco Ferreira, teclista, contribuiu fortemente para a massa de texturas. O Tomás Wallenstein tocou violinos e apareceu nas alturas certas para desbloquear impasses. A Violeta Azevedo gravou flautas e o Salvador percussões”. No fim veio o coro, formado por Teresa Castro, Bia Diniz e Manuel Lourenço. “Estes três compinchas foram incansáveis e acrescentaram um lado bem orgânico ao disco”. Construído ao longo de cerca de oito meses, Luís Severo, agora apresentado no Teatro Ibérico (dia 29), foi criado e produzido sem pressas, com assumida serenidade. “Alterámos coisas imensas vezes, fizemos e refizemos. Apesar de a última palavra ser sempre minha, o Diogo e o Manuel foram duas peças-chave”.
Nuno Costa Santos, 42 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.