Começa com aquele toque pessoal da saudação escrita à mão. “Querido Presidente Tusk”, lê-se no cabeçalho da carta endereçada pela primeira-ministra britânica ao Presidente do Conselho Europeu. Não é o primeiro dia do Reino Unido fora da União Europeia — durante, pelo menos, dois anos tudo permanecerá como até agora — mas é o dia em que finalmente foram entregues os papéis do divórcio.

Foi um divórcio que começou a ser anunciado por David Cameron, nos primeiros dias de 2013, e é ao antigo primeiro-ministro que imputam a culpa por este desenlace, até porque sempre se disse na imprensa britânica que ele nunca foi genuinamente contra a UE, mas sim um homem preocupado em estancar a fúria dos seus deputados, vários deles profundamente céticos em relação à UE. E foi assim que a toponímia da União Europeia como a conhecemos se quebrou, pela força da política. Uma análise recente do Instituto de Pesquisa Social mostra que a maioria dos britânicos querem manter a parte”económica e financeira” da União Europeia e dissolver o entrelace político.

Nos primeiros parágrafos da carta, Theresa May faz um resumo do que se passou nos últimos seis meses e volta a sublinhar que “a decisão [de sair da União Europeia] nada teve a ver com a rejeição dos valores que partilhamos com os nossos amigos europeus”. Ao contrário, continua May, “o Reino Unido quer o sucesso e a prosperidade da União Europeia”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Como também tem vindo a repetir desde que substituiu David Cameron, May escreve que o Reino Unido quer continuar a ser “um parceiro e aliado de todos os países do Continente”. Será apenas a diplomacia inerente às primeiras fases das negociações complicadas a falar? É essa a opinião de Anoosh Chakelian, redatora principal da revista New Statesman que assina um texto onde fala da “completa incerteza” dos dias que aí vêm. Por outro lado, no diário Daily Telegraph, Jacob Rees-Mogg, deputado conservador, escreve que este é o dia em que “a democracia britânica renasce”.

Ainda antes de elencar os pontos principais das negociações que se seguem, Theresa May aborda a necessidade de conduzir este processo de saída da forma “mais ordeira possível”, “com o menor nível de disrupção possível” porque é este o melhor cenário tanto para o bloco como para o Reino Unido. Depois de dois parágrafos onde toca nas questões legais do Brexit, nomeadamente naquele que deverá ser o processo pelo qual as leis aprovadas na União Europeia deverão ser absorvidas pela lei britânica, evitando uma maratona legislativa para transpor as centenas de leis e os milhares de alíneas que hoje gerem áreas tão importantes como os direitos dos trabalhadores ou a proteção ambiental.

Ainda assim, Theresa May admite que existe a possibilidade que o Reino Unido saia da UE “sem qualquer acordo”, sendo que, assim, o Reino Unido teria que conduzir todo o seu comércio internacional através da Organização Mundial de Comércio, da qual o Reino Unido faz parte através da da UE. As negociações para poder existir sozinho dentro de um grupo de 164 países com simpatias políticas completamente diferentes daquelas acarinhadas pelos britânicos é o tema de uma análise conduzida pelo Centro Internacional para o Comércio e Desenvolvimento Sustentável. Já a Forbes, considera que o Reino Unido, a 5ª maior economia do mundo, não terá qualquer dificuldade em aceder à OMC já que os os vários países “não vão simplesmente parar de precisar de motores dos aviões da Rolls Royce”, um produto britânico.

Seguem-se as diretrizes traçadas por May sobre como as negociações deverão ser conduzidas:

Devemos cooperar, de forma respeitadora e construtiva

“Devemos interagir uns com os outros de forma respeitadora e construtiva, num espírito de sincera cooperação”, começa May que, logo depois, diz que foi depois de ouvir os parceiros europeus que decidiu que o Reino Unido não deveria pedir acesso ao mercado único depois de concretizada a saída. “Percebemos que não podemos ‘andar a escolher as cerejas'”, assume a primeira-ministra. O seu ministro das Finanças, Phillip Hammond, já tinha dito, logo depois de esta carta ter sido integre, que o Reino Unido “está consciente que não pode ter o seu bolo e comê-lo”. Dois ditados britânicos mais ou menos equivalentes a “não se pode dar uma no cravo outra na ferradura”. Sair do mercado único, reconhece May, significa que o seu país “perderá influência na feitura das regras que afetam a economia europeia” e que “as empresas britânicas, que continuem a conduzir negócios com países europeus, terão que alinhar por regras decididas por instituições onde já não teremos voz”.

Devemos colocar os nossos cidadãos em primeiro lugar

“Existe uma complexidade óbvia nas negociações que estamos a iniciar, mas devemos lembrar-nos que no centro das conversações está o interesse dos nossos cidadãos”, começa May neste que é — e será — um dos pontos que mais paixões levanta na Europa. A imigração foi um fator decisivo no voto, e não o será menos agora que os enviados britânicos se dirigem a Bruxelas para tratar do divórcio. Há pelo menos três milhões e meio de cidadãos europeus a viver no Reino Unido e mais de um milhão de britânicos a viver em outros países europeus. Quanto aos direitos de ambos os grupos Thresa May diz que “o objetivo é lutar por um acordo rápido que estabeleça os seus direitos”.

Devemos lutar por um acordo abrangente

“Queremos encontrar um acordo que contemple a profunda e especial relação que o Reino Unido tem com a União Europeia, que abranja cooperação económica e na área da segurança”, é a primeira linha que Theresa May em relação a este ponto. É conhecida a posição do governo britânico, que sempre se esforçou por defender um acordo “lençol” por oposição a uma negociação fragmentada, que pode demorar muito mais do que os dois anos previstos no artigo 50 do Tratado de Lisboa. O Observador tem um explicador que tenta explicar o que se segue à oficialização da saída.

O Reino Unido meteu os papéis para o divórcio. E agora?

Trabalhar em conjunto para minimizar a disrupção

Mais um ponto que se foca na necessidade de que tudo corra sem grandes atritos. “Temos que trabalhar juntos de forma a minimizar qualquer problema e oferecer o máximo de certezas possível aos investidores, às empresas e aos cidadãos tanto no Reino Unido como nos restantes 2 países da União União — e a todos os outros países do mundo”. De forma a evitar “precipícios”, May considera que ambas as partes beneficiariam de “períodos de implementação” que consigam garantir “um ajustamento sem atritos às novas regras”. Mais uma vez, pode não ser bem essa a ideia da UE, como explicamos no último ponto desta lista.

A paz na Irlanda do Norte

É outro dossier sensível deste processo, até porque para além dos problemas alfandegários existe um historial de violência entre Católicos e Protestantes que se teme possa voltar com a volta da fronteira entre as duas “irlandas”. “A República da Irlanda é o único membro da União Europeia que faz fronteira com o Reino Unido e queremos evitar que essa fronteira se torne física de novo. Temos a responsabilidade de garantir que nada é feito que possa por em risco o processo de paz na Irlanda do Norte e que a vigência dos Acordos de Belfast continuará”, escreveu Theresa May. É da Europa que chegam os fundos para o desenvolvimento das comunidades mais afetadas pelo conflito e foi na Europa, mais propriamente no Conselho Europeu, uma arena neutra, que as relações entre os países se tem desenvolvido.

Dar prioridade aos desafios maiores

Os detalhes devem ser analisados o mais rápido possível mas Theresa May considera que “a prioridade deve ser dado aos desafios maiores”. Para isso, May propõe “um acordo comercial ambicioso e abrangente” entre o Reino Unido e a União Europeia — que não é, como já sabemos, a continuidade de acesso ao mercado único. “Este acordo deve ser mais completo e abrangente do que tudo o que até aqui existiu”, escreve May, “de forma a incluir os setores vitais das nossas economias interligadas como os serviços financeiros”. As conversações “ao nível técnico” serão essenciais mas como o Reino Unido é membro da União Europeia, May ressalva que “já existem regras e regulamentos parecidos em todos os países e que isso se deveria manter”.

Proteger os valores europeus

Como remate final, Theresa May volta a reforçar a ideia de que os países da UE e o Reino Unido “devem continuar a trabalhar juntos para que seja possível não só manter como aprofundar os valores europeus”. Mais do que nunca, finaliza May, “o mundo precisa de valores democráticos e liberais”.

E ainda: os 9 recados de Bruxelas ao Reino Unido

Já há uma reação por escrito ao primeiro dia do Brexit — e não acomoda todas as exigências do governo britânico. O diário Guardian teve acesso a um documento onde, em novos nove pontos, a UE traça os caminhos possíveis para o futuro da relação entre o Reino Unido e a UE. E são mais os avisos em relação àquilo que o país não poderá ter do que as brechas que ficam abertas a um acordo proveitoso. Sem demoras, o documento, que tem como remetente o Parlamento Europeu e terá tido como um dos principais redatores o chefe das negociações por parte da Europa, Michel Barnier, diz a Europa se mantém “estridentemente” protetora dos seus interesses políticos, financeiros e sociais e que a posição do Reino Unido mesmo durante o período de transição não será tão fácil como hoje. Um resumo do documento revela nove pontos principais:

A relação futura que o Reino Unido venha a manter com a União Europeia “só será possível de concluir depois da efetivização da saída do Reino Unido da União Europeia”, uma ideia reiterada esta quarta-feira pela chanceler Angela Merkel.

Poderá existir um período de transição depois do prazo limite de 2019 nas questões alfandegárias que não fiquem de pé no dia da saída mas este período não deve exceder os três anos. A abrangência das “benesses” será limitada porque “não pode haver uma alternativa melhor à realidade de se ser membro da União”.

Será o Tribunal Europeu de Justiça o responsável pela resolução de qualquer problema que possa surgir durante o período de transição.

O Reino Unido poderá voltar atrás com o Brexit mas esse regresso estará “sujeito às condições impostas pelos restantes 27 país e não poderá servir como ferramenta para tentar melhorar os termos atuais subjacentes a ser-se membro da União Europeia”

Se o Reino Unido tentar negociar tratados com outros países enquanto ainda for membro da UE, não haverá possibilidade de discutir qualquer acordo com a União.

Não haverá qualquer “tratamento especial” da praça financeira de Londres nem acesso preferencial do Reino Unido ao mercado único ou aos acordos alfandegários.

A data que marca o fim do direito automático de residência para um cidadão europeu no Reino Unido não poderá ser estabelecida para antes de 29 de Março de 2019, ou o Reino Unido estaria a quebrar a lei europeia sob a qual ainda se encontra.

A Grã-Bretanha tem que pagar o que deve à Europa, ou seja “os derivados de todos os compromissos e fundos que ainda se mantenham ativos ou outros que venham a surgir como resultado da sua saída”.

O acordo de cisão, que deverá conter a resolução de todas as questões financeiras, os direitos dos trabalhadores e a questão da Irlanda, terá que ser ratificada por uma maioria de 72% dos 27 Estados-membros, ou seja 65% dos cidadãos da União. Depois disso terá que passar pelo Parlamento Europeu.

A resolução será votada na quarta-feira em Estrasburgo. O documento pede que os 27 membros da União Europeia “se unam na defesa dos interesses e integridade” do bloco.