O ultimo livro que terminou ganhou um título que havia de lhe sobreviver ao corpo, abandonar a obra que nomeava e tornar-se um aforismo usado no mundo todo que muitos usam sem fazer ideia de onde vem: A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer. Dir-se-ia uma tirada de Freud, uma citação de um livro de psicologia. No entanto, saiu da cabeça de um obscuro e subversivo escritor sueco dos anos 40 que, dois anos antes de inalar uma dose fatal de monóxido de carbono na garagem, nos deixou um dos mais belos radicais libelos defendendo o suicídio como a única forma de consolo para o nosso inexorável desconsolo existencial.

Tinha apenas 31 anos e deixava já 9 livros publicados entre romance, teatro, reportagem e ensaio, além de incontáveis poemas. A Antígona acaba de reeditar o seu romance mais famoso O Vestido Vermelho ou A Criança Queimada, no original. O livro, esgotadíssimo desde os anos 90, regressa agora porque, “Stig Dagerman é um escritor subversivo e Portugal não tem hoje escritores verdadeiramente subversivos. Além disso é um autor que foi um exemplo de ética e coragem que sinto fazerem falta neste momento em que sobretudo os jovens sentem um descontentamento crescente com a sociedade”, disse ao Observador Luís Oliveira da refratária Antígona.

… não me coube em herança qualquer Deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tão pouco me legaram o disfarçado furor do cético, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. serei eu também o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer. Como posso assim viver a felicidade?” (Stig Dagerman, A Nossa Necessidade…, ed. Fenda)

Neste ensaio, não aconselhável a quem espera encontrar receitas para a vida, dicas de auto-ajuda, Dagerman (pseudónimo de Stig Halvard Jansson), repete aquilo que faz nos seus romances e peças: cerca-nos por todos os lados. Antecipa as nossas desculpas esfarrapadas, bloqueia as auto-ilusórias fugas. Para lá da liberdade, do facto de sermos soberanos da nossa vontade, nada mais temos. Tal como Álvaro de Campos nos desafia (“se te queres matar, porque não te queres matar” ou dirá [noutro poema lancinante] “Paguei o Bilhete. Cumpri o dever. Sou vulgar. E tudo isto são coisas que nem o suicídio cura”), também o escritor sueco sentia que a sua vida tinha sido destinada a alimentar um vampiro devorador chamado angústia. E se ao adolescente atormentado e precoce que foi lhe pareceram salvíficas as utópicas sociedades anarcas, o sindicalismo, a poesia, a literatura, o jornalismo engajado, o amor, ao adulto lúcido e cru que já era aos 22 quando publicou o primeiro romance, já todas essas promessas estavam em derrocada. A Serpente, coloca-o de imediato como porta-voz da nova literatura sueca e europeia. Mas já aqui ele traçava o Homem preso a uma existência quotidiana nula, a solidão, a vida gasta em ambientes concentracionários, a impossibilidade da justiça. Já aqui, tal como veremos em O Vestido Vermelho, as cores são raras e não contêm qualquer promessa de luz.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Stig Dagerman, aos 21 anos. A sua obra continua ainda hoje a ter múltiplas adaptações ao teatro, cinema, dança e música. Foto em site oficial do autor www.dagerman.us

Engavetado nos dicionários académicos como Existencialista, chamaram-lhe “Rimbaud do Norte”,”Camus sueco”, “Ian Curtis das letras”, mas a sua vida e a complexidade da sua obra não podem ceder ao facilitismo destas comparações. Até porque não inventou outra vida como Rimbaud, nem chegou a ver “Sisifo feliz” como Camus. Certamente é o mais trágico de todos eles, porque como os heróis trágicos ele é silenciado, um silêncio que se alimenta da experiência do auto-abandono, que impossibilita qualquer refugio na mentira. Mais próximo da lucidez de Cassandra também ele vê aquilo que os outros parecem não ver ou não acreditam e, portanto, desiste de se tentar fazer ouvir. A depressão cala-o quase totalmente desde 1949 (aos 26 anos) até 1954 quando morre e já é um velho. O belo rosto de eterna criança, está quase irreconhecível e tem apenas 31 anos. Não consegue escrever quase nada além dos poemas satíricos que manda diariamente para o jornal O Trabalhador. O estranho que ele sempre se sentiu, o inútil, o falhado, deixa de ter abrigo em si mesmo. Quando morre deixa ainda três filhos pequenos e uma relação conturbada com uma atriz famosa.

O “Outono Alemão” ou uma lição intemporal de jornalismo

Stig é oriundo das classes pobres da Suécia. Nasce em 1923 e quinze dias depois é abandonado pela mãe. Um abandono nunca superado e ao qual voltará muitas vezes, de forma transfigurada nos romances e de forma autobiográfica num dos contos de Jogos da Noite (reeditado em 2016 também pela Antígona), onde conta como, durante a infância, ante cada carro que parava na aldeia ele esperava que dele saísse a mãe a correr para ele de braços abertos. Isso nunca aconteceu, nem ele encontrou jamais essa mulher. Viveu com os avós paternos até aos 9 anos, altura em que se muda para Estocolmo para viver com o pai (mineiro) e a madrasta.

Durante os anos de liceu trabalha a vender jornais nos barcos. Depois junta-se à redação do jornal anarco-sindicalista O Trabalhador. Escreve na secção de cultura. É neste ano de 1941 que adota do pseudónimo de Dagerman (Dager, significa o luminoso, nada mais irónico). Em 1943, aos 20 anos, casa com uma refugiada alemã para ajudá-la a obter residência sueca. Em 1946, um ano e meio depois do fim da II Guerra Mundial, quando era celebrada a sua fulgurante estreia como escritor, parte para a Alemanha para fazer uma série de reportagens sobre o país em ruínas. Assim nasce um dos seus grandes livros, O Outono Alemão que colige as reportagens que feitas nesses meses.

“O Outono Alemão”, reportagens sobre a Alemanha em 1946. Quando regressou à Suécia o escritor teve o primeiro internamento psiquiátrico. 12,90 euros

Se a sua prática de jornalista engajado já lhe tinha granjeado a reputação de insolente e arrogante, estes textos vão sublinhar esses adjetivos. E hoje, 76 anos depois do fim da guerra, só podemos ficar espantados com a coragem deste trabalho contracorrente, com a clarividência daquele jovem de 23 anos que não teme criticar em voz alta os jornalistas que faziam uma leitura cega e totalmente pró-aliados, sem nunca perceberem aquele povo, pois partiam do principio que eram todos nazis e só ali estavam para comprovar esse preconceito. As reportagens de Dagerman foram das poucas que ousaram retratar e a denunciar as condições sub-humanas em que viviam os alemães naquelas cidades calcinadas, como foram das poucas a denunciar a política de vingança que estava a ser feita pelos aliados. Que tal como os alemães fizeram com os judeus, justificavam ideologicamente a fome, a progressão da tuberculose, os milhares de pessoas queimadas pelos bombardeamentos que os aliados fizeram sobre as cidades, poupando no entanto fábricas e zonas industriais onde havia interesses financeiros americanos e ingleses.

O que Stig Dagerman mostra nestes trabalhos é aquilo que mais tarde Hannah Arendt vai teorizar como “A Banalidade do Mal”, ou seja, quando os crimes e a morte de seres humanos são ideologicamente justificados como uma espécie de justiça e, portanto, os criminosos não sentem que estão a cometer um crime — porque aquelas pessoas deixaram de ser humanas –, elas são apenas um obstáculo à realização de uma utopia. É esta humanidade para o povo alemão que o jornalista e escritor vai reclamar nas suas reportagens, algo que em 1946/47 era totalmente contra a corrente. A Alemanha era “o doente da Europa à espera de injeções de desnazificação” conta Dagerman, enquanto as pessoas reais se matavam por uma batata que caia de um saco.

Polémico, de uma crueza extrema e de uma delicadeza extrema, este livro, que deveria ser obrigatório em qualquer curso de jornalismo, foi o primeiro êxito de vendas do escritor, cuja escrita está longe de ser fácil ao leitor menos preparado. A sua outra outra obra de enorme popularidade em todo o mundo é precisamente a que acaba de sair O Vestido Vermelho, um romance inesquecível na sua beleza calma, na sua fúria sóbria.

“O Vestido Vermelho”: a beleza é o principio do terror

A primeira edição portuguesa de O Vestido Vermelho é de 1958 e foi feita pela escritora Irene Lisboa para a mítica chancela Estúdios Cor. Foi dela a opção de dar ao livro o título O Vestido Vermelho, quando o título original é poética e imaginariamente muito mais interessante: A Criança Queimada. Mas já nos podemos dar por felizes que a Censura tenha deixado passar um livro com tanto conteúdo sexual anda que mais latente que manifesto, mais imaginado que concretizado.

A tradução aguenta perfeitamente a passagem do tempo e quando, em 1980, Luís Oliveira decide começar a publicar Stig Dagerman na Antígona, escolheu precisamente esta tradução e é ela que se reedita agora. É a terceira reedição. Ao Observador o editor conta que na Feira do Livro muita gente lhe pedia para reeditar este livro. “Stig Dagerman foi um dos primeiros autores que publicámos cá. A sua radicalidade, a forma como ele nos instiga a libertarmo-nos dos falsos libertadores, mas sobretudo o facto de ele não se colocar em nenhuma posição moralista face ao mundo fazem dele um autor que representa o espírito da Antígona”, explica o editor.

Capa da nova edição da Antígona. Posta à venda no passado dia 24 de Março. Preço:

O Vestido Vermelho é, à primeira vista, a mais acessível das obras do escritor sueco. A narrativa é convencional, realista. A estrutura do romance faz alternar a voz do narrador com a voz da personagem principal, o adolescente Bengt, que escreve cartas a si mesmo. Quatro personagens, uma casa, duas ou três ruas de Estocolmo. O ódio, a culpa, o desejo, a loucura desafiam o leitor a ver em simultâneo realidades exteriores e interiores conflituantes. O que é um facto, o que é o real? A forma como eles se passam no espaço e no tempo ou como nós os pensamos?

Sobre a ficção de Dagerman, o escritor inglês Graham Green escreveu: “Em vez de escrever com frases emotivas ele usa os factos como tijolos para representar uma emoção”. Isto faz com que todo o livro seja um um entrançado de jogos de consciência, movimentos contidos mas carregados de tensão e violência. É impossível não nos lembrarmos das peças de Ibsen, ou das atmosfera familiares destroçadas por lutos, divórcios, incapacidade de dialogo e afeto retratados tantas vezes nos filmes de Ingmar Bergman.

Como nota Irene Lisboa, “a grande novidade trazida por este livro é de ordem moral e estética. Ele não adula o gosto estabelecido. É intransigente”.

A ultima edição da Fenda é de 2004. Mas o direitos da obra continuam a ser da editora entretanto extinta

A mãe de Bengt, agora morta, nunca fora bela, não usava vestidos bonitos, coloridos nem saltos altos. Agora sozinho com o pai de quem não se consegue aproximar e que ama e odeia ao mesmo tempo, Bengt vê a mãe ser rapidamente substituída por Gun, a amante do pai, jovem e sensual, que veste o vestido vermelho da mãe morta e inicia um jogo sexual perverso com jovem, que tenta em vão racionalizar todos os seus instintos, justificar as suas falhas morais. Mas, como Édipo, está somente a abeirar-se da catástrofe.

A obra do escritor sueco está maioritariamente publicada na Antígona, embora haja uma peça de teatro na Cotovia: A Sombra de Mart, uma das suas peças mais representadas. Já A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer foi editado pela extinta Fenda teve cinco edições mas está esgotado há vários anos. A Antígona contou ao Observador que tentou recentemente, junto dos herdeiros, comprar os direitos deste livro mas foi informada que eles tinham voltado a ser comprados pela Fenda, que tecnicamente já não existe. Aguardemos então que, seja quem for que comprou os direitos deste livro, o coloque de novo nas bancas.