Três astronautas regressaram esta segunda-feira ao planeta Terra depois de passarem 173 dias seguidos na Estação Espacial Internacional. Shane Kimbrough, da NASA, e os dois cosmonautas Sergey Ryzhikov e Andrey Borisenko da Roscosmos desacoplaram da Estação Espacial Internacional às 8h57 (hora de Lisboa), a bordo do módulo Soyuz MS-02, e aterraram em segurança no Cazaquistão.
Touchdown! Exp 50 crew lands in Kazakhstan at 7:20am ET after 173 days in space. https://t.co/qpyi2LM11l pic.twitter.com/tr6fsI58AZ
— International Space Station (@Space_Station) April 10, 2017
Desde outubro do ano passado que o trio que regressou esta manhã a casa vivia na Estação Espacial Internacional, um autêntico laboratório científico a mais de 354 quilómetros de altitude (às vezes pode estar mais próxima e torna-se visível nas noites claras de verão). Orbita a Terra uma vez a cada 90 minutos a uma velocidade média de quase oito quilómetros por segundo (o equivalente a 28.163 km/h).
Isto significa que um astronauta a bordo da Estação Espacial Internacional pode ver o sol nascer 16 vezes por dia, porque passa 45 minutos com luz e outros 45 minutos com escuridão alternadamente durante 24 horas. Essa viagem foi uma estreia para Sergey Ryzhikov, mas foi a segunda missão para Andrey Borisenko e Shane Kimbrough, que realizou três passeios espaciais para trocar as baterias e reparar o exterior da estação.
Os médicos, que analisam os astronautas assim que chegam a solo terrestre (nos primeiros minutos da quarentena a que estão sujeitos), garantem que estão bem. Ainda no final deste mês, o módulo Soyuz MS-02 vai levar outros dois astronautas para a Estação Espacial Internacional.
Expedição 51: mais uma na história das longas estadias no espaço
A chegada destes três astronautas à Terra marca o início da Expedição 51, comandada por Peggy Whitson (NASA) e os engenheiros de voo Oleg Novitskiy da Roscosmos e Thomas Pesquet da ESA (Agência Espacial Europeia), os únicos a bordo da estação neste momento. A viver na Estação Espacial Internacional desde novembro de 2016, Peggy Whitson fez história em 2008 quando se tornou na primeira mulher a comandar a estação mais do que uma vez. Ainda este mês, a astronauta norte-americana vai quebrar mais um recorde: vai ser o astronauta dos Estados Unidos com mais horas acumuladas no espaço.
Os astronautas que regressaram esta segunda-feira à Terra não detêm qualquer recorde de estadia seguida no espaço. Embora a maior parte das missões dure até seis meses, o cosmonauta Valeri Polyiakov foi o ser humano com ficou mais tempo seguido no espaço: 437 dias. A seguir estão Scott Kelly e Mikhail Borisovich Kornienko, que ficaram 340 dias no espaço no âmbito da missão “One Year Mission”.
Enquanto estão no espaço, os astronautas levam a cabo experiências científicas que não são possíveis na Terra porque exigem um ambiente microgravidade. Uma das experiências mais ambiciosas alguma vez realizadas na Estação Espacial Internacional foi precisamente a “One Year Mission”, que estudou o efeito de longas estadias no espaço no corpo humano. As conclusões tiradas desse estudo podem ajudar as agências espaciais a preparem viagens tripuladas mais longas pelo universo — como, por exemplo, até Marte.
Há algumas informações que já temos. Os cientistas sabem que o corpo humano pode adaptar-se a ambientes considerados “anormais”. Quando entra em gravidade zero, os fluidos da zona inferior do corpo humano vão subir em direção à cabeça e provocar inchaço no rosto dos astronautas, algo que não terá grandes consequências além de uma dor de cabeça ou enjoo e tonturas durante os primeiros quatro dias nesse ambiente.
Ao fim desse tempo, o corpo já se adaptou à sua nova realidade, mas precisa de ser exercitado para evitar o enfraquecimento excessivo dos ossos e a degeneração dos músculos. No entanto, em estadias muito longas, a resposta do corpo pode ser mais dramática. Isso mesmo foi o que se descobriu na “One Year Mission” quando se comparou o estado físico e psicológico de Scott Kelly com o do seu irmão gémeo, Mark Kelly, também ele acompanhado pela NASA em Terra.
Dias e dias no espaço: um estágio para uma viagem a Marte
A “One Year Mission” começou às 19h42 (hora de Lisboa) de 27 de março de 2015. A noite já tinha caído no cosmódromo de Baikonur, mas a missão Soyuz TMA-16M estava de nariz apontado para o céu. Já muita história se tinha escrito sobre a primeira base de lançamentos de foguetes do mundo: daquela cidade do Cazaquistão já tinha partido o primeiro satélite artificial da Terra – o Sputnik-1, em outubro de 1957; e o primeiro homem a viajar no espaço – Iuri Gagarin, em abril de 1962. Naquela noite, os protagonistas eram outros: o astronauta Scott Kelly e o cosmonauta Mikhail Korniyenko foram lançados para uma estadia de um ano no espaço, uma das mais longas do ser humano fora da Terra.
Ao longo de 340 dias, Scott Kelly deu-nos um novo olhar sobre a Terra nas redes sociais, mostrando o pôr-do-sol visto lá de cima, as enormes tempestades nos Estados Unidos, as ilhas da Polinésia Francesa que “são tão remotas como belas”. Ao mesmo tempo, cá em baixo, uma equipa de especialistas norte-americanos e russos tentam, analisando-o, responder a uma pergunta: o que acontece ao corpo humano quando se fica tanto tempo no espaço? Uma interrogação que parece saída de mais um filme protagonizado por Matt Damon algures em Marte… e que, na verdade, tem mais em comum com ele do que parece: estudar os efeitos do espaço em Scott Kelly e Mikhail Korniyenko permitirá prever o que pode acontecer à equipa de astronautas que um dia chegar pela primeira vez ao planeta vermelho.
Os cientistas sabem, por exemplo, que o formato do olho de um astronauta altera-se quando ele permanece durante longos períodos de tempo no espaço, mas esse efeito só foi estudado para uma janela temporal de seis meses. Os fluidos corporais também mudam quando expostos à microgravidade e isso pode afetar a pressão intracranial.
Outra preocupação da NASA está relacionada com o sistema imunitário: a agência espacial não tem a certeza até que ponto os astronautas ficam mais vulneráveis à aterosclerose, inflamação das veias sanguíneas que as pode obstruir. Mas sabem que a exposição à microgravidade, às radiações e a contextos de isolamento e stress trazem consequências que precisam de ser contornadas. “O sistema imunitário pode ser negativamente afetado por muitos fatores associados ao voo. A própria microgravidade pode inibir diretamente o funcionamento das célula imunitárias”, explicou o imunologista Brian Crucian num vídeo de 2014.
A monitorização destas questões vai ser possível graças a três estratégias delineadas pela NASA. A primeira obriga os dois astronautas a manterem um exercício que seja útil para que os psiquiatras estudem a sua saúde mental: Scott Kelly, por exemplo, escolheu manter um diário que envia para a equipa da NASA e onde relata o quotidiano de quem passa quase um ano com os pés fora do planeta azul. A par desse diário usa diariamente as redes sociais, nomeadamente o Twitter e o Instagram, que não servem apenas para nos dar a conhecer lá por cima, mas também como uma análise ao estado psicológico do norte-americano. A segunda estratégia inclui exercícios físicos: a microgravidade pode atrofiar os músculos e contribuir para a perda de massa nos ossos, por isso dois estudos vão tentar encontrar novas formas de proteger o corpo dos dois cientistas.
É a terceira estratégia que mais suscita a atenção do público. Cá na Terra está um terceiro astronauta debaixo de olho da NASA: Mark Kelly, o irmão gémeo de Scott. Através das análises e exames que Scott tem feito a bordo da Estação Espacial Internacional, os cientistas vão poder comparar as alterações que existem entre dois humanos geneticamente idênticos expostos a condições muito diferentes.
Do ponto de vista da Física, este é um fenómeno que já havia sido previsto pelo Paradoxo dos Gémeos, criado a partir da Teoria da Relatividade Restrita, que diz que, devido à dilatação do tempo, um homem que viaje no espaço voltará mais novo a casa do que o seu irmão gémeo que fique na Terra. Isto é teoricamente verdade porque para o astronauta na Estação Espacial o tempo vai passar 3 milissegundos mais devagar do que para o seu irmão. O que Mark Scotty explicou ao The Guardian é que “o tempo vai passar mais devagar para o Scott porque ele vai estar a viajar a uma maior velocidade relativa do que eu”.
Mas há mais: é que Scott Kelly pode simultaneamente voltar mais novo e mais velho que o irmão Mark, se se provar que os raios cósmicos têm influência no material genético. De acordo com alguns cientistas, esses raios podem diminuir a esperança de vida por acelerarem a degradação dos telómeros, que são partes dos cromossomas responsáveis por manter a sua estabilidade. Os cromossomas têm formato de um X e os telómeros encontram-se nas suas extremidades. Além de manterem a estrutura da sequência de ADN, podem (não há certezas) estar envolvidas no processo de envelhecimento porque encurtam-se de cada vez que as células se replicam e o ADN é copiado para a nova célula. Ou seja, apesar de mais novo na idade, Scott pode estar mais velho fisicamente falando.
Em experiência, pelo menos, estará. Ao longo de um ano, Scott Kelly fez nascer uma flor no espaço e comeu uma alface plantada nas alturas. Nem todos os homens se podem orgulhar de ter posto (mais?) vida fora da Terra. É por isso que o astronauta de 51 anos admite à CNN que vai ter saudades do cubículo onde viveu “como se estivesse a acampar, mas com mais higiene”: “Já voei no espaço quatro vezes, por isso vai ser difícil (…). Eu tenho estado aqui mesmo muito tempo e às vezes, quando penso nisso, sinto que tenho vivido toda a minha vida cá em cima”, explicou Scott Kelly.
Há muito para fazer cá em baixo, porque a aventura no espaço termina, mas é na Terra que se desenvolve a sequela. Ao fim de um ano a nadar no vácuo, Scott Kelly terá de se readaptar à gravidade, treinar as funções motoras, recuperar a orientação. Antes de tudo isto há um momento de tensão. Em três horas e meia, os dois astronautas vão ter de sair da Estação Espacial Internacional e enfrentar as temperaturas ardentes da cápsula que os levará a atravessar a atmosfera terrestre, a mais de 850 km/h. Depois a velocidade diminui suavemente até alcançar a 5,5 km/h, mesmo antes de aterrar. “Quando se olha para o espaço enorme entre nós e a velocidade envolvida, torna-se um assunto muito sério (…), mas estaremos prontos”. E estavam: a Estação Espacial Internacional foi deixada para trás a 1 de março de 2016.