A procuradora Cândida Vilar, que está a investigar os acontecimentos que levaram à morte dos recrutas do 127º curso de Comandos Hugo Abreu e Dylan Araújo da Silva, foi alvo de um processo disciplinar pelas detenções de sete militares em novembro. Mas já tinha recebido um louvor de Maria José Morgado, procuradora-geral Distrital de Lisboa (PGDL). Motivo: o despacho que fundamentou as detenções e que foi considerado um “documento ímpar” que “prestigiou o Ministério Público“.
A 2 de novembro do ano passado, cinco dias depois de terem sido detidos sete militares com responsabilidades a vários níveis no curso de Comandos, a diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, Lucília Gago, recebia uma comunicação de Maria José Morgado com a indicação: “Curso de comandos/Detenções (informação sobre o mérito)“.
A PGDL destacava que o despacho de detenção dos militares “refletia com exatidão a elevada qualidade da investigação criminal” liderada por Cândida Vilar. O mesmo despacho que agora justificou a abertura de um inquérito para avaliar eventuais responsabilidades disciplinares da procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa representava, em novembro:
Um documento ímpar, designadamente na análise indiciária dos mesmos acontecimentos ocorridos em instituição militar, na individualização das responsabilidades independentemente das respetivas patentes militares e no modo como foi recolhida a prova indiciária, demonstrando capacidade de distinguir os factos normais durante um treino desta natureza e os factos relevantes como crimes essencialmente militares“.
As mortes de Hugo Abreu, a 4 de setembro de 2016, e de Dylan Araújo da Silva, seis dias mais tarde, no hospital de Curry Cabral (ambos com 20 anos), aconteceram devido a um “golpe de calor“. As autópsias feitas aos corpos dos militares revelaram que os dois jovens foram colocados numa situação de desidratação extrema que os conduziu à morte. Atenta ao mediatismo gerado à volta do caso, Maria José Morgado salientava, no despacho a que o Observador teve acesso, “a celeridade da investigação levada a cabo até esta data, num caso que provocou acentuado alarme social e é particularmente exigente para o Ministério Público”.
Dois meses e meio após as mortes, a investigação ainda estava no início. Depois disso, seriam constituídos mais 18 arguidos, num total de 25 implicados nas mortes dos dois recrutas. Mas, já nessa fase, a PGDL destacava “o mérito“, “a combatividade” e “a qualidade técnico-jurídica do desempenho concreto” de Cândida Vilar, “que com a sua ação prestigiou em geral a função do Ministério Público e contribuiu validamente para os fins da prevenção geral e especial de crimes desta natureza”.
Esta semana, já numa fase final do processo e num momento em que o Ministério Público se preparava para avançar com várias acusações contra os militares que considera terem responsabilidades nas mortes de Hugo Abreu e Dylan Silva, a procuradora Cândida Vilar foi informada de que lhe tinha sido instaurado um processo disciplinar.
O processo foi instaurado na sequência de um incidente de recusa apresentado pelo advogado Alexandre Lafayette — que representa dois dos militares constituídos arguidos no inquérito, entre os quais o tenente-coronel Mário Maia, diretor do curso de Comandos e um dos detidos na manhã do dia 17 de novembro. Lafayette contesta a legalidade das detenções e o teor das considerações proferidas por Cândida Vilar sobre os acontecimentos ocorridos no Campo de Tiro de Alcochete, que resultaram nas duas mortes.
Nesse despacho, a procuradora defendia que os instrutores e o médico do curso agiram “movidos por um ódio patológico, irracional contra os instruendos, que consideram inferiores por ainda não fazerem parte do grupo de Comandos, cuja supremacia apregoam”. Militares, acrescentava Cândida Vilar, que revelariam “personalidades deformadas” e que teriam agido “com vista a criar um ambiente de intimidação e de terror, bem como sofrimento físico e psicológico nos ofendidos, sujeitando-os a tratamento não compatível com a natureza humana“.
A diretora do DIAP arquivou o pedido, e essa decisão valeu-lhe, também, uma queixa-crime de Alexandre Lafayette por prevaricação, precisamente por se ter recusado a afastar a titular do processo. A TVI referia esta quinta-feira que a queixa contra Cândida Vilar será apreciada na Relação de Lisboa e que a queixa contra Lucília Gago tem de subir ao Supremo Tribunal de Justiça, por se tratar de uma procuradora-geral-adjunta.
A notícia do processo disciplinar terá apanhado a procuradora Cândida Vilar de “surpresa“, segundo o Observador apurou. Desde logo, porque a hierarquia do Ministério Público tinha sido antecipadamente informada de que as detenções iriam ocorrer. De resto, dado o impacto mediático do processo, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, ia seguindo os desenvolvimentos da investigação. E, desde, o início do processo, nunca terá havido qualquer nota de reparo relativamente ao inquérito.