O primeiro alerta dado sobre o impacto da mudança de regime contratual das centrais da EDP foi dado em maio de 2004, quando a ERSE fez um parecer muito negativo ao projeto-lei dos CMEC (custos de manutenção do equilíbrio contratual). Este esquema de compensações substituiu os CAE (contratos de aquisição de energia) e permitiu colocar a energia produzida pela EDP no mercado, mas com seguro contra o risco. Os preços da eletricidade iriam compensar a empresa sempre que a receita ficasse abaixo do regime inicial enquanto estivessem em vigor os contratos.

Uma das conclusões dizia que o novo regime não cumpria o objetivo da neutralidade financeira para a empresa, na medida em que “aumentava as receitas dos produtores e da entidade concessionária da rede à custa dos consumidores”. O documento foi entregue ao Governo numa altura decisiva para a elaboração da legislação, mas uma parte importante dos alertas não foram considerados no decreto-lei dos CMEC.

O parecer, a que o Observador teve acesso, sustentava já a tese de compensações em excesso (na altura, chamava-se sobrecusto) às empresas produtoras, circunstância que está hoje no centro da polémica política e da investigação judicial aos ganhos da EDP. E é um dos documentos incluídos na investigação judicial aos contratos CMEC. Um dos temas tratados era o da diferenciação entre taxas de atualização e de remuneração, que abria a porta a uma subida das compensações devidas à EDP, face ao regime que existia nos CAE (contratos de aquisição de energia).

O regulador defendia, também, que o novo enquadramento seria mais penalizador para os clientes de energia do que os contratos que ia substituir, além de ser introduzida uma alteração no perfil de pagamentos que “provocará uma transferência temporal de custos entre os atuais clientes e os clientes futuros, originando que a próxima geração subsidie a atual.”

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“Até 2010 os consumidores vão beneficiar de uma significativa descida da tarifas. De 2011 até 2027 os futuros consumidores vão ser penalizados”.

A ERSE diz que esta alteração resultou de uma “engenharia financeira” que mudou o padrão de pagamento das compensações dos CAE, que era descendente ao longo dos anos. No final dos contratos, os clientes pagam o mesmo e a EDP recebe o mesmo, mas este “perfil de pagamentos provocará uma transferência temporal de custos entre os atuais clientes e os clientes futuros, originando que a próxima geração subsidie a atual, suportando custos de que não tiveram qualquer responsabilidade”.

As barragens e os investimentos ambientais levados às tarifas

Nem todos os problemas sinalizados à data pelo regulador têm hoje relevância no valor dos CMEC pagos pelos consumidores de energia. Por exemplo, a remuneração dos terrenos onde estão as centrais — e que foi uma grande guerra da ERSE contra o Governo de então — acabou por ser muito reduzida. Mas o parecer identificou questões que vieram, mais tarde, a revelar-se problemáticas. Por exemplo, questionava o direito de incluir os investimentos ambientais das centrais de Sines (da EDP) e do Pego nos CMEC para cumprir a regra comunitária que obrigava a reduzir o enxofre das emissões. Em causa estavam custos a recuperar por via dos preços da eletricidade no valor de quase 500 milhões de euros.

Foi também referido o risco de conferir aos produtores uma prorrogação implícita da licença de produção de eletricidade nas barragens da EDP, em linha com o prazo de utilização do domínio hídrico, mais longo. A ERSE dizia que a tal prorrogação da licença era questionável perante as regras comunitárias, que definiam a realização de concurso, para além de configurar um ato ilegítimo se não houvesse uma “correspondência económica no sistema elétrico”.

Este risco acabou por ser ultrapassado pela decisão de 2007 de Manuel Pinho, ministro da Economia na época, de estender o prazo de concessão das barragens à EDP, em troca de um pagamento ao Estado. Mas esta foi uma decisão polémica, pelos valores envolvidos — inferiores aos recomendados pela REN — e pela não realização de concurso público. E foi um dos temas denunciados ao Ministério Público e que está a ser investigado.

O alerta de maio de 2004 com mais impacto foi a da fixação de uma taxa de remuneração do custo do capital superior à taxa de atualização do pagamento pelos CAE (contratos de aquisição de energia) para calcular o valor da renda. Este diferença fez subir o valor da compensação às centrais da EDP, como avisou a ERSE logo em maio de 2004.

“Caso o valor que venha a ser definido seja superior ao valor estabelecido para a atualização dos pagamentos pelos CAE (taxa de remuneração das obrigações do Tesouro) ocorrerá um sobrecusto a ser pago pelos consumidores de energia elétrica em benefício dos produtores, sem que tal seja devidamente justificado. De facto, os perfis de pagamento previstos nos CAE e nos CMEC devem ser financeiramente equivalentes, o que só será possível utilizando a mesma taxa na atualização dos valores a pagar pelos CAE e no cálculo das rendas previstas nos CMEC (custos de manutenção do equilíbrio contratual)”.

Pela avaliação feita à aplicação do decreto-lei que consagra o regime dos CMEC — o decreto-lei 240/2004 — pelo regulador, um ano depois, em março de 2005, conclui-se que este aviso não foi acolhido, uma vez que se repete.

“A introdução de uma diferenciação entre a taxa de atualização dos montantes anuais dos encargos fixos e variáveis previstos pagar aos produtores ao longo do tempo de vida da central e a taxa de juro utilizada no cálculo da renda anual dos CMEC gera, necessariamente, um sobrecusto a suportar por todos os clientes”.

A taxa do custo médio de capital (remuneração) foi definida em 2007, por portaria do ministro da Economia, Manuel Pinho. A EDP Produção teve a taxa mais alta, de 7,5%, seguida dos contratos que ficaram no regime dos CAE: a Tejo Energia, 7,1% e a Turbogás, 6,75%. A portaria diz que a taxa que remunera os encargos a transferir para a Tarifa do Uso Geral do sistema (os consumidores) foi definida nos termos do decreto-lei de 2004.

São valores superiores à taxa de atualização dos CMEC, que foi fixada a partir dos juros da Obrigações do Tesouro a dez anos, na casa dos 4%, acrescidos de um spread de 0,25 pontos percentuais. Esta taxa define o valor destes ativos atualizado anualmente, tendo como ponto de partida o ano de 2007. Quanto mais alta é esta taxa, menor a remuneração a receber e vice-versa.

No parecer de 2004, a ERSE estima que uma discrepância de dois pontos percentuais nas taxas aplicadas conduz a um aumento da renda anual a pagar pelos consumidores de 57% (cerca de 347 milhões de euros). Os peritos contratados pelo Ministério Público no quadro da investigação aos contratos CMEC concluíram que o uso de uma taxa de custo do capital inadequada terá originado compensações a mais de 340 milhões de euros para a elétrica até ao final destes contratos.

Os “erros” do regulador e a má-vontade contra a EDP

Algumas pessoas envolvidas neste processo contactadas pelo Observador, e que não quiserem ser identificadas, desvalorizaram o teor deste parecer, salientando que tinha erros e incorreções. Um das falhas apontadas foi a conclusão de que o spread de 0,25% acrescido à taxa de atualização dos CMEC era um prémio para a EDP, quando de facto reduzia a remuneração (um erro que não altera assim tanto a análise inicial da ERSE).

Lembram, também, que o regulador não tinha competência para tomar esta iniciativa, porque a produção de energia abrangida nestes contratos estava fora da tutela da regulação. O parecer não foi feito a pedido do Governo. E assinalam ainda uma certa má vontade do então presidente da ERSE, Jorge Vasconcelos, em relação aos contratos da EDP, que criticou publicamente, e à política do Governo da altura. Na memória estava ainda a descida do preço da eletricidade imposta pela ERSE contra as expetativas dos investidores que provocou um estrago nas ações da EDP.

Neste primeiro parecer, o regulador recomendava que não fosse seguido o mecanismo das compensações, inspirado no modelo espanhol que terminou em 2010. A ERSE considerava que o facto de os preços serem condicionados por ajustamentos anuais — em função de um preço médio de mercado (inicialmente fixado em 36 euros por megawatt/hora e depois elevado para 50 euros por MW/hora) “introduz diversas distorções da concorrência”, porque os produtores não correm risco de preço nem de volume.

Em contrapartida, propunha que fosse o mercado a valorizar os contratos (CAE) que se pretendiam substituir, com a realização de leilões desses contratos, processo no qual a REN (Redes Energéticas Nacionais) cederia a sua posição contratual de compradora a terceiros que ficariam detentores de uma capacidade de produção virtual. Assim, concluía, “os produtores continuariam a receber o valor contratado no CAE. Esta solução garantiria a manutenção do equilíbrio contratual e permitiria aos agentes que adquirissem a posição contratual da REN atuar livremente no mercado”.

A extinção dos CAE proposta pelo regulador era então vista pelo poder poder político como juridicamente insustentável, considerando os milhares de investidores privados que já à data eram acionistas da elétrica.

O mesmo argumento tem sido invocado pelos que contestaram a redução unilateral das rendas atuais da EDP, assinalando que a empresa foi vendida com esse ativo. Ainda recentemente, o presidente do conselho geral e de supervisão, Eduardo Catroga, sublinhou: “Deve fazer parte da estratégia do Governo não violar contratos, sobretudo contratos que vendeu. Esperemos que este principio seja respeitado.”

O regime CAE foi inicialmente aplicado às centrais privadas do Pego e Turbogás que foram adjudicadas por concurso público, tendo sido estendido à EDP em 1995 quando o então Governo de Cavaco Silva preparava a primeira fase de privatização da elétrica. A empresa começou a ser privatizada já com as vantagens destes contratos considerados no seu valor.

Porque só a EDP aderiu

A EDP, onde o Estado — a tutela era exercida pelo Ministério da Economia que definiu o regime de compensações — era então o principal acionista, foi a única empresa que aderiu a este regime. Sem esta adesão, não haveria mercado liberalizado porque toda a oferta seria vendida fora das regras de mercado. António Mexia usou este argumento na sua conferência de imprensa para sublinhar que o novo regime representava um risco mais elevado para a elétrica.

Os outros dois grandes produtores de energia, a Turbogás e a Tejo Energia, controlados por investidores estrangeiros, optaram por ficar nos CAE (contratos de aquisição de energia). Em parte, porque estes investimentos feitos em project-finance envolviam contratos com muitos bancos e o BEI (Banco Europeu de Investimento), para além de compromissos contratuais associados de infraestruturas e serviços portuários e ferroviários para servir estas centrais. O risco financeiro e jurídico seria muito mais elevado.

Outro alerta do regulador ia para o efeito que teria este regime na concorrência. Os produtores com remuneração assegurada podem oferecer preços mais baixos, evitando a entrada de novos agentes no mercado. Esta estratégia de oferta constitui uma barreira à entrada, e de facto, poucos operadores do lado da geração convencional entraram.

As novas centrais que surgiram em regime de mercado são quase todas exploradas pela EDP que manteve a liderança na produção, um poder de mercado que suscitou suspeitas sobre a atuação da elétrica no mercado de serviços de sistema que estão ser investigadas pela Autoridade da Concorrência.

Concorrência pondera abrir inquérito aos ganhos das centrais da EDP

O parecer da ERSE, à data liderada por Jorge Vasconcelos, foi entregue ao Ministério da Economia, responsável pela legislação, depois de em abril de 2004 ter havido discussões no Ministério então tutelado por Carlos Tavares. Foram feitas recomendações no relatório entregue em maio de 2004 ao Governo como parte do processo de preparação da legislação de transferência dos contratos de aquisição de eletricidade para o regime de mercado.

Da lei original à legislação de 2007

Uma parte importante dos avisos e recomendações do regulador da eletricidade terão sido ignorados na elaboração final desta legislação que era vital para o arranque do mercado ibérico de eletricidade (Mibel), então uma prioridade do Governo liderado por Durão Barroso, garantindo, ao mesmo tempo, que não haveria prejuízo para a EDP, então liderada por João Talone. Na altura, o Estado era o maior acionista da elétrica, que estava em processo de privatização, e havia a preocupação política de travar eventuais ofensivas das empresas espanholas em Portugal.

Carlos Tavares e Durão Barroso abandonaram funções no Governo em junho de 2004 e a versão final desta legislação acabou por ser aprovada já com Pedro Santana Lopes na liderança do Executivo e Álvaro Barreto no comando da energia. Contactado pelo Observador, o ministro da Economia até junho de 2004, Carlos Tavares, optou por não comentar o assunto. Também o antigo presidente da ERSE, Jorge Vasconcelos, que é presidente da consultora NEWES, preferiu não fazer comentários sobre o parecer de 2004.

Já o ex-ministro das Atividades Económicas que se seguiu, Álvaro Barreto, não se recorda de ter recebido qualquer alerta para o parecer da ERSE sobre o tema dos CMEC. Diz que o processo legislativo vinha de trás e que o tema foi tratado pelo seu então secretário de Estado adjunto, Manuel Lancastre, nomeadamente as negociações com a Comissão Europeia. Álvaro Barreto adianta que deu o seu acordo final ao modelo, mas que não esteve envolvido no detalhe das fórmulas, nem dos cálculos.

António Mexia foi ministro deste Governo com a pasta das Obras Públicas, tendo sido convidado para presidir à EDP já na segunda metade de 2005. A aprovação do regime teve de ser negociada junto da Comissão Europeia, por se tratar de uma ajuda de Estado, e foi aprovado ainda em 2004, quando Durão Barroso já era o presidente da Comissão.

O decreto-lei 240/2004 foi publicado em dezembro desse ano. Em março de 2005, já com a lei em vigor, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) faz uma avaliação em que retoma, agora num documento público, as reservas que colocou em privado um ano antes, para chegar à conclusão:

“O aumento global dos custos a serem pagos pelos consumidores de energia elétrica ao longo do período de vigência dos CMEC (custos de manutenção do equilíbrio contratual), relativamente aos CAE (contratos de aquisição de energia)”.

A passagem das centrais da EDP, dos contratos CAE para o regime CMEC, foi feita já a partir de 2005, ano em que José Sócrates chegou ao poder. Mas o decreto-lei dos CMEC só foi materializado em 2007, quando o mercado ibérico de eletricidade se tornou uma realidade.

A legislação que operacionalizou a legislação foi aprovada já por Manuel Pinho, ainda que o decreto de 2004 seja descrito por alguns especialistas ouvidos pelo Observador como blindado, no sentido em que deixaria pouca margem para alterações por via de portarias ou despacho, talvez para evitar riscos regulatórios ou políticos.

Em 2007, foram também tomadas decisões políticas na energia que, embora relacionadas com passagem para os CMEC, vão claramente além do decreto-lei original. É o caso da extensão em 25 anos do prazo de concessão das barragens à EDP, em troca de um pagamento ao Estado e a atribuição da licença de produção da central de Sines, para além do horizonte do contrato que termina este ano, sem que tenha havido neste caso uma compensação financeira para o Estado. Estas matérias, bem como os primeiros dez anos de aplicação dos CMEC, são o cerne da investigação judicial que já levou à constituição de sete arguidos.