António desce da velha pick-up Land Rover amarela e aproxima-se em sobressalto da sede da Associação Florestal, em Pedrógão Grande. A respiração é ofegante, não contendo o choro mal se aproxima da escadaria logo à entrada, e atira, de mãos pousadas sobre a cabeça e olhos voltados para o céu: “Oh senhora engenheira, oh senhora engenheira! Estão seis meninos, seis pequenitos, desaparecidos, ninguém sabe deles nem dos pais desde sexta-feira. Ligaram-nos agora uns vizinhos, temos que ir até lá, temos que ir, senhora engenheira!” António é bombeiro sapador em Pedrógão Grande há vinte e seis anos. Não tem memória de uma tragédia como a dos últimos dias. Aproxima o rosto do de Tânia Ferreira, técnica florestal, e sussurra-lhe, insistindo, quase clamando: “Temos que ir ver deles, a sério…”

Em redor de Salaborda Velha, em Pedrógão Grande, pouco mais há por arder. Em certos locais, onde as árvores estão tombadas pelo fogo, só a pick-up dos sapadores avança (Créditos: H. Casinhas/Observador)

O vereador da autarquia de Pedrógão Grande, António Pena, está presente e apressa-se a perguntar: “Mas isso é onde, ó Tó?”. “Salaborda Velha, senhor engenheiro, ao pé de Vila Facaia. É um casal de holandeses que está desaparecido – o casal e os seis pequenitos…”, responde, agora com Vítor a seu lado, também ele bombeiro no concelho e com quem partilha a pick-up dos sapadores.

Vítor sugere partir de imediato. E partem: Vítor, António, Tânia Ferreira e António Pena. A viagem (pelo IC8) faz-se aceleradamente em menos de quinze minutos. Em Salaborda Velha a vista em redor é desoladora: casas queimadas, outras a quem o incêndio apenas tocou as paredes por fora, poucas ou nenhumas árvores por arder, fumegando ainda o solo à passagem da pick-up dos sapadores. Chegados à última casa da aldeia, mais nada se avista a não ser floresta ardida. O denso fumo àquela hora da manhã não permite alcançar mais além.

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Vítor insiste que a casa da família é mais abaixo, deixando o alcatrão e avançando ao volante por um estreito percurso de terra – também acinzentada, mas por causa do incêndio –, com árvores tombadas, que a pick-up ultrapassa à força de muitos cavalos e algum cheiro a gasolina queimada no ar. Curva, contracurva, uma após a outra, muitas, até que se avista por fim, afundada num vale, uma casa. “A” casa. Não está queimada; tudo em redor sim – barracões, estufa, um galinheiro, árvores e até a horta, mas a casa não.

Os sapadores (acompanhados pelo vereador António Pena) passam a pente fino a casa isolada num vale em Salaborda Velha (Créditos: H. Casinhas/Observador)

Logo se escuta um latir agudo. Assim que Tânia Ferreira desce da pick-up aproximam-se da técnica florestal dois cães com poucas semanas de vida. “Epá, se os cães estão aqui é porque está aí alguém: Ó-da-casa! Ó-da-casa!…”, atira Vítor, chegando-se à porta entreaberta da sala, onde há roupa espalhada pelo chão e sinais de abandono, atabalhoado e apressado, de quem lá vive ou viveu. Ninguém responde ao apelo do sapador.

António vai procurar pelos quartos logo abaixo, quartos vazios, camas desfeitas nos beliches, mas nem sinal das seis crianças que procura, apenas os peluches que lá deixaram.“Eish, as crianças: não sabemos se estão vivas ou se estão mortas. Os pequenitos! Idades, senhor engenheiro? A nós disseram-nos que tinham entre três e seis aninhos. Não sei. Eish…”, lamenta-se António ao vereador António Pena. “Epá, se calhar desceram até à ribeira [de Pera], é acolá mais abaixo!”, sugere Vítor. “Se desceram, e se o fogo chegou de cima, estão lá todos mortos, estão lá todos!”, contrapõe António, descrente.

Tânia Ferreira procura sinais da família no exterior da casa, entre o (pouco) que não ardeu durante a noite de sexta-feira para sábado: “Há aqui comida, eles deixaram água e pão aos cães, de certeza que conseguiram escapar”. “É isso: eles toparam o fogo e fugiram antes que chegasse”, sugere o vereador de Pedrógão Grande.

“Epá, se os cães estão aqui é porque está aí alguém: Ó-da-casa!” Mas ninguém responde ao apelo (Créditos: H. Casinhas/Observador)

Todos regressam à pick-up, mas só depois de deixar água aos cães, afagando-lhes a cabeça ao partir. Até aí silenciosos, estes voltam a latir. Existem duas saídas do fundo daquele vale em Salaborda Velha, ambas sinuosas. À volta, optam pela mais íngreme e mais distante; a outra já a haviam “batido” na chegada à casa. Há ainda mais árvores tombadas pelo fogo, algumas que obrigam os sapadores a desviá-las para conseguir passar. “Por aqui não vieram. Nem conseguiam vir…”, garante Vítor.

A custo estão de volta à aldeia de Salaborda Velha, um lugar quase deserto por estes dias — mas onde se avista um casal de idosos debruçados na varanda. “Vieram à procura dos holandeses, não foi? Não os vimos, não. Até fomos nós que alertámos a Guarda [Nacional Republicana]. Aquilo não é uma família de muitas conversas aqui connosco, de se ver por aqui — dizem ‘bom dia’ e ‘boa tarde’ –, vivem lá isolados em baixo, mas estamos preocupados com os meninos. Antes de vocês, veio aqui a Guarda, foram lá a casa, voltaram e não nos disseram nada. O meu marido até perguntou se os viram mas eles não disseram nada”, conta a mulher.

O vereador da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, António Pena, entre contactos pelo telefone ainda no local, não descartaria a hipótese de um desfecho fatal que explique o aparente desaparecimento da família. “Há muita gente ainda desaparecida. Isto dos estrangeiros vai ser um problema. São poucos os que aqui vivem e que estão recenseados. Espero que tenham conseguido fugir. Mas vamos continuar atentos à situação e procurar contactá-los.”

As dúvidas são muitas àquela hora da manhã. Serão de facto holandeses? Terão de facto seis filhos? Estarão desaparecidos — e, quem sabe, sem vida — ou apenas ausentes de casa (mas em segurança) por causa do incêndio que lá lavrou? Os vizinhos garantem que sim: o casal holandês e as seis as crianças estão mesmo desaparecidos — mas tendo pouco contacto com a família que vive numa casa isolada da aldeia, tenta-se verificar se assim é. À tarde, da Câmara Municipal de Pedrógão Grande chega outra informação: dizem que o pai se chama “Peter Charles” e é, afinal e segundo fonte da autarquia, belga. Quanto à mulher — será “Julie”? –, não sabem ao certo a nacionalidade. Das seis crianças não há registo de nomes, idades ou sexo.

A família fugiu no sábado (e está a salvo em Alvaiázere)

O Observador sabe entretanto que a família está bem e de saúde. Os pais e os seis filhos fugiram de casa no sábado (e não na sexta-feira) e seguiram para a zona de Alvaiázere, para a quinta de uns amigos do casal.

A informação chegou através de Anna e Sammy, que venderam a casa de Salaborda Velha aos holandeses, e que souberam através de outro casal da zona que o Observador estava a tentar localizar a família. Sim, são holandeses. Ela chama-se Hiskea, ele chama-se Gerrit e têm seis filhos. São os Lindeboom.

Depois de fugirem e de encontrarem abrigo em casa de amigos, contactaram algumas pessoas conhecidas, entre as quais amigos de Anna e Sammy — que, por sua vez, ao cruzar-se com a GNR, ainda hoje, segunda-feira, os informou de que a família se encontraria em segurança.

Anna contou ainda ao Observador que os oito holandeses estão já a preparar-se para voltar para casa.

Existe uma linha criada especialmente para facilitar o contacto entre embaixadas e consulados de outros países. E é o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) em Portugal que transmite as informações recolhidas junto da Proteção Civil. É através desta linha que se podem saber indicações sobre o paradeiro dos cidadãos estrangeiros eventualmente desaparecidos. Fonte do MNE disse ao Observador que foram já contactados por duas dezenas de países.

Esta história teve um final feliz para os Lindeboom. E tanto que precisamos de um por estes dias em Pedrógão.