Saída do parque de moradias por volta das 14h e à chegada da minha boleia recebo a notificação na app do Milhões de Festa com a indicação do local do concerto de Bitchin Bajas às 16h. Um dos poucos concertos cujo local é apenas anunciado horas antes (hoje acontece o mesmo com Riding Pânico). Este iria acontecer no Paço dos Condes de Barcelos. Duas horas: planeia-se na cabeça, parece que dá para almoçar com tempo e arrancar para o concerto. E aprende-se a primeira lição neste dia dois do Milhões: é escusado criar expectativas de que se vai chegar a tempo quando há vinho verde na mesa.

Por volta das 17h30 pedi desculpas a Cooper Crain (Bitchin Bajas) e expliquei-lhe a situação enquanto bebíamos vinho verde (à tarde é uma constante) no Palco Taina. Ele percebeu. Em Barcelos, no Milhões e no Taina tudo se percebe. A terceira lição – já vou à segunda – é de que se há alguém a apontar a pontuação com um papel e caneta, é porque é coisa séria. Foi isso que vi quando cheguei ao Estádio Crocs para assistir à Final do Milhões de Matrecos pelas oito da noite.

Sento-me nas mini-bancadas e por ali fico durante hora e meia. Confesso que não percebi bem que eliminatórias se estavam a jogar até se chegar à final. Tentei que me explicassem mas ninguém me sabia dizer muito bem. Abracei a ignorância e fiquei a ver como até para os profissionais dos matraquilhos aquelas bolas que vão devagarinho e entram (na minha escola chamavam-se “mijinhas”) são tramadas. Senti-me melhor. Havia um misto de qualidade e sorte em quase todas as equipas e isso fez-me sentir que deveria ter participado no torneio. Ganharam os Fintarolas do Porto.

É durante a final que me chega a quarta – e última – lição do dia: se queres muito comer rancho, não esperes. O rancho não espera por ti. Os matrecos tramaram-me o jantar e eu ainda nem sabia que hoje não haveria cabidela às duas no Taina: o fornecedor falhou na entrega do sangue. Foi um dia disfuncional, a maior parte dos concertos foram vistos numa onda de picar.

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© Pedro Roque

Um bocadinho de Brutal Blues no Taina (foi bom reencontrar Anders Hana depois dos Noxagt); mexer-me um pouco com Yussef Dayes; perguntar-me porque é que os Nickelback (Graveyard) estão a tocar no Milhões; ver à distância Cave Story + Duquesa + Ra-Fa-El a tocar músicas uns dos outros; achar estranho porque havia tanta gente a gostar de Moor Mother quando a distância de um palco corta 90% da onda e da intensidade daquilo; e ficar desiludidíssimo com Yves Tumor. “Serpent Music” é tão bom, mas desconstruir isso e associar a uma ideia de performance num palco – mais uma vez – não bate. Bem pelo contrário. Eu não queria que fosse horrível. Mas aquilo não é noise, não é performance, não é um espectáculo: é um nada. É tão fora este ser o seu quarto concerto em Portugal num ano e ser o quarto tiro ao lado. Até há ali uma ideia de concerto, mas é uma falhada.

Há uma razão para a maior parte dos concertos terem sido vistos sem o maior dos entusiasmos ao longo do dia: Sly & The Family Drone. E é aqui que entra a segunda lição: não vale a pena chorar porque se perdeu algo, ou porque não se gostou de algo, no Milhões (e isso funciona para a vida): há qualquer coisa que vai compensar isso. É o lado de imprevisibilidade do Milhões, do nada acontece o especial, o incrível, dentro e fora de palco. O problema no sábado é que a compensação apareceu muito cedo, ao final da tarde.

“Aconteceu-me aquela coisa que tem de acontecer pelo menos uma vez na vida: um dos músicos atirou um copo ao ar e acertou-me em cheio na cabeça.”

Palco Piscina, 19h15, as colunas têm imagens da Rainha Isabel II coladas com fita-cola. As vibrações da coluna durante o soundcheck fazem com que a sua cabeça abane durante uns segundos com alguma violência. Na coluna mais próxima de mim os graves são tão intensos que a cabeça da senhora acaba por se rasgar do pescoço. Fica pendurada. Foi o primeiro sinal de destruição dos Sly & The Family Drone.

Bandas com trocadilhos com nomes de outras bandas não me puxam. Não dá para levar a sério. É normal que muita gente pense assim, é normal que nem se ligue, é normal que se desligue de uma banda só pelo nome com piada. Ainda bem que não o fiz e segui os meus amigos. O que aconteceu no Palco Piscina ontem à tarde não pode ser reproduzido noutro lado, em disco nunca terá piada – até porque a música dos Sly é só assim-assim -, mas as circunstâncias tornaram aqueles 15, 20 ou 25 minutos (eu sei lá) inesquecíveis.

Quatro músicos, baterista, saxofonista, e outros dois que também utilizavam a percussão mas mexiam sobretudo em efeitos. O público está todo à sua volta, a piscina está a uns três metros. Acontece-me aquela coisa que tem de acontecer pelo menos uma vez na vida a alguém: um dos músicos atirou um copo ao ar e acertou-me em cheio na cabeça. Ninguém viu, ninguém se riu (é pena), estava tudo a sentir a intensidade a crescer ali à volta. Ter cerveja na cabeça também faz parte disso.

Toda a gente em altas para abraçar o ruído, para participar (não demorou muito – ou será que demorou? – a que começassem a desfazer tudo e a envolver o público no concerto) naturalmente na cacofonia dos Sly & The Family Drone. A dado momento, um dos músicos começa a fazer crowdsurfing em cima de uma boia, parece que está dentro de uma urna e o destino será o inevitável mergulho na piscina, quase em jeito de cerimónia para pontuar os momentos finais da celebração.

O inesperado e a envolvência fizeram o concerto – e o meu dia (bem, aquela sanduíche de rojões que substituiu o meu jantar também fez o meu dia). As circunstâncias do Milhões e, neste caso, do Palco Piscina, elevam o banal ao incrível em segundos. Os Sly conseguiram isso em menos de um segundo e mantiveram-se lá em cima nos 15 minutos (ou 20 ou v25, eu sei lá) mais importantes das suas vidas. Até parece que nem começou e acabou, foi só algo que simplesmente aconteceu. Convenceram todos que aqueles minutos iam ser históricos. E foram, da maneira que só o Milhões consegue. Já me sinto com autoridade para dizer isso. Já percebo a cena do Milhões de Festa.