Foi no primeiro número da revista Orpheu, publicado no final de março de 1915, que Fernando Pessoa apresentou Álvaro de Campos, o primeiro heterónimo a sair da arca. Campos — que sempre teve um gosto especial por polémicas — acabaria por ser um dos responsáveis pelo escândalo que se seguiria e que fez com que os do Orpheu ganhassem fama de maluquinhos. Além da chocante “Ode Triunfal” do Sr. Álvaro de Campos, engenheiro naval, a revista também incluía outros textos de Pessoa igualmente interessantes — os poemas interseccionistas de “Chuva Oblíqua” e uma peça de teatro, a única publicada em vida pelo poeta.

No que diz respeito a O Marinheiro (drama estático) — era este o título que vinha no índice do primeiro número da revista —, este foi responsável por mostrar ao mundo uma das muitas facetas de Fernando Pessoa — a de dramaturgo —, da mesma foram que a “Ode Triunfal” e o “Opiário” apresentaram com toda a poupa e circunstância Álvaro de Campos. Mas com uma diferença — é que a obra do engenheiro naval permanece uma das mais famosas, enquanto que O Marinheiro é apenas conhecida por uma mão cheia de leitores atentos. Isto deve-se sobretudo ao facto de o teatro pessoano ter recebido muito menos atenção quando comparado com a criação heteronímica. Desde a morte do poeta em 1935, foram poucas as edições de teatro a surgirem no mercado. Uma lacuna que o novo volume da “Colecção Pessoa” (coordenada por Jerónimo Pizarro) da Tinta-da-China pretende preencher.

As peças, reunidas pela primeira vez numa só obra, mostram “uma visão pessoana do enigma da condição humana”, de acordo com os editores.

Teatro Estático, com edição de Filipa de Freitas e Patricio Ferrari, reúne pela primeira vez num livro só todo o teatro estático do poeta, entre o qual se inclui O Marinheiro. É que com a publicação da peça de teatro em 1915, Pessoa apresentou também um novo género dramatúrgico, por ele criado, a que deu o nome de teatro estático. Apesar de O Marinheiro ser o exemplo mais conhecido, o poeta trabalhou em muitas outras peças do mesmo género sem, porém, terminar nenhuma delas (como era comum em Fernando Pessoa). A maioria permanecia inédita.

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Teatro Estático, de Fernando Pessoa, chega às livrarias esta sexta-feira, 25 de agosto

O volume incluiu 13 peças estáticas escritas por Fernando Pessoa em dois períodos distintos — entre os anos de 1913/1914 e 1918, durante os quais Pessoa mergulhou a fundo no novo género, trabalhando em várias peças, e de 1932 a 1934, um ano antes da sua morte, altura em que tentou recuperar textos incompletos ou até mesmo dar início a novos trabalhos. Apesar disso, quase todas as peças permaneceram incompletas, à exceção de uma — O Marinheiro. Estas são as seguintes (por ordem cronológica):

  1. Diálogo no Jardim do Palácio (c. 1913)*;
  2. A Morte do Príncipe (c. 1914);
  3. As Coisas (c. 1914);
  4. Diálogo na Sombra (c. 1914);
  5. Os Emigrantes (c. 1914);
  6. Inércia (c. 1914);
  7. A Cadela (c. 1915);
  8. Os Estrangeiros (1916);
  9. Sakyamuni (c. 1916-1918);
  10. Salomé (1917-1918);
  11. A Casa dos Mortos (c. 1917);
  12. Calvário (c. 1932-1934);
  13. Intervenção Cirúrgica (c. 1932-1934).

Além das peças de teatro — fac-similadas —, que surgem acompanhadas de novas leituras, Teatro Estático reúne pela primeira vez vários outros textos dispersos de Pessoa sobre o teatro estático. No final, um posfácio “evidencia algumas intertextualidades dentro da obra pessoana, assim como diversas influências que contribuíram para o desenvolvimento das peças apresentadas”, explicam os editores na “Apresentação”.

Teatro estático, o teatro sem ação

Mas o que é que é isto do “teatro estático”? Fernando Pessoa definiu-o da seguinte forma: “Chamo teatro estático àquele cujo enredo não constitui ação”. Como explicam os editores no capítulo de apresentação, esta ausência de ação não diz apenas respeito ao enredo, mas também às próprias personagens que não agem, não se deslocam nem conversam entre si. “Nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação”, para usar, mais uma vez, as palavras do poeta.

“A noção de um enredo — de um fio condutor do drama — não têm lugar no estático, que se centra na linguagem como instrumento parcialmente revelador da obscura natureza humana”, afirmam Filipa de Freitas e Patricio Ferrari.

Como já foi referido, as primeiras incursões de Pessoa no teatro estático remontam em 1913, com O Marinheiro. Este surgiu por influência direta da corrente simbolista francesa do final do século XIX e, sobretudo, de Maurice Maeterlinck, um dos expoentes máximos deste movimento. Sabemos que Fernando Pessoa era admirador do autor belga porque tinha na sua biblioteca um exemplar da sua obra dramática, comprada precisamente em 1913 e conservada até ao final da sua vida. Além disso, são vários os estudos que estabelecem um paralelismo entre as peças de teatro de Maeterlinck e O Marinheiro, mostrando que o belga foi de facto “uma influência decisiva na criação teatral de Pessoa, assim como na própria noção de teatro estático”, como referem Freitas e Ferrari.

Apesar da clara influência do simbolismo francês em peças como O Marinheiro, Pessoa — como em tudo o que se fazia — não se limitou a copiar as características do movimento — transformou-o e adaptou-o para criar a sua própria noção de teatro. “É preciso ter em conta que Pessoa não foi um simples seguidor de novos movimentos, mas procurou sempre recriar o seu próprio universo. Neste sentido, o teatro estático não é um mero devedor das diretrizes simbolistas”, salientam os editores. “A criação do poeta não é feita de mera imitação de modelos prévios: ela estabelece-se na conjugação de várias vertentes que incluem o interesse por diferentes áreas do conhecimento, para além da literatura, como a ciência, a teologia, a filosofia e o esoterismo.”

A verdade é que, apesar de se tratar de uma peça de teatro, O Marinheiro aborda temáticas que são “essenciais no universo do autor, como a fronteira entre o sonho e a realidade, a imaginação, o sonho dentro do sonho e o mistério da existência”. Mas não só: os fragmentos que chegaram até nós — e que Filipa de Freitas e Patricio Ferrari apresentam pela primeira vez nesta edição —, também refletem muitos dos temas pelos quais Fernando Pessoa tinha especial predileção.

O teatro estático caracteriza-se por “apresentar inércias, isto é, (…) revelar as almas naquilo que elas contêm que não produz ação, nem se revela através da ação, mas fica dentro delas”, escreveu Fernando Pessoa. Este fragmento foi incluído na edição de Filipa de Freitas e Patricio Ferrari.

Duas das peças estáticas mais antigas, Diálogo no Jardim do Palácio e A Morte do Príncipe, datadas de cerca de 1913 e cerca de 1914, respetivamente, exploram o mistério da existência e o significado da vida. Também o Diálogo na Sombra, de cerca de 1914, aborda uma temática mais ou menos semelhante — o “desespero de o homem desconhecer o que subjaz à sua própria existência e a obscuridade que tal implica”. O tema de Os Emigrantes, também de 1914, também não é estranho à obra pessoa: nesta peça, as duas personagens debatem o que significa ser estrangeiro, “por um lado, a vivência numa pátria diferente e a angústia dessa condição; e, por outro, a noção de que cada sujeito é sempre, para si e para outro, um estrangeiro”.

Ao ler a pequena sinopse de Filipa de Freitas e Patricio Ferrari, é difícil não pensar naquele versão tão famoso do “Lisbon Revisited (1926)”, de Álvaro de Campos: “Estrangeiro aqui como em toda a parte”. O curioso é que alguns investigadores acreditam que o teatro estático de Fernando Pessoa não está assim tão longe dos heterónimos. Teresa Rita Lopes, responsável por dar a conhecer algumas das peças estáticas de Pessoa, acredita que O Marinheiro teve um papel fundamental para a criação heteronímica. Aliás, como salientam Freitas e Ferrari na “Apresentação”, a incursão do poeta pelo teatro (estático e não só) é anterior ao surgimento de Alberto Caeiro e restantes heterónimos (segundo Pessoa, o Mestre Caeiro surgiu na “noite triunfal” de 8 de março 1914). As primeiras linhas de Fausto, por exemplo, remontam a 1908.

“Relembremos que o universo heteronímico — indubitavelmente um dos aspetos mais significativos da sua criação literária — foi definido como ‘um drama com gente’, na ‘Tábua Bibliográfica’ publicada na revista Presença, em 1928”, afirmam Freitas e Ferrari. Talvez o teatro sempre tenha estado em Fernando Pessoa — mais do que muitos dos seus leitores julgam.

*A edição da Tinta-da-China segue a ortografia usada por Fernando Pessoa. Aqui, para facilitar a leitura, decidimos optar pelo uso da ortografia convencional.