Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida. O título pode fazer erguer a sobrancelha aos mais céticos mas o que Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro, responsáveis pela edição, quiseram alcançar com o volume fica claro logo nas primeiras páginas — mostrar um lado do poeta português que a maioria das pessoas não conhece e ao qual não tem — nem pode — ter acesso.

“Há autores cuja presença, cada dia mais esmagadora, produz uma miragem: a de supor que um escritor já é conhecido apenas porque tem presença global”, escreveram os dois investigadores no capítulo de apresentação do livro, que será publicado pela Tinta-da-China a 24 de fevereiro. “Fernando Pessoa não só não é ainda bem conhecido, com também está eclipsado pelos planetas maiores do sistema solar que é a sua obras, como o Livro do Desassossego, as obras de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos e algumas antologias de textos ortónimos…”

No espólio pessoano, composto por cerca de 30 mil documentos, não existem apenas poemas e cartas. Existe uma variedade de documentação, muita dela ainda por explorar e por divulgar, que mostra as diferentes pessoas que Pessoa foi ao longo da vida — o Pessoa que foi poeta, mas também o Pessoa que foi prosador, dramaturgo, criador de charadas, inventor e Íbis do Egito. É um universo complexo, criado por um poeta muitas vezes concebido como “fantasmagórico”, sem nunca o ter sido.

O livro chega às livrarias a 24 de fevereiro. A apresentação irá decorrer na Feira do Livro de Lisboa

É por esse motivo, tentando desmistificar uma personagem que há muito se tornou mito, que Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro reuniram em Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida uma série de documentos “obscuros”, muitos deles inéditos, que mostram “um ser humano cheio de sonhos e projetos, que colocou a poesia no centro da sua existência”. São ao todo 49 lições (surpreendentes) de vida, devidamente acompanhadas por mais de 200 imagens (e até desenhos!), que revelam e introduzem um Fernando Pessoa para muitos desconhecido. É um lado mais humano de um poeta que, nas palavras de Jorge Uribe, “foi maior do que todos nós”, e que ensina a:

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  • Desrespeitar o acordo ortográfico;
  • Interpretar narizes;
  • Reinventar o futebol;
  • Ser livre;
  • Insultar.

Entre muitas outras coisas. Reunimos cinco dessas 49 preciosas lições.

Como argumentar contra Hitler

É certo e sabido que Fernando Pessoa tinha bigode, mas isso não significa que gostasse de qualquer um. Em 1931, quatro anos antes da sua morte, redigiu um pequeno apontamento (em inglês, como muitas das suas anotações) onde fala do de Hitler (quase tão famoso como ele próprio) e da sua falta de sentido de humor:

“Hitler. Seu próprio
bigode é patológico.

falta de sentido de humor.”*

Como referiu José Barreto, editor de Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar, editado pela Tinta-da-China em 2015, Pessoa acreditava que a falta de humor era um sintoma pisco-patológico que afetava alguns líderes políticos, como Franco e — claro — Salazar (a quem Pessoa dedicou alguns poemas curtos). O estudo da patologia de alguns líderes políticos foi, inclusive, um tema a que o poeta se dedicou com algum empenho, como atestam alguns documentos que se encontram no seu espólio.

Como interpretar narizes

Entre os muitos projetos que Fernando Pessoa idealizou ao longo da vida está o de uma obra sobre como interpretar narizes. Sim, leu bem: narizes. De acordo com Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro, Pessoa chegou mesmo a delinear um primeiro plano do projeto, do qual chegaram até nós textos vários, estudos de narizes desenhados pelo próprio poeta e até diagramas (alguns dos quais reproduzidos em Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida).

A preocupação de Pessoa pelos narizes era tanta (ele próprio era dono de um exemplar bastante distinto) que a sua biblioteca incluía vários volumes dedicados ao estudo da fisionomia, com anotações à margem sobre os narizes de alguns poetas. Num deles, pode ler-se (em inglês) que “um homem com um intelecto moderadamente desenvolvido e um grande nariz pode fazer mais do que um homem com um grande cérebro e um nariz pequeno”*.

Um exemplo disso? O poeta inglês Samuel Taylor Coleridge.

Apesar do seu nariz proeminente, não foi por ele que Coleridge ficou conhecido. O poeta é reconhecido como um dos fundadores do Romantismo

No texto “Ensaio sobre a Poesia”, assinado pelo Dr. Jones (uma das muitas personagens pessoanas), Pessoa chega mesmo a explicar as qualidades de um nariz poético que, em boa verdade se diga, não é um nariz qualquer:

  1. Tem de ser grego;
  2. Tem de ter uma protuberância na ponta;
  3. Se não tiver uma protuberância na ponta, tem de ter “uma ponte algo aprofundada”. Ainda assim, tem de ter uma protuberância na ponta — é “inevitável”.

Caso o nariz grego não possa ser obtido, Fernando Pessoa aconselha que “se o seu nariz for curvado e você quiser que ele seja do segundo tipo poético, foi encontrada uma forma de o obter e também de remediar um queixo proeminente, algo que não pode constar numa face poética”.

Como reinventar o futebol

Há uma faceta de Fernando Pessoa que a maioria das pessoas desconhece: a de inventor. No espólio pessoano é possível encontrar listas e listas de projetos e invenções que terão vindo à cabeça do poeta, como a de um carreto de máquina de escrever, cujo o funcionamento se desconhece, e de uma “pasta para papéis”. Outras duas invenções são as referidas por Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro, datadas de 1913 e 1919: são elas o “futebol de mesa” e o “críquete com tabuleiro”.

Do críquete inventado pelo poeta não se conhecem as regras, mas sobreviveu no espólio uma rascunho com as do futebol de mesa, que era jogado num “tabuleiro de 30 casas de comprimento por 20 de largura”, com balizas que ocupavam “seis casas em cada extremidade”. Os peões eram “postos nos locais marcados para eles nos tabuleiros” e tinham “dois poderes” — “o poder de chutar e o poder de se mover”.

“O poder de chutar não pode exceder dez casas, nem o pode de se mover, seis. Os jogadores têm a liberdade de dar aos seus peões o poder de chutar e o poder de se mover que desejarem”, refere ainda as regras do jogo, citadas por Pittella e Pizarro.

O mais impressionante na invenção de Pessoa é que esta aconteceu antes da invenção dos matraquilhos, patenteados em 1923 por Harold Searles Thornon, e do futebol de botões, criado pelo brasileiro Geraldo Cardoso Décourt em 1930. Isto significa que se o projeto de Pessoa tivesse andado para a frente, o poeta português poderia ser hoje reconhecido como o inventor do primeiro jogo de futebol de mesa.

Como não peregrinar a Fátima

Foi em 1917, quando Fernando Pessoa tinha 28 anos, que a pequena localidade de Fátima passou a constar do mapa mental de qualquer português. Foi nesse ano, o mesmo da Revolução Russa, que três pastorinhos testemunharam na Cova da Iria as seis aparições da Nossa Senhora do Rosário, que celebram este ano o seu 100º aniversário.

O fenómeno a que assistiram Lúcia, Francisco e Jacinta não passou despercebido a Fernando Pessoa, que o abordou em dois textos satíricos. Num deles (divulgado pela primeira vez em 2008 por José Barreto), o poeta compara a localidade portuguesa a Lourdes, em França, onde uma criança, Bernadette Soubirous, viu aparecer numa gruta a Virgem Maria. Explicando porque é que não se devem fazer peregrinações ao local, Pessoa compara Fátima a uma “policlínica”, onde “há curas maravilhosas a preços mais em conta”. É que a viagem a Lourdes não saia barata.

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Lúcia dos Santos (à esquerda) e os irmãos Francisco e Jacinta Marto foram testemunhas de seis aparições da Nossa Senhora do Rosário

Num segundo texto, o autor da Mensagem lembra um célebre sapateiro de Trancoso, conhecido pelas suas trovas proféticas. Um “símbolo eterno do que o Povo pensa de Portugal”, Bandarra é, para Fernando Pessoa, “o verdadeiro patrono do nosso País”:

Abandonemos Fátima por Trancoso. Esse humilde sapateiro de Trancoso é um dos mestres da nossa alma nacional, uma das razões de ser da nossa independência, um dos impulsionadores do nosso sentimento imperial.”

Como ser um pássaro

Fernando Pessoa foi Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Pantaleão e até uma corcunda chamada Maria José. Foi ele próprio e foi muitos outros, inclusive uma ave. Dos 136 autores fictícios inventados por Pessoa ao longo dos seus 47 anos de vida (reunidos no volume da Tinta-da China Eu Sou uma Antologia), um deles era uma ave: o Íbis, do Egito. Este Íbis, como lembra Carlos Pitella e Jerónimo Pizarro, diz respeito a, pelo menos, quatro áreas da vida e obra pessoanas.

Algumas das cartas enviadas a Ophélia Queiróz são assinadas não por Pessoa, mas pelo Íbis, uma espécie de nome carinhoso que o poeta usava para se referir a ele próprio mas também à destinatária, a “querida Íbis”. Desde muito cedo que Fernando Pessoa usava a imagem do íbis, não só para se referir a ele próprio, mas também aos outros. Ao seu primo Mário, por exemplo, chamava o “íbis outro”, a filha da Tia Anica era o “íbis combativo” e a tia Palmira, amiga da Tia Anica, era o “íbis jesuítico”.

O Íbis é também autor de poemas — incluindo o soneto “Junho de 1911”, escrito quando o autor completou 23 anos — e objeto de poemas, como “O Íbis, ave do Egito”, de carácter popular.

“Quando vejo esta Lisboa,
Digo sempre, Ah quem me dera
(E essa era
Boa)
Ser um íbis esquisito,
Ou pelo menos estar no Egito.”

Pessoa gostava tanto do íbis que quando decidiu criar uma tipografia chamou-lhe Empresa Íbis — Oficinas a Vapor. O projeto, o primeiro do género criado por Pessoa (que ao longo da vida se dedicou a várias empreitadas comerciais, exploradas por António Mega Ferreira no livro Fazer Pela Vida — um retrato de Fernando Pessoa o empreendedor), durou pouco tempo — abriu em 1907 e fechou passados três anos, em 1910. Apesar disso, existem nos espólio vários papéis com o logótipo da empresa cuja imagem era — claro está — de um íbis, com uma só pata no chão.

De acordo com Pittella e Pizarro, o íbis figura também numa série de caricaturas de um homem narigudo (que provavelmente é o próprio Pessoa) e que mostram o “Homem de Vitrúvio”, de Leonardo da Vinci, a transformar-se no “Homem Vitruvi-Ave”. Mas porquê esta fixação com a ave? Ninguém parece saber ao centro.

Numa conferência proferida em Cardiff, no País de Gales, em 1968, João Nogueira Rosa, meio-irmão do poeta, explicou que Pessoa que “tinha uma ternura estranha pelo íbis”, uma “simpatia que nunca chegou a explicar”. De tal forma que, para fazer os irmãos e sobrinhos rir, costumava imitar a ave no meio da rua.

“Quando saíamos em Lisboa com ele numa rua bastante movimentada, parava de repente e dizia ‘agora vou ser um íbis!’, e equilibrava-se numa perna e punha uma mão para a frente e outra atrás para significar um bico e uma cauda e ficava assim durante alguns segundos, o que surpreendia bastante os transeuntes e nos causava um ligeiro embaraço”, contou durante a conferência Fernando Pessoa – As I Knew Him

* Traduções de Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro.

Imagens: Wikimedia Commons