Laurinda — “só Laurinda, somos lá alguma coisa perante isto tudo?” — olha para o fundo da ponte da Tercena, em Vieira de Leiria. O fumo erguia-se outra vez para lá da fita amarela que a Guarda Nacional Republicana havia pendurado no último domingo. Para lá do homem com colete refletor que, de braços cruzados e pernas abertas, impedia os carros de atravessarem a ponte não se via nada. Laurinda pergunta as horas. São 16 horas e ela suspira: “Está a ver aquela nuvem de fumo? É o Pedrogão, aquilo ainda não parou de arder. Os bombeiros estão lá, estão. Ainda não saíram de lá. Não sei do meu filho, que é bombeiro, há 24 horas”.
A casa de Laurinda sobreviveu às chamas. Sobreviveu “mais ou menos”, conta-nos ela enquanto encolhe os ombros, porque o cultivo que tinha foi consumido pelo fogo. Quando saiu de casa, ao início da tarde, Vieira de Leiria começava a encher-se do fumo que o vento trazia vindo do incêndio que lavrava na Burinhosa, no concelho de Alcobaça. Laurinda foi para Leiria visitar a mãe ao hospital, convencida de que o fogo estava demasiado longe para constituir ameaça. Mas quando a noite chegava e regressava a casa, Laurinda jura ter visto “um monstro, colunas de fumo que sabe Deus” no horizonte: “Estava na estrada e olhei lá para o fundo, para o horizonte. Só via uma nuvem negra e uma luz cor de laranja no horizonte. Que horror, que horror, que horror”.
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“Era como se tivéssemos pólvora no meio do nosso pinhal”
O caminho que Laurinda fez entre o centro de Leiria e Vieira de Leiria está esta segunda-feira escurecido pelo fumo e pelas cinzas. O pinhal que fazia respirar a região centro do país, há mais de 700 anos, quando D. Afonso III o mandou encher de pinheiros bravos para evitar o avanço da areia, foi consumido em quatro horas. Oitenta por cento do Pinhal, ou 9 mil hectares, foi destruído pelo fogo. Os troncos ainda estão fumegantes, as pinhas desfazem-se ao toque e o solo, que ainda está quente, crepita quando é pisado. O que antes era um mar verde de pinheiros e parques de merendas está agora reduzido a cinzas e areias. Era como se as árvores tivessem pólvora no lugar das folhas. Para Ana Clara, uma moradora de Vieira de Leiria e chefe dos escuteiros locais, tinha mesmo.
Esta não é a primeira vez que o Pinhal de Leiria se vê ameaçado pelas chamas. Há 14 anos, um quarto do Pinhal de Leiria sucumbiu ao fogo obrigando o Governo de Durão Barroso a declarar o estado de calamidade. “Isso aconteceu em 2003 e desde então que a floresta não foi devidamente cuidada. O fogo na altura não ganhou estas proporções, mas como o espaço não foi limpo era como se tivéssemos pólvora no meio do nosso pinhal, com vegetação rasteira a servir de combustível”. Às 16 horas, quando Ana Clara saiu de casa para preparar uma atividade que haveria no pinhal daqui a um mês, o fogo estava a seis quilómetros de Vieira de Leiria, mas quatro horas mais tarde “estava em cima de nós”, conta ao Observador.
Tudo começou às 14h30 de domingo, quando as sirenes dos Bombeiros Voluntários de Vieira de Leiria soaram: havia fogo na Burinhosa e eram precisos reforços, porque o incêndio ganhava dimensões incontroláveis. A situação era preocupante, mas previsível: estava muito calor, mas o vento era estável e empurrava o fogo para São Pedro de Moel com uma certa lentidão, recorda Joaquim Vidal, presidente da Junta de Freguesia de Vieira de Leiria, ao Observador. Pouco depois, a Natureza trocou as voltas aos bombeiros: “Quando chegou a São Pedro de Moel, o vento levantou-se de tal forma que fez o fogo correr a uma velocidade extraordinária. Em 40 minutos estava dentro de Vieira”. Havia “fagulhas no ar”, “bolas de fumo” a sobrevoar a região e “línguas de fogo” que abraçavam pinheiros inteiros. “Vieira de Leiria ardeu toda. Nem consigo imaginar o que vai acontecer a seguir. Só nos resta rezar que venha a chuva”.
Às portas dos Bombeiros Voluntários, uma moradora da cidade (que não quis ser identificada), assistiu à correria das forças de combate ao incêndio durante toda a tarde de domingo e a madrugada de segunda-feira. No telemóvel guarda imagens do cenário “dantesco, infernal” que viu da janela do café — que abriu portas para alimentar os bombeiros durante este domingo. Novelos gigantes de cinzas escuras escondiam a vista que a mulher costumava ter para o mar e, entre as nuvens de fumo, espreitavam as labaredas:
O fogo vinha pela Estrada Atlântica e fez arder até os postos de vigia dos guardas florestais. Nem no verão vimos episódio semelhante. Nem em 2003. Eu dizia sempre aqui aos vizinhos: ‘esperem até passar 15 de outubro [data para que foi alargado o período Charlie de incêndios] para ver o que vai acontecer’. Olhe, nem precisámos de passar dessa data. Não há palavras”, conta.
“Parecia que estava a chover fogo”
Rui Filipe Tomás estava a vaguear nas redes sociais quando viu um direto feito por um amigo no Facebook a partir da zona mais alta da praia da Vieira. Estava em Lisboa, mas os pais já lhe tinham dito que havia fogo nas praias do Pinhal de Leiria e que o fumo estava prestes a chegar a Vieira. Mas às 19 horas, quando regressava a casa e conversava com o pai ao telefone, não esperava ouvir o ele lhe disse: havia fogo a 200 metros de sua casa. “Ele nem conseguiu dizer mais nada. Estava a arder uma área de cultivo, que é tratada, mas que estava colada a uma zona de pinhal que não está limpa. O fogo estava no pinhal, tudo o que era ervas secas e altas ardia, e o incêndio encaminhava-se para nossa casa“, recorda Rui ao Observador. Rui não conseguiu chegar imediatamente a casa, porque as estradas estavam cortadas. Tudo o que ia sabendo era o que encontrava nas redes sociais ou o que ouvia na rádio. A rua onde mora foi evacuada e as pessoas estavam a ser levadas para Leiria ou para Monte Real. O pai não foi embora: juntou-se a outros homens da cidade e foi ajudar um vizinho que morava no meio da mata, mesmo ao lado de um barracão com “toneladas de lenha” que ardia incontrolavelmente.
Quando chegou a casa encontrou-a inteira. O vizinho que o pai havia acudido também tinha salvo a casa, mas o primo de Rui perdeu um barco que estava guardado num armazém. E um amigo perdeu a casa, que ficou em chamas. “Ele e o pai perderam tudo. Não têm casa, não têm roupa nem comida. Estamos a tentar reunir algumas coisas para lhes dar”, conta ele ao Observador. Esta noite não fica em Lisboa, onde estuda: quer ficar ali, em Vieira de Leiria, caso algo volte a acontecer.
Gabriel Brito estava em casa quando o fogo chegou. Diz que as chamas já estavam na Praia da Vieira “por volta das duas ou três da tarde”, mas que “tudo parecia tranquilo deste lado, porque o vento estava a empurrar as chamas para o lado da Praia do Pedrógão”. Só a partir de meio da tarde, às 17 horas, é que o vento começou a empurrar o incêndio para dentro da cidade: “Via-se uma nuvem enorme por cima de nós e fogo ao longe. De um momento para o outro, literalmente num minuto, o vento mudou de direção e a rua ficou cheia de fumo”. Da janela do quarto, Gabriel não via nada: fagulhas “tão grandes que parecia que estava a chover fogo” caíam no terreno nas traseiras da casa e incendiavam as árvores do pinhal. Enquanto a mãe se juntava aos vizinhos para combater o fogo, que ameaçava as casas, Gabriel e o pai pegaram em mangueiras e em baldes de água e foram para a rua: a casa dos avós, uma estrutura antiga de madeira, estava a centímetros do fogo. Nunca conseguiram chegar até ao carro: pegaram em t-shirts, enrolaram-nas na cara e fizeram o percurso todo a pé.
Enquanto corria pelas estradas de Vieira a caminho da casa dos avós, Gabriel encontrou um cenário que descreveu como “caótico”: “Eu tenho 1,87 metros e as labaredas que enrolavam as árvores eram muito mais altas que eu”, recorda ao Observador. O fumo fazia arder os olhos, as fagulhas caíam como gotas de água no chão, uma “nuvem monstruosa e escura” cobria o horizonte e os bombeiros tentavam entalar o fogo para não atravessar o rio Liz. Quando chegou a casa dos avós, Gabriel encontrou a casa completamente rodeada pelas chamas. Não havia bombeiros por perto: os que Gabriel viu no caminho estavam a voltar para trás para ir buscar mais água e combater os focos principais de incêndio. A GNR também estava por lá, mas apenas a controlar as estradas. De resto, afirma Gabriel, a tragédia só não foi maior porque a população agiu depressa e sozinha: muita gente molhava as casas e as persianas com água, outras pessoas refugiaram-se na Base Aérea de Monte Real ou procuraram abrigo no centro de Leiria, alguns encontraram as estradas todas cortadas e preferiram ficar no areal, mesmo junto ao mar. Mas todos puderam regressar a casa durante a madrugada. Gabriel também conseguiu salvar a casa dos avós. No parque de campismo, no entanto, não se respirava de alívio.
“Acha mesmo que a Natureza seria assim tão impiedosa?”
De chaves na mão, Henrique Antunes olha para o parque de campismo através dos portões trancados. “Vim de Chaves até aqui para ver se o meu espaço estava bom. Está tudo bem com as minhas coisas. Mas olhe que desde que saí da casa até aqui vim sempre ladeado por chamas. Não houve um único pedaço de caminho em que o fogo me tivesse dado tréguas. Vinha sempre aos meus pés“, diz ele enquanto eleva a voz irritado. Para lá da vedação do parque de campismo, uma dúzia de pessoas corre de um lado para o outro com garrafões de água e máscaras postas no rosto. Outra meia dúzia olha derrotada para as caravanas e toldos de lona reduzidas às carcaças.
Jorge Perdigão é uma dessas pessoas. Não restou nada da caravana em que costumava passar férias com os pais nos anos oitenta no Pinhal de Leiria. Há uma televisão queimada no chão, páginas de revistas de banda desenhada consumidas nas pontas e algumas panelas estorricadas pelas chamas. Não se sabe muito bem como elas chegaram ali: “Isto está tudo limpo, há umas casas ali mesmo ao lado que saíram ilesas e os pinheiros ainda estão longe daqui. A mim disseram-me que tinham sido fagulhas trazidas pelo vento“. Quando lhe perguntamos se desconfia do que esteve na origem deste fogo, Jorge olha para nós e torce o nariz: “Acha mesmo que a Natureza seria assim tão impiedosa?”.
É também esta a teoria de Ana Clara. “É quase impossível haver três ou quatro fogos em simultâneo criados por causas naturais. Estava aquele calor doentio, estava. Mas nada que provocasse nada deste ponto”. Quando viu o fumo a passar, bailarino, para cada vez mais perto do local onde preparava a atividade do grupo de escuteiros, Ana Clara percebeu que o fogo estava demasiado perto e correu para casa: levou os filhos, uma rapariga de 12 anos e um bebé de 18 meses, para casa da mãe e a seguir juntou-se ao marido, aos vizinhos e aos bombeiros para os ajudar. Eram poucos, mas fizeram tudo o que estava ao seu alcance: “A atuação deles foi ótima. Eles são poucos para tudo o que tiveram de fazer. Muitos deles tinham sido chamados para outros incêndios noutros pontos do país e de repente, afinal, o fogo estava à porta deles”, conta a moradora de Vieira de Leiria ao Observador. De acordo com Paulo Vicente, presidente da Câmara da Marinha Grande, houve 375 bombeiros no terreno, 43 militares, 115 veículos de bombeiros, máquinas de arrasto e um meio aéreo só em Vieira de Leiria. E havia reforços vindos da Ortigosa, Leiria, Porto de Mós e Maceira, enumera Joaquim Vidal, presidente da Junta de Freguesia.
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Quando mais bombeiros chegaram a Vieira, Ana Clara saiu dali: “A minha casa é mesmo muito perto do pinhal e eu fiquei assustada. Em meia hora, o fogo chegou a cinco pontos diferentes do pinhal. Quando as escolas onde os escuteiros estavam a dar comida aos bombeiros foram evacuadas, por causa do fumo e da aproximação das chamas, o meu marido disse-me: ‘Vamos embora que não estamos aqui a fazer nada'”. Ele ficou com os bombeiros, mas ela foi com as filhas para casa de amigos no centro de Leiria. Às “duas ou três da manhã” as coisas já estavam mais controladas e família pode regressar a casa. Ana Clara confessa que nunca pensou regressar esta manhã e encontrá-la intacta.
Parecia que não tinha acontecido nada. Sabia-se que tinha havido ali uma desgraça porque havia muito fumo, muito cheiro a queimado e o pinhal estava todo destruído. Mas estava tudo tão tranquilo e tão pacífico. É nestas alturas que percebemos que as pessoas são maiores do que pensamos”.
Vieira de Leiria continua ladeada pelo fogo
De acordo com Paulo Vicente, presidente da Câmara Municipal da Marinha Grande, mais de uma dezena de habitações permanentes foram devoradas pelo fogo. Uma fábrica de cartonagem, um armazém e uma sucata também ficaram à mercê do fogo e alguns sistemas de condutas de água ficaram danificados. “Este incêndio varreu o litoral todo até Pombal.” Se é para haver perdas, que sejam destas: “Não houve acidentes pessoais. É nestas ocasiões que vemos que a nossa população tem o melhor sentido da responsabilidade e cidadania, respeitadoras das regras e das orientações”.
Ainda ninguém dorme completamente descansado. Vieira de Leiria está ainda fumegante e nenhuma chama consome mata naquela cidade, mas está ladeada pelo fogo: São Pedro de Moel continua a travar a luta contra as chamas, Pedrógão ainda não deu tréguas e a Marinha Grande tem sofrido vários reacendimentos desde o início da tarde de domingo. Gabriel e a mãe preparam agora mais mangueiras e mais água caso alguma fagulha trazida pelo vento volte a ameaçar a segurança de quem vive em Vieira de Leiria. Há quem esteja a regar telhados, a fechar janelas e a preparar os carros para o caso de ser necessário fugir. Laurinda continua à espera do filho e diz só esperar “que ele tenha almoçado alguma coisa de jeito”. E Joaquim Vidal, à frente da Junta de Freguesia, conta os minutos para a chegada da chuva e faz contas ao prejuízo “paisagístico, turístico e económico” que um desastre desta dimensão traz a Vieira. Mas essas, diz ele, ainda vão demorar até ficarem fechadas.