Star Wars Battlefront II está à venda há um mês mas só agora — apaziguado o turbilhão crítico, económico e político que rodeou o lançamento — nos debruçamos sobre ele (precisamente na semana em que o mais recente filme da saga Star Wars chega às salas de cinema). O jogo que antecede esta versão foi lançado em 2015, mas foi amplamente criticado pela forma apressada com que saiu, só para tentar apanhar o comboio do regresso da saga de George Lucas ao grande ecrã.
A óbvia falta de conteúdo por parte de um jogo repetitivo e exclusivamente online, que ronda os 70 euros, contribuiu para um aumento da apreensão do mercado em torno da EA, a gigante norte-americana proprietária dos direitos de adaptação da saga para videojogos.
A empresa apressou-se a anunciar o desenvolvimento de um novo jogo, por um lado para apaziguar as vozes discordantes que criticaram o quão “vazio” o último tinha sido, mas também para fazer um “pedido de desculpa” e compensar os jogadores com a promessa de um jogo digno de Star Wars. Mas em vez de “fazer as pazes” com a comunidade, a EA decidiu mudar diametralmente o modelo de negócio e inserir neste segundo Battlefront as infames loot boxes.
O que são loot boxes?
Para compreendermos o fenómeno das loot boxes temos de perceber as diferenças entre os diversos mercados de videojogos. Basta passearmos pelas lojas de conteúdo digital móvel para perceberemos que a grande maioria dos jogos são gratuitos, com o modelo económico denominado free-to-play (ou F2P, como habitualmente são referenciados). São jogos que apesar de serem gratuitos têm sistemas económicos integrados para suportar o seu desenvolvimento e manutenção e em última instância o lucro.
Estes sistemas podem ser as energias limitadas (para os jogadores que não quiserem esperar x tempo para jogar novamente poderem pagar com dinheiro real a possibilidade de “entrar” novamente em jogo) ou o método de loot boxes. Os jogos que incluem loot boxes financiam-se através de “caixas” de conteúdos digitais que incluem itens que podem tornar os utilizadores mais fortes dentro do jogo, por exemplo.
Imaginemos um jogo de estratégia medieval em que as unidades e exércitos podem ser melhorados para que consigamos mais facilmente derrotar outros jogadores. Num jogo F2P o “isco” para o jogador é vender estas loot boxes, cujo interior é desconhecido e determinado por um Gerador de Números Aleatórios (Random Number Generator, ou RNG). O que significa que cada vez que compramos estas “caixas” com dinheiro real existe uma pequena possibilidade de nos calharem itens realmente poderosos, que façam a diferença e compensem o investimento monetário feito.
Os jogos de consola e computador são regra geral títulos, pelos quais pagamos um valor “de face”, seja na venda a retalho ou em digital. O que se passava até ao “contágio” das micro-transações vindas do mercado móvel é que a forma de financiamento dos jogos passava quase exclusivamente pelo valor de venda de cada unidade. Mas o mercado evoluiu e há cada vez mais jogos mainstream a incorporarem sistemas de micro-transações, nos quais podemos comprar objetos cosméticos para as nossas personagens e que pouco ou nada mudam no jogo que não seja estético.
Como modelo económico, as loot boxes são fonte de muitas receitas para os jogos mobile que sendo F2P não têm outra forma de financiamento. O que mudou em 2017 foi que as ligeiras tentativas do mercado mainstream para incorporar este modelo em jogos pelos quais pagamos largas dezenas de euros se tornou demasiado evidente. E se em jogos como Assassin’s Creed Origins e Middle-Earth: Shadow of War a prática das loot boxes era aplicada de forma “subtil” e não intrusiva, a EA — que é conhecida por tentar as práticas comercialistas mais agressivas do mercado (sofrendo por diversas vezes as consequências desses testes) –, utilizou Star Wars Battlefront II para testar a fusão obrigatória entre os dois modelos.
O que mudou para pior
Imagine que vai a uma loja do McDonald’s, que compra um Menu Big Mac e que depois de o comprar é avisado que precisa de pagar um valor adicional pela carne ou de correr pela loja durante um período de tempo específico para que ela seja “desbloqueada”.
Esta comparação extrema é a melhor tradução que podemos fazer a Star Wars Battlefront II. Quando a EA anunciou que grande parte dos personagens emblemáticos da série estavam bloqueados por um sistema de progressão de fundamento muito cinzento, as reclamações foram imediatas. Os pedidos de devolução da compra em algumas plataformas digitais somaram-se e o descontentamento dos jogadores teve repercussões instantâneas, levando a própria companhia a “dar um passo atrás” para minimizar os danos.
Battlefront II possui uma forma de progressão através de loot boxes, de onde saem cartas que colecionadas num sistema exponencial permitem desbloquear o elenco de Star Wars e armas mais fortes. Estas loot boxes podem ser desbloqueadas com créditos ganhos em jogo ou adquiridos de imediato com dinheiro real. Durante o lançamento, as personagens mais caras eram, sem qualquer surpresa, Darth Vader, Luke Skywalker e o restante elenco principal. Um utilizador do reddit calculou que tendo em conta o custo inicial de cada uma das personagens, um jogador teria de fazer grind do jogo durante 40 horas para o conseguir desbloquear sem injetar dinheiro real.
Tudo isto seria compreensivo se Star Wars Battlefront II fosse um jogo F2P, que não é, e não custasse perto de 70 euros. A reação geral contra esta aplicação foi tão grande que a EA não só baixou o custo dentro do jogo para as personagens principais, como retirou os pagamentos com dinheiro real. Mas o mal já estava feito, e as ações da gigante EA caíram a pique. Mas o problema não se fica por aqui.
Gaming ou gambling?
O mediatismo que a EA e um jogo de Star Wars tem é algo comercialmente estrondoso. Mas essa atenção mundial pode ser simultaneamente prejudicial para a empresa, especialmente com o fiasco da aplicação das loot boxes.
Se durante algum tempo o modelo de loot boxes deixou alguns jornalistas e críticos a questionarem a ética da prática — visto que a aleatoriedade do que recebemos versus o que investimos fica distante do conceito de gaming — foi a explosão mediática do caso Battlefront II que fez soar o alarme em vários governos do mundo.
Começou com a Bélgica, com o ministro da Justiça a questionar a área cinzenta que se está a criar entre o gaming e o gambling e o impacto que isso pode ter nas crianças. Os senadores do Havai também denunciaram esta prática como “predatória”. As loot boxes estão na mesa de vários legisladores e a espalhar-se como um rastilho está a discussão sobre a proibição deste modelo, que mistura “gaming, aleatoriedade e adição” nos videojogos. A falta de legislação específica obriga a uma definição destes modelos de negócio, já que em última instância as loot boxes são o modelo de jogo de azar. Jogos de azar encapotados e acessíveis a pessoas de todas as idades, crianças inclusive, disfarçados de modelos de negócio meramente lúdicos.
E o jogo em si? Valerá a pena?
Há muitas vítimas deste teste economicista extremo da EA. Os jogadores com expectativas defraudadas, a própria EA, com as ações a sofreram perdas avultadas, e o mercado corporativo, que vê definitivamente esta área cinzenta a receber atenção governamental e legislativa. Mas talvez uma das grandes vítimas seja mesmo Star Wars Battlefront II, o jogo que está bastantes furos acima do que aquilo que os seus criadores da DICE conseguiram produzir no antecessor de há dois anos.
Visualmente estrondoso, a replicar e a imergir num dos ambientes mais fidedignos de Star Wars que já tivemos, seja nos combates “em terra” sejas nas batalhas de naves espaciais.
Apesar deste Battlefront II estar completamente virado para a componente multiplayer online, a inclusão de um modo de campanha interessante e bem escrita de algumas horas vem dar-nos o conteúdo que pedimos e que a série merecia.
Por outro lado, o seu sistema de loot boxes prejudica o jogo mecanicamente, tornando-o injusto e transformando-o quase no ingrato modelo de Pay-to-Win. É frustrante para qualquer um entrar em combates online e nas primeiras horas de jogo ser carne para canhão contra todos os outros jogadores, que ou têm largas dezenas de horas de jogo em cima, ou já gastaram dinheiro para desbloquear itens e equipamentos melhores.
Basta pensarmos em casos de sucesso dos F2P no computador como um dos maiores eSports da atualidade, o League of Legends, em que somos emparelhados em disputas contra jogadores do nosso “nível”. E que por outro lado não permite a compra de nada com dinheiro real que cause desequilíbrio entre jogadores.
A justiça de qualquer competição (e num sentido geral, também na nossa vida) é a igualdade e equilíbrio de ferramentas e condições, nas quais o elemento diferenciador é a qualidade e o desempenho de cada um. Star Wars Battlefront II atira tudo isso pela janela sob a égide do lucro extremo, causando desequilíbrios entre jogadores e destruindo qualquer ambição de competitividade.
Tecnicamente, Star Wars Battlefront II tinha todas as condições para ser uma excelente adaptação da muito amada franquia de Star Wars. Mas a ganância gritou mais alto que a criação e essas potencialidades foram todas derreadas. Mas há males que vêm por bem: provavelmente um dia iremos olhar para Battlefront II como um dano colateral daquilo que foi a regulamentação de práticas no mercado dos videojogos, que se equilibram em linhas cinzentas. E vamos dar-lhe valor por isso.
Ricardo Correia, Rubber Chicken