Quem viu as coleções que acabaram de desfilar em Nova Iorque ou Londres, de Carolina Herrera a Victoria Beckham, de The Row (das gémeas Olsen) a Tom Ford, percebe que há uma certa adultícia em curso aliada a duas linhas de força: formas simples e muitos detalhes.  Ora é precisamente isso que encontramos numa das mais promissoras jovens marcas 100% portuguesas: a Misci, com os seus vestidos transformáveis, de linhas minimalistas, quase ascéticos, mas onde o diabo se esconde em magníficos detalhes que vêm directamente das tradições rurais portuguesas.

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Crochet, macramé, encanastrados, bordados, técnica da cestaria aplicada ao tecido. Têm pouco mais de um ano de existência e já estão em Paris e no Canadá. Rejeitam andar a reboque das tendências de moda e além de revitalizarem formas artesanais quase perdidas, são também um projecto social feito em parceria com a ala feminina do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Barcelos.

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Misci é uma contração da palavra latina “miscível”, que significa “misturar, juntar”, e é um projecto de Isilda Garcia e Nelson Oliveira, sediado em Barcelos, cujo ponto de partida foi criar roupa que juntasse modernidade e tradição, máquinas e mãos, design e histórias, passado e futuro.

Preto e Branco são as cores básicas e omnipresentes da marca que a juntar às linhas simples evocam o minimalismo dos criadores japoneses e o puritanismo “normecore” dos hipsters

Ao Observador, Isilda Garcia conta que tudo começou como um projecto de criação de luvas feito em parceria com a designer Joana Brochado, mas que depois acabou por se transformar numa espécie de quarto dos brinquedos, onde tudo se podia transformar noutra coisa. “Lembramo-nos daquelas bonecas de papel que havia na nossa infância, que vinham com roupas que recortávamos e depois misturávamos como queríamos para vestir as bonecas e tivemos a ideia de criar roupa à qual se pudesse acrescentar, tirar, misturar partes de forma a que de uma só peça se fizessem várias”. E assim nasceram as Mariquitas, um vestido preto que se pode transformar em 12 vestidos diferentes… ou mais, dependendo da imaginação.

As Mariquitas

A forma é simples, o resultado sofisticado. Cada peça é de uma enorme delicadeza. O vestido preto tem duas versões, manga curta e manga comprida, é feito de um tecido 100% reciclado, que não se amarrota, e é ideal para quem viaja ou para quem não quer ter demasiada roupa no armário. Para transformar cada simples vestido preto com aura de Audrey Hepburn foram concebidas três tipos de peças diferentes: golas, punhos e barras. É aqui que entram os detalhes como as andorinhas bordadas a cristais Swarovsky, o macramé, o crochet, os botões forrados à mão…

Um vestido preto ao qual se podem adicionar golas, punhos e barras até ter pelo menos 12 vestidos diferentes

As golas, têm punhos e barras idênticas que podem ser usadas em conjunto ou separadamente. A imaginação é o limite. Como todas as peças têm linhas simples e são feitas apenas em três cores básicas, preto, branco e vermelho, são ainda facilmente adaptáveis a outras peças. Um simples T-shirt de algodão fica de imediato com um carácter distinto e original. Os punhos também podem ser adaptados a blazers a camisas, a outros vestidos. Nunca um vestido foi tão dinâmico.

Gola branca, com andorinhas bordadas a cristais Swarosvsky, serva para adaptar às Mariquitas ou a qualquer outra peça que tenha em casa

Recuperar tradições rurais portuguesas

Além das Mariquitas — que são uma coleção intemporal, com pequenas variações, a Misci faz ainda uma coleção sazonal, cuja inspiração é normalmente um livro e onde novamente deixam entrar o artesanato português, feito manualmente por artesãs locais.

“Normalmente, cada colecção começa com um história, provavelmente a próxima vai ser a partir do novo romance do Sérgio Godinho. Criamos roupas para as personagens, por isso para cada colecção desenvolvemos um storyboard e depois pegamos em técnicas artesanais de raiz portuguesa e reinterpretamo-las à luz da história. Na colecção que temos agora para a primavera-verão 2018, falamos de várias gerações de mulheres que se cruzam, então fomos buscar as rosáceas que simbolizam o retorno, o crochet aplicado no algodão, tal como as nossas avó e bisavós usavam na roupa interior e na roupa de cama”, explica Isilda Garcia.

Aplicação de detalhes artesanais feitos manualmente por artesãs locais e outras do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo

Apesar de recusar dizer que a Misci é uma roupa de luxo, Isilda sabe que anda lá perto, pois todas as aplicações são feitas manualmente e há peças que são quase 100% fruto do trabalho manual das costureiras que trabalham na marca. “Actualmente, a empresa tem 8 trabalhadores fixos e depois recorre a pessoas externas mediante as necessidades de cada coleção”, diz a empresária que não tendo formação especifica em moda trabalhou vários anos na Tiffosi e na Salsa antes de se lançar neste projecto a solo.

No início de fevereiro, a Misci estreou-se no cosmopolita bairro parisiense do Marais, na concept Store eNeNe-Novos Navegadores, onde se vendem em exclusivo marcas de autor portuguesas. Em Portugal, a Misci está à venda na Hay Carmo, em Lisboa, em lojas multimarca em Amarante e no Porto e tem a sua loja online aqui.

Projecto social com a cadeia de Sta Cruz do Bispo

A prova de que muita coisa se pode esconder sob um nome é que, além da vontade de misturar o novo e o antigo resgatando gestos, texturas e formas de tecer fios que estão a desaparecer, a Misci ligou-se ao projecto de formação que está a ser desenvolvido na ala feminina da cadeia de Santa Cruz do Bispo.

A marca tem ainda uma dimensão social de trabalho colaborativo com reclusas. Na foto uma das peças da coleção outono-inverno 17/18, onde é usada a técnica da esmirna.

“Quando começámos a desenvolver a primeira coleção vimos que não tínhamos pessoas suficientes para fazerem a parte artesanal do trabalho. Soubemos que na cadeia de Sta. Cruz estavam a decorrer oficinas de formação na área dos têxteis e fizemos uma parceria com eles. Demos alguma formação nas metodologias de fazer crochet, forragem de botões, macramé, etc. e algumas reclusas ficaram a trabalhar connosco. Apesar de estarem ainda em regime fechado, todas elas recebem um ordenado pelo trabalho que fazem para a Misci”, conta ao Observador a empresária, que diz ser esse um dos grandes “orgulhos da marca”.

Vestido longo com corpete em macramé já da coleção primavera/verão 2018

“Na sua primeira saída precária, uma das reclusas foi a uma loja onde sabia que estavam à venda as peças e contou que ficou lá apenas a vê-las expostas. Outra, que está quase a sair em liberdade, está a preparar um projecto de ensino de técnica artesanais. Tudo isto aconteceu quase por acaso, mas hoje sinto que a Misci, além de transformar roupas está a ajudar a construir vidas”, diz uma comovida Isilda Garcia.