Em 1959, o poeta Jorge de Sena deixa Portugal para um exílio do qual não voltaria. Morre em 1978 sem que a pátria, entretanto tornada Democracia, lhe tivesse arranjado um lugar para leccionar. Ao longo destes 20 anos trocou com Sophia de Mello Breyner Andresen dezenas de cartas que são um testemunho desse tempo de portas cerradas, sonhos adiados, vigilância e punição.

Em 2016, a cineasta Rita Azevedo Gomes tinha pronto o filme que fez a partir destas cartas, publicadas em 2010, na Guerra& Paz. A obra, que teve subsídio do ICA e honras de competição no Festival de Cinema de Locarno, não tinha, em Portugal, ninguém interessado em distribui-la. Foi em Espanha que se estreou, pela mão da Numax, onde está a fazer carreira comercial há mais de um ano. A partir desta quinta feira, e apenas durante uma semana, Correspondências poderá ser visto em três salas  de cinema portuguesas. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa vai estar esta noite na sessão que passa no cinema Ideal, em Lisboa, e a realizadora confessa: “Pode ser que isto ajude a acender luzes em algumas cabeças”. 

Os actores Luís Miguel Cintra e Rita Durão são apenas dois dos nomes do longo elenco deste filme-ensaio

A simbólica presença de Marcelo não apaga a pergunta fundamental que esta história deixa sem resposta: Como pode um filme sobre dois dos maiores poetas portugueses do século XX, apoiado com dinheiro  estatal, não ter uma sala para ser apresentado?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sena, na sua fúria habitual, na sua língua ferina, nos seus “10 centímetros acima da normalidade portuguesa” como o descreveu José Saramago, haveria de se rir amargamente desta história e citar aquele seu poema lúcido chamado Portugal:

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela(…)
Eu te pertenço mas seres minha, não.

                  (Portugal, excerto)

“Em Espanha, quando o filme estreou em Santiago de Compostela, eu estava lá e vi, no dia a seguir, pessoas sentadas nas escadarias da catedral a lerem a obra reunida da Sophia e sei que o livro da Guerra&Paz também se vendeu muito para Espanha. Aqui, o filme passou no Doc Lisboa e até teve um prémio. Mas isso só tornou mais difícil a sua ida para as salas, porque me diziam que quem queria ver já tinha visto no Doc Lisboa. Agora o Pedro Borges da Midas vai estrear o filme mas se calhar vai ter três pessoas na sala. Depois não há divulgação nenhuma. A RTP pediu-nos um trailer para publicitar o filme e até agora não publicitou nada”, desabafa Rita Azevedo Gomes ao Observador.

[o trailer de “Correspondências”:]

“Há filmes portugueses aos quais é dado um relevo enorme e outros nem se estreiam em sala, sem se perceber qual é o critério para que isso aconteça”, diz ainda a realizadora, que demorou três anos a trabalhar neste Correspondências. “Com pouco dinheiro, com a ajuda de amigos que iam colaborando aqui e ali como podiam. Nunca desisti porque há nestas cartas um testemunho da vida naquela época mas que, ao mesmo tempo, é um pensamento sobre a humanidade, a inutilidade de tanto do que fazemos, que eu queria mostrar, espalhar, universalizar o que eles escreveram”.

Sophia e Jorge de Sena, sob o olhar dos deuses e da Pide

Jorge e Sophia nasceram quase no mesmo dia, em 2 e 6 Novembro de 1919, juntos fundaram os Cadernos de de Poesia, em 1940, onde divulgaram autores nas margens dos movimentos literários aceites ou tolerados pelo salazarismo, a Presença e o Neo-Realismo. Em 1957, Jorge de Sena parte para um exílio no Brasil e depois nos EUA. Regressa para uma visita breve em 1968 e depois em 1974, mas nunca em definitivo. A ligação entre ambos os poetas é pois um tour de force contra as circunstâncias: os desencantos e lutas quotidianas, filhos, dinheiro, problemas profissionais, as frustrações, a vigilância da Pide, as cartas apreendidas. É uma ligação feita mais pela força do que não dizem, do que intuem, da empatia e generosidade com que tentam chegar um ao outro não obstante falarem, tantas vezes, línguas diferentes.

Rita Durão numa evocação das grutas e do mar que eram para Sophia um dos seus lugares miticos

A cineasta Rita Azevedo Lopes leu essas cartas trocadas entre 1959 e 1978 e fez com elas um exercício raro; uma abordagem puramente cinematográfica dessas trocas ou seja, o filme não procura fazer uma ilustração visual das epístolas de Sena e Sophia, mas sim encontrar linhas de intersecção entre estas e a poesia que escreveram, os seus leitores, a força e as formas que as obras de ambos ganharam com a passagem do tempo, mas também evocações das suas vidas, umas reais outras imaginadas. Um filme-ensaio onde se encontram o teatro, a música, o real e a ficção do real. Ou como ela própria o descreve “é um mosaico, com uma grande dose experimental, quis a reação de materiais dispares, como a filmagem com Super 8 e iPad, as cartas, os poemas, as imagens. Não queria fazer um documentário político, queria ir de encontro à poesia do que é dito. Queria também questionar os novos caminhos do cinema…”

De certa maneira encontrei na Grécia a minha própria poesia “o primeiro dia inteiro e puro —
banhando os horizontes de louvor”, encontrei um mundo em que eu já não ousava acreditar.
Agora tenho o espanto de o saber real e não imaginado. O que eu sabia da Grécia adivinhei-o
através de pedras, pinhas, resinas, água e luz. Mas apenas como fragmentos dispersos que a
minha imaginação reuniu. Ali encontrei as coisas todas inteiras e presentes na sua unidade. Não
estou a falar só de coisas, mas da ligação com as coisas (…) o que há ali, além de tudo o mais, é
uma intensa felicidade de existir que nos lava de tantas feridas.”

(carta de Sophia sobre a sua viagem à Itália e à Grécia com Agustina Bessa-Luís).

O desejo universalista que a realizadora tinha para a sua obra dir-se-ia que se cruza com o espírito humanista que sempre guiaram a vida dos dois poetas portugueses e pelo qual ambos pagaram o seu preço: Sena, com o exílio e o esquecimento pátrio, que não deixa de se repetir, como acontece na mais recente edição das obras completas de Luís De Camões, lançada em 2017, pela E-Primatur e assinada por Vitalina Leal de Matos, onde os estudos pioneiros que Jorge de Sena fez sobre Camões são praticamente obliterados, isto apesar da sua reconhecida importância para compreensão nacional e internacional do poeta renascentista. Durante os anos em que foi catedrático no Brasil e na Califórnia, Sena  produziu mais de 2000 páginas de estudos camonianos.

A Correspondência entre Jorge de Sena e Sophia foi lançada em 2006, pela Guerra&Paz e já teve três edições cada uma delas com inéditos

Sophia pagou com a vida mais ou menos destroçada como aconteceu a todos os que nesses anos assumiam o seu antagonismo face ao regime: da família que cortou relações com ela, aos amigos que a desdenhavam, das “visitas” da Pide não só à sua casa, mas captura da sua correspondência. Numa das cartas, a poeta conta a Sena que a Pide apreendeu todas as cartas que ele lhe enviava. Isso ditou que as missivas passassem a ser mais espaçadas e escritas cautelosamente por ela. Já Sena, sabendo que tinha outros leitores, aproveitava para dizer tudo o que não podia:

“Não foi, pois, por desinteresse que tenho estado calado, mas por humana impossibilidade.Espero que esta carta lhe chegue às mãos e se demore nelas. Nunca imaginei que a P[IDE] se tentasse com os meus autógrafos… resta-nos a consolação de pensarmos que ficaram sabendo o que já sabiam ou o que até bom seria que soubessem…” (J.de Sena, Correspondências)

O que sobressai destas cartas e da poesia que Rita Azevedo Gomes com elas entrelaçou para o filme, é a vida em carne viva destas duas pessoas, a sua enorme resistência e coragem. Uma que a morte mitificou, Sophia de Mello Breyner Andresen. Outra que a morte obscureceu, Jorge Telles de Sena. O facto de a realizadora ter optado por mostrar vários poemas noutras línguas, grego, francês, espanhol, inglês, italiano, vai ao encontro de outra importante faceta do trabalho de Sena e Sophia: a tradução. Aliás, um tema que ocupa muitas das cartas. E nem sempre concordavam um com o outro. Sophia não gostava particularmente de Constantin Kavafis, que Sena verteu para português, naquela que é uma das suas traduções mais importantes.

2018, passam 40 anos sobre a morte de Jorge de Sena e Sophia ainda não foi retirada dos currículos escolares. Para o próximo ano passarão 100 anos sobre o nascimento de ambos e Portugal tem um ministro da Cultura que é poeta. Mas é em Marcelo Rebelo de Sousa que se depositam todas as esperanças para que este filme tenha salas onde possa ser exibido e espectadores que o queiram ver.

Cartaz do filme “Correspondências” de Rita Azevedo Lopes

“Correspondências”, que tem no seu elenco Luís Miguel Cintra e Rita Durão estreia-se no Cinema Ideal, em Lisboa, no Cinema Trindade, no Porto, e no Alma Shopping, em Coimbra.