Fernando Peyroteo nasceu em Angola e jogou entre 1937 e 1949 no Sporting, onde conseguiu completar todas as temporadas com mais golos do que jogos. Contas feitas, terminou a carreira com a impressionante média de 1.6 golos por jogo, o que lhe confere o título de um dos maiores goleadores de sempre e figura no ímpar no futebol nacional. Marcou, por exemplo, cinco golos em 22 minutos num jogo. Marcou, por exemplo, nove golos ao Leça em 1942. Marcou, por exemplo, oito golos ao Boavista na época de despedida. Teria feito 100 anos este sábado.

Chamaram-lhe o Stradivarius por ser o elemento mais letal dos famosos Cinco Violinos mas esse era um dos poucos instrumentos que não tocava. Gostar, gostar, era mesmo de ópera. Isso e filmes de cowboys com John Wayne. O antigo avançado é recordado sobretudo pelos golos que conseguiu marcar dentro de campo, mas teve também uma história fora dele, antes de morrer com 60 anos vítima de ataque cardíaco, que o torna especial. E estes são dez capítulos que explicam também o porquê de se falar com tanto saudosismo do goleador nacional.

Como a ginástica sueca construiu um futebolista completo

José Vasconcelos Peyroteo, pai do avançado que desempenhava um cargo superior no estudo e traçado de caminhos de ferro, morreu novo, vítima de ataque cardíaco, e a mãe, Maria da Conceição, professora primária, teve de começar também a dar lições particulares para aguentar uma família com 12 crianças onde apenas os dois mais velhos trabalhavam (ganhando pouco). Enquanto andava na escola, entre os jogos com bolas de trapo ou de borracha, Fernando Peyroteo praticou vários desportos, da natação ao remo, passando pelo ténis, pela equitação, pela esgrima, pelo atletismo ou pelo ténis de mesa, onde chegou a ganhar alguns torneios. Ainda assim, como o próprio reconhecia, se brilhava tanto no futebol era por causa da ginástica: Ângelo de Mendonça, o professor que lhe reconheceu condições naturais atípicas para a prática da atividade física, disse-lhe que só seria bom se trabalhasse outras áreas. Passou dois anos entre a ginástica sueca (passou depois pelos aparelhos), a natação e o basquetebol, sem tocar numa bola de futebol a não ser em brincadeiras. Essa preparação seria essencial ao longo da carreira.

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No primeiro duelo com o irmão, deixou-o a sangrar do nariz

A certa altura, Peyroteo recebeu um convite para ir jogar para o Sporting de Lourenço Marques mas acabou por recusar por ser demasiado novo para ficar sozinho, rumando aí para a Sá da Bandeira onde estava um dos irmãos, Álvaro, também futebolista e gerente do Banco de Angola. No liceu Diogo Cão, começou a jogar pelo Académico e um dia teve mesmo de defrontar o irmão, que ainda para mais era defesa. O normal era o mais novo “encolher-se”, mas acabou por acontecer o contrário: num lance involuntário, agora por tocar com mais força no nariz do irmão e deixou-o a sangrar. Álvaro não lhe levou a mal, ao contrário da cunhada de Peyroteo, Mariazinha, que lhe deu um raspanete. A ligação à família sempre foi forte e, por isso, nunca jogou no Sporting de Moçamedes: por causa de imbróglio do clube com os irmãos, foi uma vez expulso (saiu em lágrimas) da sala quando estava entretido a ver alguns membros a jogar bilhar; mais tarde, quando o convidaram para jogar na equipa, recusou por esse episódio.

Fez teatro e tocou para uma fadista. Só faltou a medicina veterinária

Quando rumou a Nova Lisboa, Peyroteo já conhecia a zona porque tinha passado por lá, pasme-se, com uma companhia de artistas amadores de teatro na revista “Vidairada”. Mais: em algumas partes, acompanhou à viola uma jovem fadista. Estávamos perante um mestre dos sete ofícios, que desempenhou mais um quando estava a jogar no Sporting de Luanda, após aceitar uma proposta que o colocava, futebol à parte, como escriturário na Repartição de Contabilidade da Fazenda Pública. Em abril de 1936, a mãe comunica-lhe que tinha de ir à Metrópole por razões médicas e começa a pensar naquilo que mais gostava: se rumasse a Coimbra, além de poder jogar na Académica, iria ingressar na faculdade para estudar medicina veterinária. Em vésperas de partida no “Niassa”, organizaram-lhe uma festa de homenagem no clube local, juntaram algum dinheiro para ajudar nas primeiras despesas em Lisboa e recomendaram-lhe que fosse visitar as instalações do Sporting. Nunca mais sairia de lá.

Cinema e garotas? Não, primeiro mais uma lição de tática…

O húngaro Joseph Szabo foi um dos primeiros treinadores a marcar uma era em Portugal e também Peyroteo lhe passou pelas mãos. No primeiro treino, gostou do que viu mas, como era norma, puxou pelo miúdo ao máximo (sempre tratando-o por senhor Fernando): aquilo que deveria ser uma coisinha rápida só para ver o que era capaz transformou-se numa “tareia” de duas horas com passes e remates onde tinha de puxar a bola o mais possível ao poste e ir apanhar todas as que saíssem para fora para voltar a chutar. O veredicto acabou por ser positivo, mas tinha de trabalhar a técnica. Desse momento saíram duas histórias: por um lado, no dia em que era suposto ir assinar (e nem chegou a ler antes o contrato), ainda estava na cama ao meio-dia por sentir todo o corpo dorido; por outro, tinha duas sessões a mais do que os companheiros por semana para que Szabo lhe ensinasse mais sobre a parte tática. O próprio chegou a confessar que, em algumas vezes, tinha o bilhete para ir ao cinema no bolso mas ficava nas “aulas” do húngaro com bonecos no balneário. “Senhor Fernando, o seu cinema é este, deixe as garotas. Primeiro tem de fazer-se jogador de futebol e depois pode ter todas as garotas do mundo”, dizia Szabo.

O primeiro jogo num relvado, com pitons e logo contra o rival Benfica

Peyroteo estreou-se em setembro de 1937 pelo Sporting no Campo das Salésias, naquele que na altura se chamava de Torneio Triangular. E logo na estreia, teve pela frente o grande rival Benfica. Os nervos eram tantos que nem ligar os pés conseguiu, tarefa que Szabo não teve problemas em encarregar-se de fazer. Durante os treinos, o húngaro puxava até ao limite pelo avançado mas, ali, sentiu a necessidade de protegê-lo para fintar a ansiedade que vivia e foi por isso que avisou todos os jogadores que, quem gozasse com o estreante, teria de pagar uma multa de 10% de salário. Os leões acabaram por vencer esse jogo por 5-3 com dois golos do miúdo, que teve sobretudo mérito pela forma como se adaptou a jogar pela primeira vez num relvado e com pitons nas botas.

O acidente no balneário antes de um dos melhores jogos da carreira

Peyroteo ganharia com o tempo a alcunha do Stradivarius, por ser aquele instrumento mais raro entre a linha dos Cinco Violinos que formou com Jesus Correia, Travassos, Vasques e Albano. No início, era o Tanque; mais tarde, passou a ser o Júlio, a quem os companheiros diziam na brincadeira que lhe faziam a papa toda. Tinha apenas a superstição de entrar com o pé direito em campo mas, em abril de 1948, naquele que provavelmente foi o jogo mais marcante de toda a carreira, nasceu outra. O Sporting tinha de vencer fora o rival Benfica e pelo menos por dois golos, por forma a empatar com os encarnados no goal average. Venceu por três (4-1) e foi campeão pela diferença de apenas um golo, com um póquer do avançado. O que quase ninguém sabia era o que se tinha passado antes: após ter ido às massagens com Manuel Marques, o responsável deixou de forma inadvertida o algodão embebido em linimento Sloan ao lado e Peyroteo sentou-se em cima dele, ficando com um enorme escaldão. Todos se riram com o sucedido e, depois dos quatro golos, tornou-se uma tradição por dar sorte.

O homem dos recordes que conseguiu desafiar o impossível

Peyroteo ganhou cinco Campeonatos Nacionais, quatro Taças de Portugal, oito Campeonatos de Lisboa, um Campeonato de Portugal e uma Taça Império em 12 temporadas no Sporting, mas foi no plano individual que conseguiu estabelecer alguns recordes que ainda hoje vigoram (e que muito dificilmente serão batidos na Primeira Liga), como os nove golos apontados ao Leça em 1942; os 16 golos em três jornadas consecutivas; os cinco golos em apenas 22 minutos que apontou num encontro; ou o facto de ter acabado todas as épocas com mais golos do que jogos. Os números globais apontam para os 544 golos marcados em competições oficiais, com a certeza de que ficou com uma média de 1.6 golos por jogo no Campeonato, que é ainda hoje a melhor de sempre.

O goleador que deixou o futebol para poder honrar as suas dívidas

Fernando Peyroteo, que na altura tinha um currículo invejável no plano individual e coletivo, abandonou de forma precoce o futebol com apenas 31 anos. Esteve para ser até uma época antes, mas um grupo de sócios juntou-se e angariou o suficiente para manter o avançado de verde e branco. Mas porquê tanta “vontade” de deixar o futebol? Ao contrário do que se passa agora, a grande compensação monetária era ainda o jogo de despedida, cuja receita revertia para homenageado. Com a loja de artigos desportivos que tinha aberto na Baixa à beira da falência, o avançado queria liquidar as dívidas que contraíra por não pretender lesar ninguém. “Fui soldado nas fileiras do desporto nacional e um soldado não foge ao cumprimento do seu dever, seja qual for e em que circunstâncias for! Mas de hoje em diante, reconheço que sou um soldado velho… Quando entro em campo, vou cheio de vontade de jogar mas, depois de meia dúzia de pontapés na bola, apodera-se de mim um enfastiamento inexplicável”, explicou na despedida. O negócio não cresceu, regressou a Angola mas acabaria por viver um fatídico momento após contrair uma rotura do tendão de Aquiles em Espanha: a operação correu mal e, mais tarde, teve de amputar uma perna.

O primeiro técnico a dar antes o onze que estreou Eusébio na Seleção

Um dia, quando estava no elétrico com o treinador Joseph Szabo, Peyroteo ouviu do técnico húngaro uma frase que mais parecia uma premonição: “Se se dedicar ao treino e ouvir bem as minhas palavras, garanto-lhe que vai à Seleção. Se trabalhar com vontade e com sacrifício, não será nada difícil”. Não foi e o avançado deixou marca, como jogador e… treinador: dentro de campo, mesmo condicionado por um período onde as partidas eram escassas (por culpa, por exemplo, da Segunda Guerra Mundial), foi capitão e tem ainda das melhores médias entre jogos realizados (20) e golos marcados (13); fora dele, mesmo orientando apenas dois encontros, ficou como o técnico que lançou Eusébio com a camisola das Quinas e o primeiro a anunciar o onze (neste caso, na derrota por 4-2 com o Luxemburgo) antes do jogo. “Os jornalistas ouviram, com bastante agrado, as explicações que o selecionador entendeu fornecer sobre a escolha dos jogadores e isso, como é óbvio, só contribuiu para sugerir a ideia de que os problemas da Seleção Nacional pertencem, um pouco, a todos os que se interessam pelo futebol”, escreveu-se. A título de curiosidade, as opções para o 2x3x5 em outubro de 1961 foram as seguintes: Costa Pereira; Mário Lino, Hilário; Pérides, Morato, Lúcio; José Augusto, Coluna, Cavém, Águas e Eusébio.

O amante de ópera que via filmes de cowboys de John Wayne

Fora de campo, Peyroteo sempre se mostrou alguém que gostava de aprender mais. Daí nasceram vários interesses que foi tendo durante o tempo: adorava óperas, sobretudo as de Puccini, como A Tosca, La Bohème ou a Madame Butterfly (e arriscava cantar algumas partes em casa, mesmo estando longe de ser um tenor, além de tocar vários instrumentos); perdia horas a ver filmes de cowboys de John Wayne (e viu o Ben Hur em Cascais, onde tinha uma casa para andar perto da praia) ou peças de teatro no Parque Mayer (onde tinha de ficar a dar autógrafos, mesmo depois de já ter abandonado o futebol); e gostava de preparar caldeiradas de cabrito para juntar amigos em sua casa, alguns deles que eram adversários em campo mas com quem mantinha relação, e poder estar a contar anedotas.