“A arquitetura não se põe num sítio, precisa de nascer desse sítio”, defende Marina Tabassum, arquiteta nascida no Bangladesh em 1968 e hoje responsável por um estúdio em nome próprio, situado em Daca. Trabalha quase exclusivamente no país de origem e aí desenvolve um projeto de habitação de baixo custo. Os efeitos da construção nas cidades e o papel social da arquitetura são temas a que tem dado atenção.

Dirige o Bengal Institute for Architecture, dá aulas na Universidade BRAC, em Daca, e no ano passado foi professora convidada na Faculdade de Design da Universidade de Harvard, nos EUA.

Uma mesquita que projetou para Daca foi uma das vencedoras do Prémio Aga Khan de Arquitetura 2016 — galardão atribuído desde os anos 70 a projetos do mundo islâmico. Desde então, captou a atenção internacional, mesmo se trabalhar fora do Bangladesh não é um dos objetivos. Terça-feira à tarde, horas antes da conferência “Construir no Bangladesh”, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a arquiteta partilhou com o Observador a visão pessoal sobre a função da arquitetura contemporânea.

O prémio Aga Khan vale um milhão de dólares, mas o projeto da mesquita custou apenas 150 mil euros.
Na verdade, não recebi um milhão de dólares, porque esse valor foi dividido por todos os vencedores, que foram seis em 2016. A parte que me coube também foi dividida entre mim, o cliente, os engenheiros e todas as pessoas que tiveram responsabilidades.

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Que importância atribui ao prémio?
É um prémio muito prestigiado e por isso acho que os meus objetivos de trabalho saíram fortalecidos, houve um reconhecimento da minha prática, é como se dissessem que o caminho que escolhi é o mais acertado. O meu caminho é difícil. Trabalho com objetivos sociais, comunitários, culturais, não propriamente ao serviço da arquitetura comercial. Além disso, o prémio deu um sinal às novas gerações de arquitetos no Bangladesh. Escolher um caminho difícil na arquitetura é uma forma de nos limitarmos, porque, regra geral, não fazemos projetos lucrativos, não nos tornamos estrelas, não criamos edifícios pomposos. Logo, não é um caminho atraente para os mais novos.

Porque é que rejeita a “arquitetura comercial”?
Foi uma decisão muito consciente, desde o início. A arquitetura não é um produto que se venda, embora seja isso que vemos acontecer. Para mim, a arquitetura é uma paixão, uma arte, uma ferramenta para melhorar a vida, para dar novo significado à vida, é uma responsabilidade. Podemos explorar outros caminhos sem ser apenas a vertente comercial. Podemos ter outras preocupações que não apenas a de vender uma coisa com uma componente visual forte.

Essa é uma visão partilhada pela sua geração?
Precisa de ser partilhada por outros, e de certa forma já é. Vejo arquitetos da minha idade, ou mais novos, tentarem superar o paradigma que a arquitetura conheceu nas últimas duas décadas. O que este século nos mostrou até agora foi uma forma de capitalismo que cria enormes diferenças entre ricos e pobres. A arquitetura está hoje ao serviço do poder e do dinheiro, com edifícios megalómanos. A maioria das pessoas não pode pagar a um arquitecto e não me parece que essa seja uma atitude muito responsável em termos profissionais. Nesse sentido, é necessário que mais arquitetos sigam este caminho, para poderem chegar a cada vez mais pessoas.

O que é que a recente experiência em Harvard lhe mostrou em termos das atitudes dos estudantes de arquitetura?
Propus-lhes um laboratório de projeto muito simples, para construção de uma casa de dois mil dólares. Foi um dos projetos mais procurados pelos alunos. E todos eles têm professores muito respeitados e conhecidos. O que os alunos me disseram foi que tinham escolhido o meu projeto porque lhes pareceu muito concreto e necessário, algo a que estão pouco habituados. Só pude trabalhar com 13 estudantes, mas muitos mais queriam ter entrado. Penso que os mais novos já começam a perceber que há mais para além dos grandes edifícios que acabam por não ir ao encontro das necessidades da população.

O mesquita que lhe valeu o prémio Aga Khan não tem o tradicional minarete. Porquê?
Se olharmos a história das mesquitas, percebemos que, no início, elas não tinham qualquer função simbólica. Eram apenas espaços em que muçulmanos se reuniam para rezar, virados para determinada direção geográfica, guiados por um imã. Os minaretes são, no fundo, uma imitação das torres das igrejas e foram integrados no islão como forma de apelar aos fiéis, de chamar por eles, no momento da reza. Atualmente, não precisamos disso, a não ser como ponto de referência na paisagem. Não quis incluir um minarete porque queria não apenas uma mesquita, mas também um espaço de reunião. O minarete é um elemento simbólico e não me interessou ir por aí.

A mesquita está de portas abertas atualmente?
Sim, as pessoas juntam-se ali para rezar.

Recebeu algumas críticas por ter criado um edifício religioso fora do comum?
As pessoas aceitaram. Há outras mesquitas sem minarete no Bangladesh, ou melhor, sem cúpulas – porque acabam por ter sempre algum elemento que evoca o minarete. Mas, portanto, como há vários estilos de mesquita, as pessoas não tiveram uma atitude de rejeição. Além disso, esta mesquita tem uma certa ligação às que existiam no Bangladesh nos séculos XII e XIV, fui buscar a essência dessa época e dei-lhe uma expressão contemporânea.

Mesquita de Bait Ur Rouf, em Daca, desenhada por Marina Tabassum

O seu trabalho consiste num regresso à essência das coisas?
Sem dúvida, sempre. Essência, mas também tempo. Temos de ser pessoas do nosso tempo, da nossa época, eu sou deste tempo e a minha arquitetura precisa de ser do meu tempo. Vou ao passado buscar a essência, a história e a origem cultural das coisas, e torno tudo isso contemporâneo.

O que mudaria se trabalhasse, por exemplo, na Europa?
O método seria idêntico, mas de certeza que a linguagem seria diferente.

Qual é o método?
Baseia-se em estudar o ambiente em torno do local em que se situa um edifício. É como uma árvore. Se tirar uma árvore de um país europeu e a levar para outro país, com outro clima, ela reage e desenvolve-se de outra forma. Pode até morrer. A arquitetura também nasce da terra, por isso preciso de entender o contexto em que trabalho. Preciso de conhecer a história do local e do povo, a cultura, tudo. Daí extraio a essência e só depois é que crio um edifício. É preciso um diálogo com o ambiente à volta. Não é apenas desenhar um projeto e instalá-lo num sítio. A arquitetura não se põe num sítio, precisa de nascer desse sítio.

Isso implica um estudo profundo de cada local?
Muito estudo, muita pesquisa.

Faz essa pesquisa sozinha ou pede que recolham dados para depois ler?
Sozinha, sim, até estar satisfeita com os elementos que tenho. Mesmo que o meu cliente goste do meu estilo, não consigo avançar enquanto não entender o sítio para o qual vou projetar. É um processo contínuo e demora bastante tempo.

Que materiais prefere?
Não tenho preconceitos com materiais, trabalho com muita variedade. Tenho usado muito o tijolo, que é comum no Bangladesh, somos um delta, a terra é a matéria mais abundante que temos. É cozida e transformada em tijolo, é o material mais simples e fácil de encontrar. Também uso o vidro. O nosso Monumento da Independência, que também criei [2013], foi feito em vidro. Depende do contexto e daquilo que o sítio pede. Não sou eu que decido, o sítio diz-me o material que terei de usar.

Tem trabalhado quase em exclusivo no Bangladesh. Gostaria de internacionalizar o seu trabalho?
Não diria que tenho esse objetivo. Se me pedissem um projeto para Lisboa, por exemplo, não me importaria de experimentar, mas implicaria uma pesquisa intensa e demorada. Teria de viver aqui algum tempo, para entender a cidade. De resto, nunca temos a solução certa, mas podemos andar lá perto.

Se lhe encomendassem um projeto milionário para o Qatar ou a Arábia Saudita, aceitaria?
Se me encomendassem esse projeto porque respeitavam e acreditavam no meu método de trabalho, por que não? Se fosse apenas para terem um edifício com a minha assinatura, teria muitas dúvidas. Não gostaria que me impusessem limites ou que não respeitassem a minha abordagem.

É verdade que apesar de a sua família ser muçulmana teve uma educação cristã?
Em criança, estudei numa escola de missionários americanos. Tínhamos aulas com freiras, havia uma capela na escola, tive colegas cristãos. Cresci num ambiente multi-religioso, sim.

Que opinião tem sobre a polémica que de tempos a tempos ressurge em alguns países europeus quanto à construção de mesquitas?
É um assunto complexo. Diria que se uma certa parte da população segue determinada fé, temos de permitir que as pessoas pratiquem a sua fé. Isto implica tolerância e respeito, de parte a parte. É o que falta atualmente. Não há respeito uns pelos outros. Os problemas nascem aí. Não é possível viver em paz quando não respeitamos a fé dos outros, seja na Europa ou em qualquer outra parte do mundo.

A arquitetura é um sonho de criança?
De maneira nenhuma. Apareceu na minha vida como um acaso, logo a seguir ao liceu. Venho de uma família de médicos e engenheiros, só tecnocratas. E esperava-se que eu seguisse os mesmos passos, mas isso não me interessava. O meu pai é que sugeriu a arquitetura e a partir daí fiz uma descoberta. A arquitetura passou a ser exatamente o que eu achava que fazia sentido na minha vida. Não foi fácil, porque só havia uma faculdade de arquitetura no Bangladesh, com apenas 50 vagas para três ou quatro mil candidatos a nível nacional. Trabalhei muito para chegar lá.

O que é que hoje procura transmitir aos seus alunos?
Na verdade, não se ensina arquitetura a ninguém numa faculdade de arquitetura. A arquitetura não se ensina, é um processo criativo. O que podemos fazer é estimular e inspirar, é isso que procuro fazer. A arquitetura não é abrir um livro e ler ou trabalhar das nove às cinco num atelier, é um estilo de vida, 24 horas por dia, envolve-nos de forma permanente. Ser arquiteto é um processo, demora o seu tempo. Um arquiteto não nasce ao fim de cinco anos de faculdade. Como em qualquer área criativa, é preciso por o cérebro a trabalhar, nós somos uma fábrica de ideias e precisamos de nos enriquecer através da música, da literatura, da história. Temos de nos nutrir para depois darmos alguma coisa aos outros. É isso que digo aos meus alunos.

Quais são os desafios da arquitetura contemporânea?
Não sei… Quando se diz que um dos desafios é o de prestarmos tanta atenção ao entorno quanto ao projeto arquitetónico eu só posso achar que sempre teve de ser assim, ainda que nem sempre se tenha praticado. Quando se faz arquitetura comercial dá-se importância ao bloco que se construiu e não ao ambiente em volta desse bloco. A arquitetura é muito mais do que os edifícios. O edifício é a porção de terreno que nos é dada para trabalhar, mas isso tem reflexos na cidade, no país e no tempo. Se um edifício não assume a responsabilidade de ser da época em que está a ser construído, pode fazer-nos voltar atrás. Quando se desenha um projeto ou se faz uma proposta de urbanismo tem de haver responsabilidade e é isso que acho que nos falta hoje. A pressão é enorme, temos de fazer tudo depressa, e nem tudo pode ser rápido.

Do pouco que já viu, o que lhe parece a arquitetura de Lisboa?
Passeei um pouco pelo centro da cidade e foi agradável. Estar numa cidade histórica da Europa é sempre agradável. O centro histórico de Lisboa tem uma personalidade muito bonita, diferente da de qualquer outra cidade europeia. Reparei que estão a surgir muitos edifícios novos junto ao rio, uma arquitetura contemporânea muito diferente daquilo que a cidade já conhece. Talvez o progresso e o tempo peçam sempre novas linguagens arquitetónicas, e podemos ter sobre isso diferentes opiniões, mas é assim mesmo que as cidades mudam. Há sempre camadas sobre camadas.

O Centro Cultural de Belém, onde vai dar a conferência, foi inaugurado em 1992 e na altura recebeu muitas críticas. Dizia-se que um edifício tão marcante não deveria estar ao lado de um mosteiro com 500 anos. Que opinião tem?
É um edifício com uma presença forte, sim. Por vezes, alguns dos meus edifícios também são muito marcantes, depende da localização. Na zona do mundo em que trabalho, a construção é feita de maneira informal, não há muito planeamento, pelo menos não tanto como aqui na Europa. Uma cidade como Daca tem crescido sem forma. Por isso, quando decidimos construir algo com uma presença forte estamos, de alguma maneira, a introduzir ordem no caos. Em locais em que essa ordem já existe, sublinhar a ordem pode ser excessivo. Talvez este edifício pudesse ser um pouco mais leve.