Em Março de 2013 fui com uma amiga a Londres para ver o Louis CK a atuar no Hammersmith Apollo. Fã da maneira crua como CK disseca o mundo e o que raio fazemos aqui, lembro-me de ter ficado surpreendida e agradada com um excerto sobre como as mulheres arriscam em ir em encontros românticos com homens que mal conhecem, já que “globalmente e estatisticamente, os homens são a primeira causa de ferimentos e caos para as mulheres. (…)  Se fores um homem, tenta imaginar que só podias namorar uma criatura meio leão, meio urso e esperar que fosse simpática”.

Lembro-me de ter pensado “que tipo respeitador das mulheres, que ótima capacidade de empatia para com o género oposto”.  Em Novembro de 2017, quatro anos e meio depois deste espectáculo de stand up, Louis foi acusado de coagir mulheres a verem-no masturbar, algo que o próprio admitiu sem escamotear. Decidi nesse dia que ia efectivamente parar de tentar delinear traços de personalidade dos comediantes com base nos seus textos. Por mais pessoais e convictos que nos soem. Ou então sou só eu que compraria um carro usado ao presidente das Filipinas, reputado sociopata.

A empatia que vi em Louis CK é exactamente um dos atributos que o crítico da Vulture disse faltar em “Humanity”, o mais recente espectáculo de stand up de Ricky Gervais que chegou agora à Netflix. Durante cerca de uma hora e um quarto, Gervais trucida o que mais detesta nas pessoas em geral, fazendo-se passar ele próprio por uma criatura horrível em particular – obcecado com o seu dinheiro, a sua fama e a sua superioridade moral. E, mais uma vez, eu arrisco em tentar adivinhar a pessoa real com base no modo como se comporta em palco, incorrendo provavelmente num erro de análise. Ou será que não?

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A verdade é que o humor de Gervais se tornou menos humano (irónico, tendo em conta o título do especial), o que é uma decisão artisticamente válida, mas na minha opinião artisticamente menos interessante. “Sou tão rico que nem sei quanto custa um litro de leite” não é uma ideia com muita graça, mas tem ainda menos se for um exercício de “com a verdade me enganas”.

Conheci Ricky Gervais como 99 por cento das pessoas que seguem o seu trabalho: através da revolucionária sitcom “The Office”, que mudou o paradigma de como fazer comédia televisiva.  Foi o grande bastião do humor desconfortável, que tinha como poster boy David Brent, um chefe auto-fascinado com uma noção débil de como lidar com os seus subordinados que insiste em achar que são seus amigos (fun fact: tive um chefe assim e é menos divertido na vida real do que era na série).

Desde aí que tenho acompanhado o seu trabalho na sua quase totalidade — há filmes dispensáveis e a série ”Derek” nunca me convenceu –, mas recomendo sempre a quem começa a interessar-se pelo comediante inglês que vá directo para os seus espectáculos de stand up: “Animals”, “Politics” e “Fame”. Todos eles do melhor que já vi feito em stand up. Todos eles temáticos, tal como sucede agora “Humanity”, uma ode de Gervais sobre o quanto detesta pessoas (“nem sei porque chamei isto ao espectáculo, não sou propriamente um fã”). E se o melhor humor é aquele que é relacionável, quem nunca equacionou mandar toda a humanidade para uma arriba em dia de tempestade?

Apesar de me ter mantido atenta à carreira, há já alguns anos que deixei de me interessar pelo homem. Deixei de seguir as redes sociais, onde está mais ocupado em proclamar-se incrível do que em ter graça (ainda mantive o instagram porque sou uma tansa pelas suas fotos de gatinhos, mas até disso desisti). Deixei de ir a correr ver as suas entrevistas nos talk shows da moda, porque a persona cagona e vagamente odiosa que já teve tanta graça começou a imiscuir-se demasiado com o homem real – ou pelo menos foi o que me pareceu, mas como já se viu acima há a possibilidade de eu ter o discernimento para primeiras e décimas quartas impressões de um frasco de pickles.

O curioso é que eu e Gervais até temos pontos de vista semelhantes em relação ao mundo, do ateísmo aos direitos dos animais, da exasperação com a falta de capacidade de tanta gente em interpretar discurso alheio à convicção de que a comédia serve também para curar as feridas de sabermos que vamos morrer. Mas Gervais comporta-se como o puto popular do liceu que não nos acha dignos de estar perto dele e que só sabe conversar em modo bully. Boneco ou realidade, só o saberia com alguma certeza na realidade paralela em que acabasse a beber uma cerveja com ele.

“Humanity” surge, não casualmente, numa fase em que o mundo parece dividir-se entre o politicamente correcto e a liberdade de expressão, como se ambos fossem opostos. Eu trabalho em comédia há 15 anos e já não consigo sequer conter o bocejo quando oiço a pergunta “afinal, quais são os limites do humor?”. É um diálogo de surdos entre pessoas com a capacidade de debate de uma alforreca – e há surdos no lado “correcto” e no lado “livre”, que conseguem ambos tão facilmente ir do válido ao tolinho.

É com este contexto de “irra, já não se pode dizer nada” que tanto angustia comediantes que se dá aquele que é então o primeiro espectáculo de stand up de Gervais em sete anos. E é à boleia de estar tão concentrado em explicar ao mundo que sim, pode gozar com quem muito bem entende que Gervais se torna mais panfletário, mas infelizmente menos engraçado. O problema não é a ideia, válida e bem defendida, de que brincar com coisas más não faz de nós más pessoas. Nem a de que estamos mais obcecados com opiniões do que com factos (ter descoberto alguém que partilha o meu asco por voxpops e fóruns de opinião público já era o suficiente para ter valido a pena ver este espectáculo). Nem o rant contra as redes sociais nem a explicação de que há uma diferença entre alvo e tema quando se constrói uma piada. O problema é que muitas das piadas são preguiçosas, adolescentes, previsíveis ou simplesmente demasiado longas apenas para defender um ponto de vista mais arriscado. Há alguns bons momentos, mas atolados no meio de entulho que chega a ser irritante.

Gervais pode fazer e dizer o que muito bem entende como pessoa, humorista, contribuinte, ateu, twiteiro, dono de uma gata ou que mais carapuça enfiar. Mas quando se é um dos melhores do mundo nisto de construir piadas, é uma pena que tamanha inteligência e acutilância estejam mais preocupadas em mostrar superioridade intelectual do que em construir humor memorável como tantas vezes já fez.  De “Humanity” fica pouco na memória e isso preocupa-me mais que tudo o resto.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa