A fronteira imaterial que separa um bom filme de animação de um bom videojogo já há muito que foi ultrapassada. Talvez para isso tenha contribuído, e muito, o lançamento de Ni No Kuni: Wrath of the White Witch, no Japão, em 2011, resultado de um trabalho conjunto entre dois históricos estúdios japoneses, um de videojogos — Level-5 — e um de animação que quase não necessita de apresentação, mas cujo nome é sinónimo de excelência: Ghibli.

Ao contrário do primeiro jogo, nesta sequela, o estúdio de Miyazaki não tem um papel direto, ainda que alguns dos seus animadores tenham colaborado na definição artística do mundo que continua fiel ao imaginário cinematográfico do estúdio Ghibli. É , aliás, impossível não ficar conquistado pelo nível de brilhantismo visual deste jogo, onde a fluidez das animações é tão orgânica que duvidamos se em alguns momentos não existe mão humana e animação tradicional envolvida. O mundo é visualmente mais detalhado do que sonharíamos e  a atenção ao detalhe vai ao ponto da individualização de praticamente todos os “figurantes” que habitam este mundo.

Sendo um mundo de fantasia medieval com laivos de cultura nipónica, é uma verdadeira delícia explorar as diversas partes deste mundo verosímil, estranhamente familiar, e que sentimos muitas vezes como um agradável déja vu das ambiências que os filmes de Miazaki e companhia nos ofereceram ao longo das décadas. Um dos exemplos mais brilhantes é Goldpaw, uma interpretação do Japão feudal do que poderia ser uma Macau da época repleta de casinos, e onde quase todos os habitantes são cães antropomórficos.

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A qualidade do argumento permite-nos este mergulho direto na suspensão da descrença de Ni No Kuni II: Revenant Kingdom. A abertura é inesperada: vemos uma coluna de veículos do Presidente dos EUA a ser brutalmente interrompida com um ataque de um míssil nuclear. Depois de um clarão, o Presidente Roland acorda mais jovem num castelo medieval, onde é surpreendido com uma criança que tem orelhas de gato e se chama Evan Pettiwhisker Tildrum. Um fortuito acontecimento do destino que permite a Roland salvar a vida de Evan no preciso momento em que um golpe de Estado o depõe como monarca de Ding Dong Dell e o coloca em fuga pela sua própria sobrevivência.

É aqui que Ni No Kuni II: Revenant Kingdom se abre e mostra o quão ambicioso é. Sustentado sobre uma linha narrativa aparentemente simples — a missão de Evan é conseguir o apoio de diversos povos e um novo Reino unificador de todas as nações –, temos um jogo composto por mecânicas distintas que são aparentemente demasiado difíceis de equilibrar e de juntar. Mas como percebemos rapidamente, a experiência que a Level-5 já tem a produzir alguns dos melhores RPGs nipónicos das últimas décadas permitiu-lhes pegar nessa ideia ambiciosa e fazer dela um dos grandes jogos do género.

O combate, como afirmámos na nossa antevisão, continua presente em duas linhas distintas. A primeira, e mais presente, é a RPG de ação, na qual que temos três personagens (escolhidas por nós a partir do elenco disponível) e podemos alternar livremente entre elas, derrotando uma série de inimigos numa área delimitada. Este sistema de combate é um dos momentos brilhantes do jogo, que inclui nuances, aplicações de táticas para explorar as fraquezas dos inimigos e as forças do nosso elenco, como alternar entre armas ou utilizar a ajuda das pequeninas criaturas que nos seguem em combate.

A já referida fluidez de animação e o brilhantismo visual ajudam a criar todo o efeito de espetacularidade nos combates, seja com grupos de inimigos ou mesmo com os grandes monstros que teremos de derrotar. A segunda é mais tática e passa mais a ideia de defesa de um Reino, na qual entramos num modo “quase” de jogo de estratégia e que controlamos Evan e alguns batalhões a derrotar exércitos invasores.

A partir do momento em que começamos a ter algumas nações seguidoras e que criámos um pequeno Conselho Governativo, Evan cria Evermore, o novo reino, com a ajuda dos cidadãos que vão chegando das áreas que visitou e que acreditam na sua filosofia e bondade. E é aqui que entra mais uma camada mecânica de No No Kuni II, a da gestão de um Reino. Além das cenas de ação que fazem parte do espetáculo e da dinâmica deste RPG, existe uma fase mais compassada que atingimos sempre que nos sentamos no trono de Evermore. Aqui, abrem-se menus de gestão do reino, o que inclui recolher impostos, construir novos edifícios e serviços, atribuir tarefas e profissões aos cidadãos e expandir os limites do próprio Reino. São estes serviços e os upgrades progressivos que vão dando novas armas, armaduras e magias para enfrentarmos os perigos crescentes com os quais nos cruzamos no mundo. E que vão aumentando a reputação de Evermore para o mundo.

Este jogo tem uma grande conquista para os jogadores, o de permitir que o ritmo do jogo seja pautado por eles. Do combate à exploração, à interacção com as muitos personagens com quem nos cruzamos e que nos dão missões opcionais, ou até ao ato de gerir o próprio Reino, há muitos componentes distintos e todos eles são desenvolvidos de forma exímia, permitindo momentos díspares de fôlego ao jogador. Se nos apetecer avançar na história fazê-mo-lo ou podemos apenas saborear o jogo e ir cumprir missões secundárias ou conhecer novos sub-enredos de personagens que não conhecíamos. O ritmo, a velocidade e o nosso foco depende apenas das nossas decisões, e Ni No Kuni II dá-nos a liberdade de definirmos a nossa atenção em cada momento.

Ni No Kuni II: Revenant Kingdom é um dos jogos mais bonitos que já tivemos o prazer de jogar. Tem uma história interessante e animadora e personagens distintas e cheias de identidade. Consegue ser um jogo para todos, com a inclusão de um bom enredo, de ótimos sistemas de combate e RPG e até mecânicas de estratégia e gestão. O somatório exímio de diversas partes brilhantes que o tornam extremamente complexo (e completo) mas familiar e fácil de compreender. Ni No Kuni II: Revenant Kingdom é um dos jogos obrigatórios de 2018 e faz-nos acreditar neste mundo e nos seus habitantes, criando uma história que nos envolve desde os primeiros minutos e do qual sentimos realmente fazer parte. Fazer erguer Evermore, na sua ideologia de felicidade e união não é apenas uma linha do enredo, é também o nosso grande contributo emocional neste jogo.

Ricardo Correia, Rubber Chicken