Um dia pedi ajuda ao Manuel Reis. “Parece um detalhe, mas vais perceber que não é”. O tecto do Mercado da Ribeira ia ficar preto. Escuro, breu. Era assim que estava no projecto dos arquitectos Aires Mateus e por mais que eu dissesse que não gostava, eles insistiam na beleza do negro. Os bons artistas não se derrotam pela força das ordens nem pelo talento da argumentação. Só por heróis maiores. “Por isso tens mesmo de ser tu, Manuel”.
Dois dias depois entrámos no Mercado. Eu, o Manuel Reis e os irmãos Aires Mateus. E antes de qualquer um de nós abrir a boca, o Manuel começou a falar. Com eloquência. Da luz, dos contrastes, do Cais do Sodré, dos comboios, das asnas metálicas, do rio, dos reflexos, da forma como as pessoas se veem umas às outras e da importância daquele edifício para Lisboa. Foi de tal forma sentido, seguro e profundo, que ninguém ouviu o próprio pensamento. “E se fosse cinzento claro”, perguntaram os arquitectos.
Foi este o Manuel que eu conheci. Um homem magnético, excêntrico e repousado ao mesmo tempo, com um olhar visionário sobre Lisboa, que era quase arriscado contrariar. Um sonhador e um optimista, que nunca vi contaminado por nenhum sinal genético da idade.
Morreu Manuel Reis, o fundador da discoteca Lux Frágil. Tinha 71 anos
Nas pouquíssimas batalhas que tivemos, juntos ou de lados opostos, o Manuel aliou sempre isto, as defesas emocionadas das suas opiniões, a um cavalheirismo que, sinceramente, nem sabia existir antes de o conhecer. Não está nos livros nem em lado nenhum.
No dia em que lhe comuniquei que a Time Out o tinha eleito lisboeta da década passada, a reacção foi a óbvia: “que disparate”. Mas foi. O lisboeta de várias décadas. Responsável todos os projectos que se conhecem, do Frágil ao Lux, passando pelo Papa Açorda e pela Bica do Sapato, mas também por centenas de outras conquistas que se atribuem a outras pessoas, simplesmente por o seu papel ter sido nos bastidores. Como grandes projectos municipais. Como tantos e tantos projectos de amigos seus. Como o nosso tecto cinzento claro.
Que não haja equívocos: esta Lisboa, que agora encanta e fascina o mundo, deve-lhe praticamente tudo.