Numa ruela adjacente à Praça da Ilha do Faial, em Lisboa, Carlos Medeiros, Pedro Lucas, Augusto Macedo e Ian Carlo Mendonza, membros da banda Medeiros/Lucas (que começou com os dois primeiros), vão afinando as canções do novo disco Sol de Março — que estreiam em palco esta quinta-feira, às 21h, no Teatro Ibérico, em Xabregas, Lisboa. “Isto hoje é para aquecer”, atira o vocalista Carlos Medeiros, enquanto Pedro Lucas vai ensaiando uns riffs de blues do deserto na guitarra.
O horário é noturno, há uma luz fundida e falta ainda o teclista Rui Souza, que já substituiu Augusto Macedo num concerto e que no Teatro Ibérico ajudará a fazer de Medeiros/Lucas um quinteto. Só quinta-feira, dia do concerto, ensaiarão os cinco — “mas é tranquilo”, garante o guitarrista minutos antes, ao Observador, sentado no café Zaafran (ali próximo) e pronto a atirar-se a um prato de frango assado com batatas fritas.
Voltamos à sala de ensaios, habitualmente utilizada pelos músicos que acompanham a cantora Selma Uamusse em palco. Há até um grande poster a colorir as paredes brancas, em torno de sacos, mochilas, um computador, águas e uma parafernália de colunas, fios e instrumentos musicais. Nela vê-se uma fotografia da ex-colaboradora de Samuel Úria, Rodrigo Leão e Wraygunn (e também Medeiros/Lucas: cantou no tema “Corpo Vazio”, do álbum anterior da banda, Terra do Corpo), utilizada para promover um concerto da vocalista no Teatro Diogo Bernardes, em Ponte de Lima.
[“Elena Poena”]
“Está bonito, sim senhor”, dirá Carlos Medeiros, de calças e casaco de ganga, barba de marujo experimentado quando acertam com o som do microfone. E é Medeiros que dá o o pontapé de saída, cantando a capella (com um livrete à sua frente, com as letras das canções) o início do tema que dá título ao disco:
“Vento que move cega se na fronte
Sonho feito furado é correntio
Veloz caído vê-se muito parado
Rútilo sol de março faz arrepio
Faz-se bem-aventurança
Sofre-se maquinalmente
Ora o passado alcança e prende
Ora o passado alcança e prende”
Entra a banda, a guitarra a levar a canção para o norte de África, o baixo e a percussão a marcar o ritmo. Acaba a canção e não se ouvem grandes reações, é mais um dia no estúdio. “A parte mais desafiante foi preparar as gravações, o disco já foi gravado com toda a gente a tocar ao mesmo tempo, agora foi só solidificar um bocadinho as coisas”, explica Pedro Lucas. “Há muito tempo que já tocamos os temas. Mesmo em palco a ‘Lampejo’ já fez parte dos alinhamentos de alguns concertos que demos o ano passado, a ‘Podre Poder’ já tínhamos começado a ensaiar…”. É esta última que se segue. Augusto Macedo troca o baixo pelo Fender Rhodes, Pedro Lucas chegar-se-á ao microfone para segunda voz, o repórter não evita as condições fisiológicas e tosse baixinho, a canção afina-se.
É mais um tema de um disco “mais luminoso”, é assim que o guitarrista o vê. “Ou mais biológico, como diz o Carlos Medeiros”. Isso ouve-se bem na sucessão faixas 6-7, “Elena Poena” e “Em Condicional”, cheias de ginga e frases lapidares (“Elena Poena / Era pícara e ardilosa / e birrenta de cismar”, “Se, se, se / a liberdade desse cura de ser”). Ouve-se nos sopros jazz delicados de “O Trapezista” e “Calendas”, no tom mais melodioso, com a profundidade mais doseada, com que o vocalista canta, no bonito momento quase de spoken word de Carlos Medeiros em “Fado do Salto”. “Vim a ouvir o primeiro disco, o Mar Aberto, mais tarde e percebi que aquilo de facto é pesado, denso, meio Antero de Quental, o navio a ir mar fora…”, ri-se Pedro Lucas. “Depois acho que foi ganhando um bocadinho mais de luz até chegar aqui, ao Sol de Março“.
Acho que este concerto será aquele em que se notará menos diferenças para o disco [dos três concertos de apresentação dos álbuns de Medeiros/Lucas]. Estas músicas pedem para ser tocadas mais ou menos como as gravámos, não dá para andar com tantos rock and rolls, com tanta explosão. Há muita contenção, tem que ser tocado de maneira um bocadinho mais calma. Claro que as coisas vão ser sempre diferentes: está ali o público, dá para jogar mais com as dinâmicas, subir e descer mais [a intensidade e o tom das canções]. Mas acho que as canções estão bem como estão”, diz Pedro Lucas.
Uma banda sopa da pedra
Sol de Março é o fecho de uma trilogia. O primeiro disco, Mar Aberto, em que Carlos Medeiros cantava poemas tradicionais escolhidos a pensar no universo quixotesco de Cervantes, “era mar, uma coisa mais romântica, emocional”, diz Pedro Lucas. É o guitarrista que assume com naturalidade o papel de porta-voz do grupo, formado quando Lucas (que já trabalhara canções antigas de Medeiros no projeto O Experimentar Na M’Incomoda) conheceu o cantor e lhe propôs produzir um disco seu (acabaram, está visto, a fazer uma banda). O segundo, Terra do Corpo, explorava o universo do corpo, “uma coisa mais física, mais política”, criada com poemas escritos de raiz pelo açoriano João Pedro Porto (que tem já quatro romances publicados, o último dos quais A Brecha) e musicados e cantados por Medeiros/Lucas. Foi do escritor que nasceu a ideia de Sol de Março:
É muito culpa dele [ri-se]. Quando o Terra do Corpo tinha acabado de sair, estávamos com o João Pedro Porto no Tremor e ele diz: agora vamos ter que fazer um terceiro. E sabem sobre o que é que vai ser? Sobre a razão. Já tínhamos feito discos sobre a emoção e o corpo, faltava a razão. Há um autor de que gosto muito, o António Damásio, que fala muito da evolução biológica do ser humano, de como primeiro vem o corpo, do corpo surge a emoção e da emoção nasce a razão. Sendo as emoções sensores que o corpo tem para se defender da natureza e depois o cérebro gere o sistema junto. E só funcionam os três juntos, estão interligados”, diz Pedro Lucas.
Terá o interesse sido motivado pela açorianiedade? “Interessava-me explorar essa trilogia damasiana. Há muita coisa associada aqui: a ideia de triângulo, de trindade, de que eu gosto muito — não sei se por ser açoriano, a coisa do ‘pai, filho e espírito’ [ri-se]… É uma numerologia pessoal, um número redondinho de que eu gosto”, diz o guitarrista, acrescentando: “A ideia de Sol de Março aparece porque a expressão surge num dos poemas [que deu origem à canção que por sua vez dá origem ao título do álbum]. Essa expressão estava lá porque estivemos em março em São Miguel, estava sol, o João escreveu aquilo logo a seguir. É um chavão — o Tiago Bettencourt tem uma canção chamada “Sol de Março” e eu não sabia — mas há uma razão para o ser. Acho que é uma metáfora que funciona muito bem, a ideia de luz dentro da escuridão, de como uma se alimenta da outra, de como se encontra um equilíbrio entre as duas”.
O álbum quis explorar uma ideia de equilíbrio, de como a razão equilibra e responde à emoção — daí a maior contenção nos temas, mais calmos, não necessariamente mais apaziguados. Esta, contudo, também surgiu de uma nova roupagem que Pedro Lucas e a banda quiseram dar à sua música, depois do concerto de apresentação do segundo álbum na Galeria Zé dos Bois:
“Fomos tocar aquilo mais ou menos como tínhamos gravado, com uma data de beats que reforçavam [a música que tocavam com os instrumentos]. Logo a seguir desapareceram aí metade dos beats, tudo o que não era essencial às canções. E de repente estávamos muito mais livres a tocar aquilo, jogávamos muito mais com o que estávamos a sentir no momento, com as dinâmicas da música. Subir, descer… o que se perdeu nessas texturas [eletrónicas] acho que se ganhou depois na maneira como conseguimos tocar as canções”.
Com participação de vários convidados (Gonçalo Santos — que já deu concertos com a banda –, Antoine Gilleron, Tine Ggurevic e João Hasselberg, além de Rui Souza), Sol de Março vai ser tocado pelo núcleo duro de Medeiros/Lucas e por Rui Souza no Teatro Ibérico. “Foi pensado e muito ponderado, mas acho que pela própria natureza do disco, pelo conceito, por ser uma coisa mais contida e ponderada, sem excessos mas também sem faltas, apeteceu-nos ir tocar o disco nós. Somos cinco, que é mais um do que o normal e fazemos o concerto nesse formato, sem fogo de artifício. E depois hão-de aparecer convidados um dia”, nos concertos.
O concerto de apresentação desta quinta-feira tem outra particularidade, ser a primeira vez que, em Lisboa, a banda toca num auditório. “Acho que a nossa música ganha muito com isso”, diz Pedro Lucas. “Havia a vontade de fazer um esforço para fazermos isto num auditório. Acho que funciona melhor. Mas não pensámos em: agora vamos sair dos clubes para fazer uma coisa mais institucional… não tem nada a ver com isso, tem a ver com a sala ser bonita, não ser uma black box, com acusticamente o Teatro Ibérico ter vida própria, com som próprio, com muita reverberação”, conclui.
Após três discos, Medeiros/Lucas chegará a mais ou menos gente do que o fundador do grupo esperava? “Acho que a nossa música é cada vez mais abrangente”, responde Lucas. “Parece-me que são mais as pessoas que controlam a informação — rádios e outras — que acham que a nossa música é demasiado intelectual para um público geral. Acho que a música às tantas pode chegar a mais gente do que eu achava no início. E falo de qualquer tipo de pessoa, porque em geral não são os indies do hipster que vêm ter connosco depois dos concertos. O ano passado estivemos na Alemanha, levámos cem discos e vendemo-los — e as pessoas que vieram ter connosco tinham 50, 60 anos, ninguém percebia a letra. Há uma transversalidade nas pessoas a quem isto de alguma forma toca que acho realmente supreendente”. Segue-se uma pausa para uma revelação entre risos: “Há uma coisa que acontece muito ao Carlos Medeiros: sempre que há espanholas no público, de 25 a 30 anos, vão falar com ele a dizer que gostaram muito. É o que tem mais sucesso nesse target“.
“Isto é uma sopa da pedra”
Depois da trilogia e do concerto, pode acontecer de tudo a Medeiros/Lucas, ainda não há planos. “Se nunca gravarmos mais nenhum disco como Medeiros/Lucas acho que ficamos bem servidos. Seguindo em frente vamos querer reinventar-nos mas também não vamos querer inventar a batata”, ri-se o guitarrista, que tem vindo também a explorar outros projetos, como o espetáculo “Os Velhos Também Querem Viver”, criado para o Festival Silêncio e inspirado numa obra de Gonçalo M. Tavares. “Há algumas portas a que eventualmente poderei ter mais disponibilidade para abrir mas em todos os discos nós temos mudado coisas no processo. São basicamente truques, manhas que arranjamos para não fazer as mesmas coisas. Podemos mudar um escritor, já pensei em misturar mais escritores… gosto muito do trabalho do João [Pedro Porto] mas às tantas podemos ter uns dez — e só isso já vai obrigatoriamente dar um resultado diferente”. Daqui a uns vinte anos talvez deem continuação à trilogia:
Faltava um quarto elemento que é a espiritualidade. Epá [faz uma pausa]… eu não sou uma pessoa muito espiritual. Já pensei daqui a uns 20 anos se o Carlos ainda tiver voz fazer uma espécie de ‘reprise’, uma quarta parte, com a espiritualidade…
Por enquanto, a estrutura da banda manter-se-á… mutável. Afinal, a quantidade de convidados, novos membros (afinal, começaram como um duo) e membros part-time (que substituem Augusto Macedo e Ian Carlo Mendonza quando um ou outro não podem atuar) sugerem uma flexibilidade que Pedro Lucas assume com gosto. “Isto é uma sopa da pedra [ri-se]. As coisas vão acontecendo naturalmente. Por afinidade artística, às vezes por ocasião, acontece — preciso mesmo de um baterista ou de um contrabaixista, vamos buscá-lo… A verdade é que isto tem muito mais piada quando é feito em conjunto. E trabalhando com outras pessoas consegue-se chegar sempre a coisas mais interessantes do que trabalhando sozinho. Não é falsa modéstia, digo-o por experiência”.
O resultado musical é também um resultado de um caldeirão de influências e estilos que cada um traz para a banda — mas também do ecletismo estético de Pedro Lucas. “Há um cocktail que já está mais ou menos pré-definido: é um bocadinho de música indie americana, muito Norte de África, muito Zeca Afonso e letras do João Pedro Porto. Às vezes até faço um esforço para comprimir a coisa, para não ir a tantas latitudes. O Experimentar Na M’incomoda era um bocadinho esquizofrénico”.
Acresce que têm todos gostos diferente: Lucas diz que tanto ouve música clássica como Moses Sumney, Damon Albarn ou The National, Augusto Macedo gosta muito de jazz e música africana e Carlos Medeiros, o mais velho, é o que tem “o gosto mais extremo”. Exemplifica o guitarrista a rir: “Gosta de Zappa e pôs-me a ouvir os primeiros discos de Smog. Além disso, aqui há tempos fui com ele ver o Marc Ribot musicar uns filmes na Gulbenkian, uma coisa extremamente experimental e dura. O Carlos sai de lá cheio, a dizer: ‘já não via uma coisa que me enchesse tanto a alma há muito tempo…'”