O governo ainda não clarificou a sua posição, mas um parecer jurídico do Ministério da Educação mostra que já foi delineado o caminho a seguir. As famílias carenciadas que têm os filhos a estudar em colégios privados com contratos simples ou de desenvolvimento não irão receber o apoio estatal a que têm direito por lei, se o valor global a distribuir por todos os alunos carenciados de determinada escola for superior ao disponibilizado no ano letivo anterior. Um dos colégios afetado pela medida já apresentou queixa junto do Provedor da Justiça, outros enviaram cartas ao Presidente da República.

O Observador contactou o Ministério da Educação, que afirmou apenas que “todos os apoios que estão enquadrados na Lei vigente estão assegurados”.

O parecer jurídico, que tem a assinatura apensa da secretária de Estado adjunta e da Educação, Anabela Leitão, e a que o Observador teve acesso, é claro: o governo não pagará nem mais um cêntimo do que o que pagou no ano letivo anterior, mesmo que este ano haja escolas particulares com mais alunos carenciados. Quanto às famílias que se candidataram aos apoios e que cumprem os requisitos previstos na lei, nada é dito sobre o que acontecerá se a verba não chegar para todos.

“De todas as interações que temos tido, a posição do governo é de que paga no máximo o valor recebido no ano anterior. Nós contestamos esta ideia porque nada na lei permite essa limitação. É um direito dos pais receberem esse apoio em função do rendimento”, explica Rodrigo Queiroz e Melo, diretor da AEEP — Associação de Estabelecimentos de Ensino Particulares.

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Quanto ao parecer jurídico, surgiu em resposta a um dos associados da AEEP, o Colégio Liverpool, no Porto.

“Este documento é uma informação jurídica do gabinete da secretária de Estado e responde a um colégio que se queixa de valores em atraso. E diz-se no parecer que o valor não pode suplantar o do ano letivo anterior. Ora, onde há quatro juristas há quatro opiniões. E há outras interpretações jurídicas para as mesmas normas”, argumenta Queiroz e Melo, sublinhando que estes apoios surgem em função da condição económica das crianças.

Não aceitamos que nos digam que todos os governos anteriores eram ignorantes e ilegais e que todos os outros governos não sabiam o que faziam e estes é que sabem. Não vamos entrar na questão jurídica. Isto não é uma questão jurídica. Isto é uma opção política de querer ou não negar o acesso das famílias mais carenciadas ao ensino particular”, diz o diretor da AEEP.

Por outro lado, Rodrigo Queiroz e Melo diz não poder deixar de pensar que há uma vontade política de reduzir o contrato simples, de não apoiar as famílias na sua opção educativa, e de qualquer argumento jurídico ser bom para o governo seguir esse caminho.

“Mas isto é uma questão de política educativa, não é jurídica”, argumenta.

Mudar as regras a meio do jogo

Concorde ou não com a mudança de regras, Queiroz e Melo lembra que os governos são livres de fazer essas alterações sempre que o entendam, mas defende que as limitações que o governo quer fazer agora só deveriam começar a vigorar no próximo ano letivo: “A DGAE sabe que emitiu as regras no inverno, a secretária de Estado tem de saber que as regras só saíram cá para fora em dezembro, sabe que os colégios por essa altura já tinham aceitado as matrículas.”

No parecer jurídico do gabinete de Alexandra Leitão, no ponto 38, é apontado o dedo aos colégios argumentando-se que estes não deveriam ter aceitado mais alunos sabendo que iriam exceder a verba.

“Tendo os estabelecimentos de ensino particular e cooperativo apresentado candidatura à renovação de contratos simples para o ano letivo de 2017/2018 após o período das matrículas, conhecendo as regras do procedimento — que lhes foram antecipadamente divulgadas, — deveriam ter verificado se os alunos matriculados que podiam ter direito a redução de propina excediam o valor a contratualizar. Em conformidade, nos documentos da respetiva candidatura deveriam ter desde logo considerado apenas o número de alunos adequado”, lê-se no parecer.

Rodrigo Queiroz de Melo contesta estas afirmações. “Não é aceitável. O Estado não pode vir agora dizer que o ónus é dos colégios que não deviam ter aceitado os alunos no início do ano letivo. Eles sabem que mudaram as regras cinco meses depois de termos fechado as matrículas. Isto já ultrapassa a razoabilidade na relação entre as instituições.”

E lembra que estes contratos existem há 20 anos e que há 20 anos que funcionam da mesma maneira, não podendo as direções das escolas particulares antever que o governo iria este ano fazer alterações.

Os colégios e as famílias agiram de boa-fé quando começou o ano letivo. E usaram uma lógica que é a que está em vigor há 20 anos. Depois em dezembro mudam as regras… Podem mudá-las, mas só para entrar em vigor no ano letivo seguinte”, remata o diretor da AEEP.

O braço-de-ferro entre colégios com contratos simples e de desenvolvimento — que permitem que famílias carenciadas matriculem os seus filhos em escolas privadas tendo uma parte da propina paga pelo Estado — e o Ministério de Educação começou em dezembro.

Em causa está uma decisão da Direção Geral da Administração Escolar (DGAE) que, contrariando o que tem acontecido nas duas últimas décadas, avisou que no ano letivo de 2017/2018 não entregará às escolas verbas superiores às do ano letivo anterior.

Mas todos os anos há flutuações nos valores, para cima ou para baixo, e isso nunca foi um problema, explica o diretor da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particulares.

O Estado vai pagar a escola do seu filho? Lei diz que sim, ministério diz que talvez não

Para já, os colégios não sabem como proceder se o cheque que chegar à direcção da escola não for suficiente para pagar a todos os alunos e recusam-se a ser eles a fazer a escolha de quem recebe ou não a comparticipação estatal.

Aliás, na queixa entregue à Provedoria de Justiça, o diretor pedagógico do Colégio D. Diogo de Sousa queixa-se disso mesmo, uma vez que “lhe é apenas garantido o mesmo valor [do ano letivo anterior] para um maior número de alunos”. E escreve que, “na ausência de critérios legalmente estabelecidos”, se encontra impedido de, através de uma eventual divisão das verbas, entregar “a cada família, o correspondente apoio”, considerando que esta situação viola a lei.

Numa outra queixa, enviada ao Presidente da República pelo Colégio de Gaia, o diretor do estabelecimento de ensino privado também pergunta o que fará nesta situação.

“Acontece que o Ministério da Educação não está a cumprir a lei, nem está a apoiar todos os alunos e famílias em igualdade. Pergunto: que alunos vou retirar do Contrato Simples ou do Contrato de Desenvolvimento? Que explicação vou dar aos encarregados de educação que terão de pagar mais, porque as instituições ultrapassaram o valor que receberam em 2016/2017? Como podem os “mais pobres”, mas “livres” de escolher uma escola, em que o Ministério da Educação os penaliza?”, escreve o padre António Manuel Barbosa Ferreira, diretor daquele colégio.

Neste caso concreto, a instituição só recebe mensalmente das famílias o diferencial entre o valor da propina e a comparticipação do Estado. E se as famílias não tiverem capacidade para pagar a diferença em falta, o sacerdote questiona quem irá pagar o restante valor. “Pergunto: é legítimo, ético e constitucional esta orientação do Ministério da Educação? Quem vai suportar o diferencial? Os estabelecimentos de ensino, os trabalhadores?”

Queiroz de Melo dá um outro exemplo, o de um associado que gere três estabelecimentos de ensino, em que nuns o valor é superior, mas noutros é inferior ao do ano letivo passado.

“É uma organização que tem três colégios, mas há uma única pessoa jurídica titular dos três — os colégios não tem entidade jurídica, quem tem é a entidade titular — e o valor global deste ano é inferior em 12 mil euros ao do ano anterior. Mas o ministério respondeu em dois secos parágrafos que isso não interessa, porque o valor é por colégio. Isto não faz sentido nenhum. Mesmo que pagassem ao colégio que ultrapassa o valor, ainda havia poupança. É absurdo”, acusa Queiroz e Melo.

E é com base nestas respostas que diferentes colégios vão recebendo da tutela que o diretor da AEEP vê o caminho do futuro traçado. “O argumento jurídico que serviu para um, servirá para todos. Se vamos olhar para o contrato simples como algo muito semelhante a uma contratação pública normal, como comprar livros escolares, então posso invocar essas regras. Mas se olhar para o contrato simples como deve de ser, que é muito mais semelhante à acção social escolar, então tenho de ver que quando há mais pobreza há mais acção social escolar.”

E é por isso que diz que a sua associação discorda da questão base, defendendo que se o valor global do setor não for superior ao global orçamentado pelo governo, não há nenhuma razão para não pagar às famílias aquilo a que elas têm direito. E acrescenta que o que “nos mostra a história é que as variações totais são relativamente pequenas, além de que estamos a falar de uma verba de cerca de 19 milhões no orçamento da educação de 5,2 mil milhões”, uma gota de água.

Estado terá de resolver o problema, não os colégios

Para já, diz que não serão os colégios a dar a cara pela decisão do governo, terá de ser o Estado a resolver o problema, “a dizer aos pais que mudou de ideias”. No parecer jurídico salienta-se também que este tipo de contratos não são prioritários — ao contrário do que acontecia com os contratos de associação, “que asseguram o acesso ao ensino básico em situações de carência de rede”, nos contratos simples esta oferta é “redundante”.

Queiroz e Melo repudia esta argumentação. “Para já, isto não tem tecnicamente nada a ver com o assunto que devia ser discutido no parecer, mas mostra bem o que está por trás e qual a intenção política. E é isso que nos custa, este ódio do governo aos pobres que queiram escolher o projeto educativo dos seus filhos. Não percebemos”, ressalva.

Por outro lado, alega que se o Ministério da Educação fizesse contas, poderia concluir que é mais barato ter os alunos carenciados nestas escolas. “Isto é especialmente perverso, porque o escalão máximo dos alunos que têm direito a este apoio é de 1100 euros por ano. Não vamos discutir se o contribuinte vai pagar mais por estes alunos, pois não? Nem é razoável começar a conversar sobre qual é o custo destes alunos se estivessem no Estado. É um magro apoio”, considera.

De acordo com um estudo do Tribunal de Contas de 2012, relativo ao ano letivo de 2009/2010, o custo médio de financiamento por aluno no setor público era de 4415,45 euros anuais.

Para terminar, Rodrigo Queiroz e Melo defende que os colégios não precisam destes alunos para sobreviver e que o setor não está em crise.

“Estes 1100 euros dos mais pobres não paga a mensalidade do colégio. Mas é uma maneira de diversificar a turma, estamos convictos de que educar crianças diferentes todas juntas é muito mais rico do que só criar crianças de determinado tipo. O ensino privado continua a crescer nas estatísticas, mas é cada vez mais elitista. Com os contratos simples, os colégios não ganham nem perdem no sentido financeiro. O que perdem é diversidade no corpo de estudantes e essa diversidade é importante para todos os que lá estão”, conclui.

Quase 30 mil alunos abrangidos

Os contratos simples (1.º ciclo e seguintes) e de desenvolvimento (pré-escolar) existem desde os anos 1980 e são celebrados anualmente com os colégios e não com as famílias, embora sejam elas a receber o apoio. A explicação, para Rodrigo Queiroz e Melo, é simples: “É mais fácil fazê-lo com 200 escolas do que com quase 20 mil alunos.”

No atual ano letivo, segundo os dados da AEEP, há 320 colégios que celebraram contratos simples e que abrangem apoios financeiros para 22 mil alunos. O Orçamento do Estado prevê gastar com eles 19,3 milhões de euros. Já os contratos de desenvolvimento foram celebrados com 370 colégios, abrangendo 7500 alunos. O valor orçamentado é de 7,7 milhões de euros.

O processo, que até ao ano passado era gerido pela DGEstE (Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares), passou agora para as mãos da DGAE.