O mecanismo. O mecanismo? O mecanismo! Perdoem a repetição, mas é mais ou menos esta a sequência com que Marco Ruffo (Selton Mello) decifra — precisamente — o mecanismo que está a tentar derrubar na série criada por José Padilha para a Netflix e que se estreou no passado dia 23 de março. A adaptação do livro de Vladimir Netto, Lava JatoO Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil, surgiu num momento oportuno no Brasil e causou sururu no país. Questionou-se realidade com ficção, acusou-se a liberdade criativa da série e até houve manifestações de boicote ao serviço de streaming.

Em tempos de fake news, é natural que o público, cronistas, pensadores e políticos tenham, por vezes, dificuldades em lidar com essa coisa chamada ficção. Principalmente se é um produto televisivo e se é transmitido a uma escala global. Por mais inspiração que “O Mecanismo” absorva do que aconteceu no caso Lava Jato, pela própria tangibilidade com a realidade e o seu oportunismo ou o pouco esforço em disfarçar alguns nomes de personagens — como Ricardo Brecht (Emílio Orciollo Netto)/Marcelo Odebrecht, Samuel Themes (Tonio Carvalho)/Michel Temer ou nomes de empresas como Petrobrasil/Petrobras e Grupo OAS que vira OSA na série — isto é, de facto, ficção.

Mas o que é “O Mecanismo” e porque é que vale a pena ver? Será que está ao nível de outras séries fora do contexto norte-americano e anglo-saxónico que têm estreado nos últimos meses na Netflix, como “Dark” ou “A Casa de Papel”? Uma coisa pode-se avançar já: se a criação de José Padilha ainda está na listinha de coisas para ver, pare já o que está a fazer – mesmo que seja “A Casa de Papel” – e avance para a série brasileira e perceba as razões de todo o ruído que se fez em volta da sua estreia.

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O mecanismo

Se é para explicar algo que é pouco claro, o melhor é dar logo tudo. Uma das razões para “O Mecanismo” funcionar bem no imediato passa por enfiar o dito mecanismo no enredo ao início e meter o espectador numa situação de total desarme. Isso acontece nos primeiros minutos da série, quando Marco Ruffo decide que é hora de sujar as mãos e agarrar a corrupção pelos cornos. E fica óbvio de que o tal mecanismo é um sinónimo de corrupção e uma forma do sistema funcionar. Está em todo o lado.

Inclusive na polícia. A demora de Marco Ruffo em avançar para o caso acontece pelos bloqueios à sua volta. Ele quer fazer o seu trabalho de inspetor policial, mas o mecanismo está tão entranhado no funcionalismo de qualquer instituição brasileira que o jogo começa logo viciado. No fundo, o que Padilha faz é comprimir as regras sugeridas por “The Wire”, a série de David Simon para a HBO, e desmontar um sistema a partir das teias de corrupção que chegam à polícia/justiça e a impossibilidade, ou dificuldade, de qualquer movimento de ataque.

“Lava Jato – O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil”; o livro de Vladimir Netto que inspirou “O Mecanismo”

Num jogo com peças em movimento, Padilha quis explorar a luta contra uma malha de corrupção tão interligada. A primeira peça a cair é Marco Ruffo, o indivíduo que quer deitar tudo abaixo, o “bom” da pintura inicial e que é imediatamente derrotado pela força com que o mecanismo cai em si, no seu trabalho, investigação, na sua vida familiar. O primeiro episódio apresenta um mártir e, depressa, também diz que todas as batalhas precisam dos seus mártires, que a posteriori serão transformados em heróis. Marco Ruffo, independentemente do que acontece a seguir, é o herói que um enredo destes precisa para mostrar como o mecanismo funciona.

O mecanismo?

Com Ruffo fora do palco, Caroline Abras (Verena Cardoni) entra para mostrar que é possível. Começa por atacar um dos inimigos de Ruffo, Roberto Ibrahim (Enrique Diaz), e rapidamente entram novos fatores dentro de “O Mecanismo”. No primeiro episódio percebe-se a intenção de desmantelar a corrupção, a partir do segundo trabalha-se a sua escala. Numa questão de cenas começa-se logo a falar de Petrobrasil/Petrobras e a criação de Padilha abre para as suas verdadeiras intenções: explorar o caso “Lava Jato” com sotaque de thriller colado à ideia de um roubo cuja localização não é um banco, ou a casa da moeda, mas um país inteiro.

Só que aqui seguem-se as regras normais. O espectador não vira a sua opinião para estar do lado dos supostos maus, como acontece em “A Casa de Papel”, fica sempre do lado da polícia/justiça. Quem já viu “A Casa de Papel” (quem não o fez, não desespere, isto não é um spoiler) percebeu que o inimigo são as instituições, os governos e a banca, no fundo, o sistema que está acima de tudo o resto, que joga com outras regras e cria contextos para justificar que o crime deixe de ser crime. “O Mecanismo” vem com as intenções de expor exatamente o mesmo, com o sentimento justiceiro certo, só que explora o código normal do thriller.

Volta-se a “The Wire”. A saga policial que se instala no segundo episódio de “O Mecanismo” é uma correria bem sintetizada de como apanhar os maus num jeito muito sul-americano. Monta-se uma equipa, olham-se para papéis, descobrem-se nomes, desenham-se setinhas, fazem-se escutas e entra-se em casa de supostos culpados com mandatos. O que acaba por ter alguma graça em “O Mecanismo” é que os motivos para descobrir a carapuça de alguns dos arguidos são descobertos pela forma básica como fazem alguma da trafulhice. E por básico entenda-se: a corrupção no contexto mostra-se tão fácil que nem é preciso entrar em grandes esquemas para a encobrir. E é mais ou menos aqui que o Brasil de “O Mecanismo” faz lembrar um bocadinho Portugal: como se os portugueses tivessem lá deixado uma semente de corrupção que foi a génese de tudo. A diferença? Uma questão de proporção e escala.

O mecanismo!

No terceiro ato surge um herói encapuzado. O mártir afinal não é bem mártir e Ruffo entende que para deitar o mecanismo abaixo é essencial agir sem as amarras de quem voluntária ou involuntariamente está dentro do sistema. Mas agora, o mesmo Ruffo tem capa de herói e a dada altura tem um “momento eureka!” sobre o funcionamento de tudo.

É um arranjo de Padilha para tornar tangível o funcionamento da coisa. Ruffo tem um problema no esgoto da casa. Chama o serviço responsável para tratar desses assuntos na cidade, mas o trabalho vai demorar mais tempo do que o desejado. Contacta outra pessoa, cujo nome foi dado pela empresa anterior, e a coisa parece que se pode resolver mais fácil e rapidamente. Pergunta o preço e acha exagerado. E começa a percorrer com o seu contacto o custo das coisas (material, mão-de-obra, etc.). Percebe que o valor que lhe está a ser cobrado não faz qualquer sentido. É exagerado. Grande parte do dinheiro não irá para custos nem para a mão-de-obra, mas para o tipo que passou o contacto. A lógica parece natural, até justificada, e Ruffo dá o salto dessa lógica para o funcionamento do país. Desenha as coisas num quadro e tudo.

Aí se dá a segunda derrota do protagonista. Algo que ele sabia e que ainda não tinha sido exposto de forma tão clara: o mecanismo está em todo o lado e é impossível desmontá-lo. Podem-se tirar peças mas serão trocadas por outras. É algo intrínseco ao funcionamento daquele Brasil e que funciona a todos os níveis da sociedade, favorecendo os mesmos ou, então, os que integram essa lógica. Se em “A Casa de Papel” há uma vitória contra o sistema porque se resolve lutar contra ele com as mesmas armas, em “O Mecanismo” explora-se a perpetuação do alvo que a série espanhola quis atingir.