O nome do banqueiro angolano Carlos Silva voltou novamente a ser invocado no julgamento do caso Fizz, em que o magistrado do Ministério Público, Orlando Figueira, está a ser julgado por corrupção. Desta vez, o arguido apresentou em tribunal uma dezena de emails trocados com o advogado que o representou até à fase de instrução, Paulo Sá e Cunha, e que demonstram que o empresário angolano estaria por trás do contrato de trabalho que levou Figueira a abandonar a magistratura. Nesta troca de correspondência conclui-se que já em abril de 2017 o advogado teria essa informação, mas que só em finais de outubro, quando Orlando Figueira a quis colocar na contestação à acusação, é que Sá e Cunha lhe disse claramente que essa alegação seria “suicidária”. A divergência na defesa levou Orlando Figueira a prescindir dos serviços do advogado e a pedir ao Estado outro representante. Calhou-lhe Carla Marinho, que o tem acompanhado em tribunal.

Foi ela, Carla Marinho, quem há alguns dias entregou no tribunal um requerimento a que o Observador teve acesso e onde constam os dez emails trocados entre Figueira e os advogados Paulo Sá e Cunha e Rita Pimentel. Dois têm data de abril de 2017 e dão conta de que Figueira já na altura responsabilizava o banqueiro Carlos Silva pela sua prisão. Os outros são de final de outubro, a dias de terminar o prazo para o arguido contestar o despacho que o pronunciou pelos crimes de corrupção, falsificação de documento e violação do segredo de justiça.

A primeira comunicação que consta no requerimento da defesa de Figueira — acusado de ter sido corrompido pelo ex-vice-presidente Manuel Vicente para arquivar processos que tinha em mãos — foi por ele enviada na noite do feriado do 25 de abril de 2017. Figueira informava Paulo Sá e Cunha e a colega Rita Pimentel de que tinha sido notificado pela Autoridade Tributária para liquidar o IRS referente a 2015. E que, como não tinha dinheiro para os impostos, só encontrava dois caminhos: ou fazer a declaração sem incluir os valores recebidos por Carlos Silva, incorrendo ele e o banqueiro em dois crimes de fraude fiscal e de abuso de confiança à Segurança Social, ou não pagava e corria o risco de ter a casa penhorada e de perdê-la.

O magistrado referia, também, que já tinha pedido a Carlos Silva, através de uma carta registada enviada para a Primagest (a empresa com quem assinou contrato quando abandonou a magistratura), que lhe pagasse os valores para saldar essa dívida. Como não obteve resposta, pedia que Sá e Cunha contactasse o advogado de Carlos Silva, Daniel Proença de Carvalho, no sentido de o informar e de ele conseguir chegar à fala com o banqueiro, lê-se no requerimento. Referia ainda que a Primagest pertencia ao banqueiro e que o seu administrador, Manuel António Costa, seria apenas um “testa de ferro”.

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Na resposta, dada por Paulo Sá e Cunha na tarde do dia seguinte, o advogado disse compreender que o magistrado estivesse a passar uma situação “dramática”, no entanto nada podia fazer. Sublinhou já ter conhecimento dessas questões, no entanto disse não sentir-se profissionalmente competente para resolvê-las. Aliás, referiu mesmo que já enquanto Orlando Figueira esteve preso preventivamente teve que tratar de assuntos com a sua ex-mulher e com a irmã, que extravasavam o âmbito do seu mandato. E que, estando ele em prisão domiciliária, já não valeria a pena incumbir-lhe de certas tarefas.

Nesse email, Paulo Sá e Cunha lembra, no entanto, que o nome de Carlos Silva até, pelo menos, ao primeiro interrogatório judicial nunca tinha sido referido como ligado à Primagest. E pede a Figueira que contacte diretamente com Proença de Carvalho ou que recorra a um especialista em Direito Laboral, indicando até um nome. Mais informa que prefere que o seu mandato se restrinja ao processo-crime que o pôs atrás das grades.

Divergências na defesa levam a ruptura

Além destas duas comunicações, a advogada de Orlando Figueira, Carla Marinho, juntou também ao processo oito outros mails que levaram à ruptura entre Figueira e Sá e Cunha, a dias de terminar o prazo para contestar a decisão instrutória (terminaria a 3 de novembro de 2017). No requerimento consta o esboço de contestação entregue a Figueira numa pen drive, para que ele pudesse fazer as alterações que considerasse convenientes. Na linha de defesa desenhada por Paulo Sá e Cunha e a colega, Figueira teria assinado um contrato de trabalho com a Primagest administrada por Manuel António Costa e esta não tinha qualquer relação com a Sonangol nem com o ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente.

Não fazia referência nem ao dono do Banco Privado Atlântico, Carlos Silva, nem ao seu advogado, Proença de Carvalho, nem à conta bancária de Andorra onde o magistrado recebeu parte do dinheiro que o Ministério Público considera serem “luvas”. Mais, todos os arquivamentos de processos relativos a Angola teriam tido a concordância da adjunta de Figueira e da sua superior hierárquica, Cândida Almeida — à data diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal. Quanto aos valores recebidos (mais de 700 mil euros), deviam-se ao contrato promessa de trabalho e ao contrato propriamente dito que, na prática, não chegou a concretizar-se. E teria sido por isso que os valores não tinham sido declarados ao Fisco, porque Figueira considerou haver um incumprimento contratual com perda de sinal.

Eram 4h00 do dia 27 de outubro quando Figueira enviou a sua versão da contestação. Nesta altura, Figueira aguardava ainda que Carlos Silva lhe transferisse dinheiro para pagar uma parte dos impostos devidos, assim como os 210 mil euros acordados em jeito de indemnização. Em tribunal, o arguido disse que estava cansado de esperar e que decidiu abrir o jogo. Então falou no que tinha acordado nunca falar: em Carlos Silva, no seu advogado Proença de Carvalho, e na conta em Andorra onde recebeu alguns valores e que lhe teriam pedido para nunca referir. 

Esta semana, em tribunal, o juiz Alfredo Costa quis saber porque é que Orlando Figueira aceitou receber dinheiro de Carlos Silva através de uma conta em Andorra, principalmente sendo o magistrado especialista em crime económico.

— Eu sabia que a conta em Andorra estaria relacionada com uma questão de impostos. Na altura  era pegar ou largar, eu tinha saído da magistratura, queria ir para Angola e voltar à magistratura seria uma derrota. O órgão mais sensível do corpo humano é a algibeira, afirmou Orlando Figueira perante o coletivo de juízes.

A resposta à nova defesa de Figueira chegaria às suas mãos dia 30, com Paulo Sá e Cunha a considerá-la “suicidária. O advogado explicava que, além da proposta do arguido não corresponder ao que tinham articulado, dificilmente teria sucesso. Por motivos vários. Os principais: a nova tese contrariava o que tinha sido dito até ao debate instrutório, pondo em causa a sua palavra. O próprio comportamento de Figueira seria posto em causa: se tivesse recebido o dinheiro que diz que Carlos Silva ficou de pagar manter-se-ia em silêncio? Mais importante ainda, esta nova versão de Figueira não o livraria das suspeitas dos crimes de corrupção e de branqueamento de capitais. O advogado terminava a mensagem lembrando a relação de confiança que se deve estabelecer entre advogado e cliente.

Nos emails que se seguiram, Figueira invocou divergências entre ambos e pediu aos advogados que renunciassem ao mandato para poder contratar outro advogado e não perder o prazo da contestação. Acabou por perder o prazo e enviar, na mesma, a sua nova defesa em forma de memorial. Recorde-se que, um mês antes, já o seu coarguido, o advogado Paulo Blanco, tinha referido o nome de Carlos Silva e relatado vários encontros entre todos na sua contestação.

Quem pagou a Paulo Sá e Cunha?

Em tribunal, Orlando Figueira garantiu que depois de ser detido, em fevereiro de 2016, ligou para o escritório do advogado Proença de Carvalho — com quem tinha tratado da cessação do contrato de trabalho — para que ele o representasse. Dada a recusa de Proença, acabou por telefonar a Paulo Sá e Cunha a pedir que defendesse no processo.

Sá e Cunha tinha-o conhecido quando ele saiu do DCIAP, por intermédio do procurador Paulo Gonçalves. Ao que o Observador apurou, Figueira queria perguntar-lhe como podia inscrever-se na Ordem dos Advogados e nesse encontro terá ficado com o seu número de telemóvel.

Sá e Cunha aceitou representá-lo e, de acordo com o testemunho de Figueira — que esta semana foi ouvido em tribunal por causa dos emails com ele trocados — só quando o advogado foi visitá-lo à prisão de Évora é que o magistrado falou no banqueiro angolano Carlos Silva e no advogado Proença de Carvalho. Neste primeiro encontro, na versão que apresentou em tribunal, Sá e Cunha ter-lhe-á solicitado o pagamento de 10 mil euros para o arranque do processo. Duas semanas depois, numa segunda visita ao estabelecimento prisional, ter-lhe á dito que os restantes honorários estariam a cargo de Carlos Silva.

Procurador Orlando Figueira vs advogado Proença de Carvalho. Quem diz a verdade?

O advogado Proença de Carvalho, por seu turno, recusou em tribunal ter tido qualquer encontro ou ter falado com o advogado Paulo Sá e Cunha para articularem a estratégia de defesa de Orlando Figueira. Embora a tese do magistrado seja completamente oposta. Perante isto, a defesa do arguido Paulo Blanco veio pedir que o advogado fosse ouvido em julgamento para esclarecer todas estas ligações. Mas o tribunal recusou.

Tribunal recusa ouvir advogados que tiveram intervenção no processo

Num despacho assinado esta terça-feira e fundamentado na jurisprudência de tribunais superiores e pareceres da Ordem dos Advogados, o coletivo de juízes, presidido por Alfredo Costa, lembrou que Sá e Cunha já foi advogado do processo, e “a função da testemunha no processo, com o inerente dever de comunicar ao tribunal, de forma isenta, objetiva e verdadeira, todos os factos acerca dos quais seja inquirida (…) não se coaduna com a do advogado que, não obstante participe na realização da Justiça, se encontra sempre condicionado pelo interesse da parte que representa e ao qual em muitos casos tem de dar”, refere no despacho.

“Nessa medida, os deveres processuais do advogado — que não raro implicam o dever de reservar factos de que tenha conhecimento quando esteja em causa o interesse do seu constituinte — não lhe permitem desempenhar as funções de testemunha de acordo com o figurino traçado na lei para quem ocupa esta posição processual”, acrescenta o coletivo.

Por isso, o coletivo recusa que Paulo Sá e Cunha seja chamado para depor em tribunal. Igual entendimento teve com dois advogados que representaram o Banco Privado Atlântico, quando este chegou a ser arguido no processo, e que estavam convocados para prestar testemunho. Os advogados ainda se deslocaram ao tribunal ao dia e à hora marcado, mas depois de invocadas as incompatibilidades acabaram por ir embora sem falar.

O Observador sabe que Paulo Sá e Cunha chegou a pedir autorização à Ordem dos Advogados para divulgar a resposta que deu a Orlando Figueira, quando disse que o seu projeto de contestação era suicidário, assim como o email em que recusa pedir a Proença de Carvalho que fale com Carlos Silva. A Ordem dos Advogados autorizou a dispensa do sigilo para fornecer estas informações, caso fossem solicitadas pelo tribunal, mas como o arguido Orlando Figueira as juntou ao processo, o pedido já não tem razão de ser.

Diferente da dispensa do sigilo profissional, porém, seria o advogado ser chamado a depor como testemunha e obrigado a depor com toda a verdade, violando os deveres de advogado — incompatíveis com os de uma testemunha.

No caso Fizz estão a ser julgados o magistrado Orlando Figueira, o advogado Paulo Blanco e o representante de Manuel Vicente em Portugal, o engenheiro Armindo Pires, todos acusados de corrupção. O ex-vice-presidente angolano será alvo de um processo à parte uma vez que nunca foi notificado da constituição de arguido nem da acusação neste processo.