A fotografia chegou para ficar e a moda que o diga. Nos anos 30, as capas ilustradas das principais revistas da área foram, gradualmente, dando lugar ao realismo fotográfico. As grandes produções de moda começaram a mobilizar dezenas — cenários exteriores, luzes, estúdio, fotógrafo, styling, editores, cabelos, maquilhagem, modelos e, claro, a roupa — e a responder, com muito mais eficácia do que o desenho, ao ímpeto consumista que começava a formar-se. Para trás ficaram décadas de produção artística, por meio do traço, associada à moda: Harry Whitney McVickar e Erté para a Harper’s Bazaar, Carl Erickson, Eduardo Benito e Georges Lepape para a Vogue.

“A ilustração conta-nos uma história alternativa da moda”, afirmou o ilustrador David Downton à Vogue britânica, em 2010. “A ilustração de moda nunca foi a lado nenhum. Quando as pessoas dizem que já não vêem ilustrações é porque já não as vêem nas principais revistas. Mas acho realmente que está a voltar”, acrescentou. Há oito anos, um dos grandes ilustradores de moda da atualidade antecipou o regresso desta arte. Aqui e ali, as tradicionais fotografias vão sendo agora pontualmente substituídas, ora por desenhos artísticos, ora por ilustrações de objetos ricas em detalhe. A ironia histórica está lá e a tendência já chegou às páginas da edição portuguesa da Vogue.

Além das revistas da especialidade, também as marcas parecem estar a recorrer à ilustração para dar algo mais do que uma bela fotografia. A recente relação da Gucci com o artista espanhol Ignasi Monreal é um exemplo claro. “Às vezes, uma pintura é muito mais o que não nos mostra do que aquilo que nos mostra”, conta o artista num vídeo onde fala sobre o processo criativo em torno da campanha da marca italiana para o verão de 2018. Na abordagem surrealista de Ignasi, que já colaborou também com Jonathan Anderson e com a Christian Dior, Alessandro Michele, diretor criativo da Gucci, encontrou o meio ideal de comunicar a marca, ao nível da extravagância (e, por vezes, da esquizofrenia de referências) que têm orientado as últimas coleções. Foi a única forma de fazer magia e por magia entenda-se unir o universo Gucci a obras-primas como “Ophelia”, de John Everett Millais, e “O Jardim das Delícias Terrenas”, de Bosch. Viral, a expressão que entrou no léxico da marca italiana aplica-se às imagens que foram notícia nos quatro cantos do mundo.

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O traço de Ignasi Monreal não está, em exclusivo, ao serviço da moda, mas por todo o mundo são muito os artistas que se dedicam unicamente a ilustrar joias, coordenados e momentos de passerelle. Portugal não é exceção.

António Soares, o português que desenhou para Karl Lagerfeld

A ilustração sempre esteve lá, a moda é que nem tanto. Durante anos, e mesmo quando estudava Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, o desenho era, para António Soares, um ritual de relaxamento. Mas o que começou por ser apenas uma experimentação acabou por dar os seus frutos. Entre os vários convites para dar aulas, chegou uma proposta do atual Modatex (Centro de Formação Profissional da Indústria Têxtil, Vestuário, Confecção e Lanifícios) para ensinar ilustração de moda aos futuros designers nacionais. António aceitou e com a preparação das aulas aprendeu grande parte do que hoje sabe sobre esta arte cheia de especificidades.

“Tinha a linguagem mais artística da pintura, por isso a linguagem da moda foi um mundo completamente novo para mim. Não sabia o que era um coordenado, não conhecia os cortes, os tecidos, a forma como caem. Foi um mundo fantástico que se abriu”, conta António Soares ao Observador. Foi professor de Marta Marques e Paulo Almeida (Marques’Almeida) e fã confesso dos croquis de Luís Buchinho. Aliás, os primeiros desenhos “a sério” foram de criações de designers portugueses. “Nessa altura, tal como hoje, os detalhes chamavam-me sempre a atenção, estava sempre atento a tudo no meu dia-a-dia”, explica.

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Hoje, aos 44 anos, vive da ilustração. Já não dá aulas, à exceção dos alunos de pintura que recebe a título particular no seu atelier, junto aos Aliados. Lembra-se perfeitamente de quando a carreira de ilustrador deu uma reviravolta. Era dia de São João e a proposta veio de Hong Kong, mais precisamente da Joyce, o gigante da moda multimarca, exclusivamente voltado para os criadores de vanguarda. “Quando comecei a ser pago pelo meu trabalho, não foi cá”, admite. Embora nunca tenha deixado de viver em Portugal, António percebeu depressa que era lá fora que podia vingar. À boleia das primeiras encomendas internacionais veio Karl Lagerfeld. A tarefa? Ilustrar um lookbook inteiro. No currículo junta ainda trabalhos para a Dolce & Gabbana, Chanel e Fendi, além de colaborações com publicações como a Vogue China, Marie Claire, The Guardian e The New Yorker. “Na internet não há controlo, o teu nome passa de pessoa para pessoa. E os prazos são loucos. Trabalhas muito e deixas de comer e de dormir para te entregares ao cliente, eles agradecem pagando bem por isso. Depois, fazes dez ilustrações e, com sorte, uma é aceite”, explica.

Quando não está a trabalhar para revistas, marcas ou designers, há sempre aquela pasta no desktop com imagens inspiradoras e essas nem sempre são da última estação. Uma vez lá dentro, é só uma questão de tempo até ganharem vida através do traço feito à mão. “Há coleções de há dez anos que ilustrava já. A partir do momento em que vejo o desfile, se me der aquele clique, aquele coordenado, aquela mala, aqueles sapatos ficam-me logo na cabeça. E é claro que tenho designers favoritos. Dries van Noten, amo de paixão, nunca me desiludiu. E Comme des Garçons, as duas últimas coleções inspiraram-me”, afirma.

Por estes dias, António Soares sente os efeitos do casamento real. “A ilustração de joalharia está a surgir com muita força”, conta. Um dos trabalhos que tem em mãos é para a revista People, ilustrações de joias, precisamente. Como qualquer trabalhador independente, sente a inconstância do rendimento. Mas neste momento, não se pode queixar. Como António diz, “Tomara eu que casassem príncipes todos os meses”.

Jéssica João dá os primeiros passos

Jéssica tem 22 anos e fez o percurso contrário. Durante a infância e a adolescência, foi a moda o objetivo de realização. Foi preciso chegar ao curso de Design de Moda e Têxtil, em Castelo Branco, para perceber que não era a conceção de uma coleção, mas sim o trabalho de pô-la no papel o que lhe dava mais gozo. “Os meus professores diziam que perdia muito tempo a desenhar e na pesquisa de materiais”, conta. Em setembro do ano passado acabou a licenciatura e aventurou-se como ilustradora freelancer. “Em Portugal, é complicado. Quando comecei a mostrar o meu trabalho, disseram-me que preferiam uma produção fotográfica. Também chegaram a questionar-me sobre o porquê de desenhar à mão, se podia fazer ilustração digital, que é mais rápida e mais barata”, completa.

Luís Onofre foi o primeiro cliente. Publicou o trabalho final no Instagram e fez questão de identificar a autora para evitar o anonimato a que, muitas vezes, os ilustradores são votados. Para Jéssica, António Soares e Nuno da Costa são ídolos, só lamenta que a obra dos ilustradores portugueses seja muito mais reconhecida no estrangeiro do que dentro do próprio país.

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Depois do curso, Jéssica regressou a Leiria, a sua terra natal. Vale-lhe a calma da pequena cidade. Uma ilustração mais complexa pode demorar uma semana a produzir e o preço pode variar entre os 100 e os 200 euros. Até aqui, tem conseguido cobrir os custos com os materiais. Sonha com grandes marcas internacionais e com as páginas da Vogue, mas até lá chegar, ocupa os tempos livres com os desenhos que lhe dão mais gosto. “Adoro desenhar joias. Normalmente, quando faço as coisas à minha maneira, não fico tão cingida à anatomia do corpo, desenho só da cintura para cima e sou muito mais pormenorizada nos rostos”, explica.

Mais uma vez, os deadlines alucinantes são um problema. “Vejo o meu trabalho como uma arte e não gosto de o fazer à pressa. Qualquer pessoa faz um desenho, mas isto não é só um desenho e eu só tenho uma mão direita”, desabafa. Por estes dias, Jéssica está a trabalhar com a designer Micaela Oliveira. Tal como as grandes marcas internacionais, também os criadores portugueses parecem estar a perseguir a tendência do momento: uma sessão fotográfica não chega, é preciso pegar no lápis e no papel.

Nuno da Costa: “Não é reproduzir o que já existe, é transformar”

Nasceu e cresceu no Reino Unido, mas o sangue que lhe corre nas veias é português. Há sete anos, Nuno da Costa trocou o caos londrino pelo sossego da zona de Azeitão. Profissões como a de ilustrador freelancer têm essa vantagem: mesmo desenhando para as páginas da Vogue e da Harper’s Bazaar, Nuno pode estar em qualquer parte do mundo. Ainda assim, estar em Londres quando, há quase 20 anos, resolveu tentar a sorte nesta área foi decisivo. “Desenho desde pequenino, andava sempre com lápis e papéis na mochila, tinha uns três anos. Com cinco, via televisão deitado no chão da sala e desenhava as passerelles dos grandes desfiles”, conta. Ainda entrou para o curso de Línguas Modernas no King’s College, mas sem grande sucesso. “Odiei, deixei o curso e fiz um portefólio de desenhos para ir mostrar às revistas”.

Aos 20 anos, os primeiros trabalhos. Hoje, Nuno vive da ilustração, mas nem sempre foi assim. Nos primeiros tempos, complementava o orçamento com horas extra em bares, restaurantes e discotecas. O desenho acabou por falar mais alto e o artista passou a dedicar-se em exclusivo ao que melhor sabia fazer. Em 2006, o nome Nuno da Costa tornou-se mais sonante. A convite de Neil Moodie, hair stylist e beauty director de topo, assinou um editorial de oito páginas para a revista Wonderland. O ilustrador estava devidamente apresentado ao mundo, assim como o seu traço próprio.

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Tem sempre pelo menos um lápis e uma folha de papel por perto, aliás, é assim que começam todos os trabalhos, com um rascunho. Só depois vêm as aguarelas, os guaches, os pastéis e a tinta-da-china. Scanner e segue para o cliente. “Há sempre um retoque digital, mas tento evitar”, conclui. Depois da fotografia, os editores e criativos parecem querer dar algo mais. “As revistas estão a correr mais riscos e a ser mais criativas. A fotografia é boa para mostrar um produto como ele é, mas a ilustração é linda e mostra uma atitude e uma sensibilidade. Uma fotografia é o que é, mas um desenho requer a participação de quem está a olhar, deixa mais em aberto”, reflete.

Nuno assegura que o meio continua a ser limitado, mas que está em expansão. Hoje, dar nas vistas é mais fácil, muito mais do que era quando teve de bater a todas as portas com um portefólio debaixo do braço. “Está a mudar, sobretudo com uma plataforma como o Instagram. Está tudo mais democrático, só é preciso ter talento, mostrá-lo e as oportunidades acabam por chegar”, conclui. Trabalhar para a Chanel e para a Christian Dior foi a concretização de um sonho, expor na Saatchi Gallery um presente inesperado. No final de 2014, Nuno foi convidado a adicionar algumas ilustrações a uma exposição de joalharia. Só joalharia? Não. “Gems of Time” reuniu peças icónicas de marcas como Bulgari, Cartier, Piaget, De Beers e Jaeger-LeCoultre.

As inspirações continuam a chegar não só das passerelles, mas também de grandes mestres da fotografia de moda, como Richard Avedon e Steven Meisel. Mas quem procura o traço de Nuno da Costa, procura o que ele tem de especial, as silhuetas esbatidas pela diluição das aguarelas, os olhares fortes e as maquilhagens exuberantes. “Começa sempre com uma peça de roupa e na forma como a traduzo e a ponho noutro contexto. Não é reproduzir o que já existe, é transformar. Para isso, já temos a fotografia”.