Um dos inspetores da PJ que investigou o caso Fizz afirmou esta segunda-feira em tribunal que chegou ao ex-vice-Presidente angolano, Manuel Vicente, através de fontes abertas disponibilizadas pelo Google. “O que fizemos foi googlar aqueles nomes e recolhemos uma série de informação que constava online”, disse o inspetor chefe Bruno Gomes.
Manuel Vicente foi acusado neste processo de ter corrompido um procurador do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Orlando Figueira, para que este arquivasse processos que tinha em mãos contra ele. No julgamento estão também a ser julgados o advogado Paulo Blanco e o representante legal de Manuel Vicente, em Portugal, Armindo Pires. O Tribunal da Relação decidiu, entretanto, enviar a parte do processo relativo a Vicente para as autoridades angolanas.
Esta segunda-feira no Campus de Justiça foram ouvidos dois elementos da Polícia Judiciária (PJ) — chamados depois de uma inspetora daquela polícia ter dito que a ligação entre a Manuel Vicente e a Primagest (a empresa central do processo com a qual Figueira assinou contrato para deixar a magistratura) tinha chegado à investigação da PJ como um “dado adquirido”.
Inspetor-chefe que investigou Figueira já tinha trabalhado com ele
O primeiro a ser inquirido foi Bruno Gomes, responsável por uma das brigada da Unidade Nacional de Combate à Corrupção, que veio mostrar como se investigou o caso. O responsável explicou que, quando o processo foi delegado pelo Ministério Público (MP) à Judiciária vinha já dispensado do sigilo bancário e com a informação de que o alvo do processo seria um magistrado do MP que teria sido corrompido por “entidades angolanas”. Curiosamente, o inspetor-chefe até já tinha trabalhado com ele, no âmbito da compra de ações do Banif — um mega-processo que envolvia o Estado angolano e cuja investigação era coordenada por Orlando Figueira. Que acabou arquivado.
Na altura, após análise dos primeiros extratos bancários, Bruno Gomes até pensou que a denúncia anónima, comunicada em julho de 2014, podia não ter “qualquer fundamento”.“Através da perícia financeira é que percebemos que aquelas contas existiam e foram pedidos ao banco em causa os extratos. A denúncia passou, para mim, a ter fundamento, tudo estava ali tal e qual como era denunciado”, acabou por dizer.
A PJ foi, depois, “procurar a motivação” do alegado do crime. “Começámos por analisar os processos tramitados pelo senhor procurador”, começou por dizer. “E encontrámos a coincidência de datas”. Mais à frente da inquirição esclareceu que alguns pagamentos feitos a Figueira coincidiram com a data em que foi extraída uma certidão de um processo, relativa a Manuel Vicente, que acabaria por ser arquivada.
Como a Primagest se liga à Sonangol? Através do Google
A PJ percebeu também que os pagamentos feitos a Orlando Figueira provinham de uma empresa angolana, com representação em Portugal, de nome Primagest. “O processo visava o Dr. Manuel Vicente e na altura era ele presidente da Sonangol. Como é que nós ligamos? Não foi por via dos pactos sociais das empresas, mas foi por via de informação obtida em fontes abertas. E havia varias informações que diziam que a Primagest era ligada à Sonangol”, respondeu o inspetor-chefe à procuradora do MP, Leonor Machado. A resposta não deixou a advogada de Paulo Blanco, Rita Relógio, satisfeita.
— … Mas como foi feita a ligação com a Sonangol?, interrogou Rita Relógio
— Nós vimos que quem beneficiou foi Manuel Vicente, quem pagou foi a Primagest. E fomos ver a relação. O que fizemos foi googlar aqueles nomes e recolhemos uma série de informação que estava online, explicou.
— Todos sabemos que googlando podemos encontrar informação falsa… Em resultado dessa pesquisa na internet, que tipo de informação recolheram?, advertiu e perguntou a advogada
— Era informação não confirmada, de jornais, de jornalistas… Isso não era muito relevante no âmbito da investigação, disse o inspetor, deixando a advogada incrédula.
As respostas do inspetor incomodaram o arguido Orlando Figueira que, sentado no banco dos réus, remexeu-se e vociferou várias vezes. “O senhor quando quiser falar ponha o dedo no ar”, ordenou o juiz Alfredo Costa, na tentativa de manter a ordem. “Estive preso dois anos por isto”, desabafou o procurador e arguido Orlando Figueira.
Notícias e wikipédia como prova. Mails investigados por alvos
Para delinear a forma como a investigação do caso decorreu, a advogada Rita Relógio lembrou o tribunal que, como prova da acusação, o MP socorreu-se não só de várias notícias publicadas no jornal, como informação retirada da Wikipédia. Mais referiu que essas notícias, que davam conta da ligação da Primagest à Sonangol de Manuel Vicente, foram todas baseadas num comunicado divulgado após um negócio com a Coba — que algumas testemunhas disseram em tribunal não ser exatamente assim.
O inspetor-chefe explicou ainda que os mails que constam no processo foram analisados por palavras-chave sugeridas pelo MP e pelos próprios investigadores. O advogado Rui Patrício quis saber, então, quais foram os nomes seguidos para orientar a investigação, mas o juiz presidente, Alfredo Costa, cortou-lhe a palavra. Lembrando-o que essa informação “consta do processo”. Já à tarde, o coordenador da Unidade da PJ que investigou o caso, Pedro Fonseca, viria a justificar esta informação (mesmo antes de lhe perguntarem). É que o “acervo” de mails era tão grande e tão pesado que dificilmente havia condições e recursos humanos para o passar a pente fino.
A advogada Rita Relógio tinha insistido se, uma investigação neste moldes, não significava seguir um só caminho? “Temos a mente aberta para seguir todos os trilhos, o que percebemos foi o que mostrámos”, garantiu o inspetor durante a manhã, advertindo que o caso só esteve nas mãos da Judiciária numa fase inicial e que, depois, manteve-se para nas mãos de duas procuradores do Ministério Púbico que não lhes delegaram mais diligências.
Foi neste ponto que o advogado de Armindo Pires e de Manuel Vicente se focou na sua inquirição. Então porque é que se faz uma vigilância em novembro de 2015 e só se fazem biscas (e detenções) em fevereiro de 2016? Mais. Porque é que só há praticamente uma vigilância em todo o processo?, indagou o advogado Rui Patrício.
O inspetor-chefe acabaria por justificar que tinham existido mais vigilâncias, mas como não tinham trazido nada de novo para o processo, não foram documentadas. Uma informação contrariada, à tarde, pelo polícia coordenador Pedro Fonseca. “Creio que só houve essa vigilância”, disse. O resto, remeteu para o MP, responsável e orientador da investigação.
Casa de Carlos Alexandre vigiada
A vigilância de que se fala foi feita a 24 de novembro de 2015 e acabou na casa do juiz Carlos Alexandre. O inspetor-chefe explicou em tribunal o porquê. É que há “muito tempo” que no âmbito da investigação faziam vigilâncias à morada de Orlando Figueira, mas não conseguiam confirmar que era ali que ele efetivamente vivia. “Era num largo, com um café onde bebi café muitas vezes, mas achámos que tínhamos que fazer uma vigilância para sabe onde é que ele dormia”, para depois fazerem buscas.
O inspetor-chefe acabou por aproveitar um dia em que Orlando Figueira, que à data trabalhava como advogado, foi acompanhar um cliente à PJ no âmbito de um processo. “Vi ali a oportunidade de ir ver onde é que ele dormia”, disse em tribunal. Figueira acabou por ser seguido durante todo o dia até que, à noite, entrou numa casa em Linda-a-Velha, e foi um homem que lhe abriu a porta. “Não percebemos quem era e se fosse uma mulher tínhamos interrompido a vigilância”, disse o polícia. Mais tarde acabaria por descobrir que aquela era a casa do juiz Carlos Alexandre, amigo de longa data de Orlando Figueira, que também prestou declarações no julgamento.
Tanto o inspetor como o coordenador assumiram sempre que o processo foi tratado como sendo sensível, embora não tenha sido logo sujeito ao segredo de justiça — o que só aconteceu em fevereiro de 2016 após as detenções. Foi também só por esta altura que foram feitas buscas. O inspetor lembrou que o procurador disse que guardava todos os documentos de trabalho num escritório, mas que acabaria por encontrar um envelope timbrado do DCIAP com documentos de Manuel Vicente no quarto do filho de Figueira. O magistrado, numa das duas vezes que pediu para falar durante a sessão, acabaria por explicar que aquele era o antigo quarto do filho (antes do divórcio) e que ali guardava uma pasta dos tempos da magistratura, que já não usava. Nunca impediu a PJ de procurar o que quisesse e “à vontade” lá em casa.
O juiz presidente, Alfredo Costa, foi repetindo algumas vezes que alguns dos raciocínios dos advogados eram dispensáveis: “eu tenho bastante latitute, as instâncias têm decorrido sem intervenção minha, mas estamos a perder muito nessas questões. A prova é feita aqui. A mim pouco me interessa se seguiram a linha A, B ou C, o que estamos a precisar é o objeto do processo, estamos a perder muito tempo que o tribunal não tem que dar… a prova é o que resulta daqui…”, advertiu.
Naquela que foi a última sessão de julgamento, antes da sessão a 21 de junho para as alegações finais, o advogado Paulo Blanco também pediu a palavra e as juízas solicitaram alguns esclarecimentos ao empresário Armindo Pires — que garantiu que só os documentos apreendidos em sua casa são correspondência com amigos e amigas que vivem em Angola.