Uma máscara em madeira vermelha maciça, um cadeirão de chefe tribal, um cachimbo com cabeça esculpida, uma taça para cozinhar mandioca e um pequeno banco redondo. Estas são cinco peças de arte africana, que faziam parte da coleção nacional à guarda do histórico museu angolano do Dundo (até desaparecerem, entre milhares de artigos, durante a guerra civil no país) e que foram agora descobertas e resgatadas. As peças serão restituídas ao Estado angolano esta quinta-feira, dia 7, numa cerimónia oficial em Bruxelas — a cidade onde, durante esta semana e até ao próximo dia 10 de junho, decorre a BAAF, a principal feira mundial de arte antiga.

Há ainda uma sexta peça, encontrada mais recentemente, que se irá juntar nesta entrega: uma máscara chokwe que acabou por ser descoberta de forma bastante inesperada. Durante os trabalhos dos investigadores patrocinados pela Fundação Sindika Dokolo — que iniciou há alguns anos um projeto de identificação e devolução de arte africana que tenha sido retirada dos países de origem de forma ilegal –, uma série de pistas levou-os de volta ao portefólio do próprio presidente da fundação. “Fiquei chocado por descobrir que tinha aquela máscara na minha coleção”, conta Sindika Dokolo, em conversa com o Observador.

“Lembro-me que a comprei num leilão nos Estados Unidos, em 2007, quando estava a começar a minha coleção. E, na altura, a máscara estava a ser vendida como sendo de fonte legítima, até porque a arte chokwe não é exclusiva de Angola, também há em países como o Congo ou a Zâmbia”, explica. Para o investidor de origem congolesa — um dos mais importantes colecionadores de arte africana e marido de Isabel dos Santos, empresária e filha do ex-presidente de Angola — a única decisão a tomar foi retirar a peça do seu portefólio e devolvê-la ao Estado angolano juntamente com os outros artigos.

Sindika Dokolo com Rui Moreira, em Março de 2015, no Porto, na inauguração da exposição ‘You Love Me, You Love Me Not’. O empresário e investidor, que na altura veio acompanhado pela mulher, Isabel dos Santos, também já deixou em exposição na cidade uma máscara chokwe, arte que considera “muito importante”.

Fazer regressar a maioria destas peças de arte a Angola é, aliás, um dos objetivos que o levou a iniciar um projeto de inventariação e de aquisição de peças de arte retiradas do país durante os anos de conflito interno entre 1975 e 2002. Muitas dessas obras de arte clássica desapareceram do país e do próprio Museu do Dundo, que reunia as principais coleções de arte angolana, bem como a documentação que permitia identificar essas peças, e encontram-se hoje espalhadas por vários países, nas mãos de colecionadores privados ou em parte incerta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Museu do Dundo

Mostrar Esconder

O Museu Regional do Dundo foi criado em 1936 pela antiga Diamang (Companhia de Diamantes de Angola) na província da Lunda-Norte, no nordeste do país. A colecção pessoal de José Redinha, funcionário administrativo de Tchitato, com 496 peças na sua maioria provenientes da Lunda, esteve então na sua origem. A partir de finais da década de 40 do século passado, a Diamang passou a adquirir peças no mercado de arte na Europa para reforçar o portefólio do museu. De coleções privadas da Diamang durante o período colonial, as coleções do Dundo tornaram-se coleções nacionais após a independência do país em 1975. Mas centenas dessas obras foram desaparecendo para parte incerta durante a guerra civil (entre 1975 e 2002), só começando a reaparecer e a serem devolvidas há muito pouco tempo.

Além da máscara que estava na posse de Sindika Dokolo, estas últimas cinco peças foram encontradas graças ao trabalho desenvolvido pela sua fundação em colaboração com autoridades de vários países e outras entidades e especialistas. A operação, conforme explicou ao Observador, implica ter uma equipa permanente dedicada a documentar peças e a identificar as suas referências. Depois é preciso “triangular a peça: saber onde, como e quando surgiu a peça no mercado”. E, por fim, “identificar o depositário da obra e ver o que posso fazer para resgatar a obra”, descreve Sindika Dokolo.

Quando se identificam as pessoas ou entidades que têm a peça, a prática habitual passa por oferecer uma compensação, em jeito de indemnização (e nunca aos valores do mercado, que seriam sempre mais altos), a quem tiver o artigo — ainda que, neste último caso, só uma das cinco peças (além da máscara chokwe que estava na coleção de Sindika Dokolo) tenha sido resgatada a custo zero. Daniel Hourdé, artista e colecionador residente em Paris, “aceitou devolver a cadeira sem pedir nada em troca”, conta o presidente da Fundação, sem revelar os valores envolvidos nas restantes devoluções.

Marchands, historiadores e polícias em parceria

Graças à colaboração de coleccionadores, de três marchands especializados e de duas casas leiloeiras, estas peças históricas podem agora regressar ao Museu do Dundo. Neste caso, a Fundação Sindika Dokolo destaca as iniciativas de Didier Claes (em Bruxelas), de Daniel Hourdé (em Paris) e de Giorgio Rusconi (em Milão) que se envolveram diretamente na devolução das obras. Todos os passos da operação, até ao momento do resgate da peça, envolveram ainda vários investigadores (historiadores, antropólogos, museólogos), advogados e também autoridades, caso da Interpol e de polícias nacionais.

Desde que a fundação iniciou, em meados de 2016, este trabalho de pesquisa mais aprofundado, cerca de 60 peças já foram referenciadas. Mas ainda falta muito para recuperar esse património perdido. “Faltam imensas peças, ainda que nem todas sejam masterpieces. Diria que apenas 1% foi recuperado…”, estima Sindika Dokolo. Daí que o investidor insista na necessidade de alertar para este problema e de debater a importância do património histórico dos países.

A esse propósito, dá o exemplo do político britânico Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista, que defendeu publicamente a restituição de esculturas do Parthenon, que se encontram no British Museum, à Grécia. E, em abril de 2017, foi o próprio Sindika Dokolo que exigiu a França que devolvesse a África obras de arte “pilhadas” durante o período colonial.

Marido de Isabel dos Santos faz vídeo para contestar França

Até ao final deste ano, Sindika Dokolo espera reforçar o trabalho da fundação na recuperação dessa arte desaparecida: tem em curso a criação de uma base de dados que centraliza imagens e informações técnicas que ajudam a identificar obras que surgem pontualmente no mercado de arte. Desta forma, vendedores e potenciais compradores poderão confirmar as origens de certas obras e certificarem-se de que não estão a investir em obras ilegítimas. Uma base de dados que contará com informações do Bureau International de Documentation Ethnographique, mantido nos arquivos do Museu Real da África Central em Tervuren, na Bélgica, bem como com o contributo da historiadora belga Marie-Louise Bastin, especialista em arte chokwe e “uma das primeiras pessoas a denunciar o aparecimento no mercado internacional de peças pertencentes ao Museu do Dundo, no contexto da guerra civil angolana”.

A fundação conta também com a ajuda de sites especializados, como os da Interpol ou ArtLossRegister, entre outros. Este trabalho, considera Sindika Dokolo, pode ser precioso para continuar a ajudar o Museu do Dundo a recuperar muitas das obras perdidas. No final de 2015, recorde-se, a fundação conseguiu resgatar e devolver ao museu angolano duas máscaras Pwo e uma estátua rara de uma figura masculina, datadas do final do século XIX, início do século XX.

De acordo com os últimos dados conhecidos, a coleção de arte da Fundação Sindika Dokolo, criada em 2003, em Luanda, é composta por mais de cinco mil obras, entre pinturas, gravuras, fotografias, vídeos e instalações, da autoria de 90 artistas de 25 países. Em março de 2015, o presidente da fundação trouxe algumas dessas obras ao Porto, onde inaugurou a exposição ‘You Love Me, You Love Me Not’, um dos vários projetos que anunciou na altura ter previstos para a cidade.