Milhões de muçulmanos terminam esta quinta-feira as celebrações do Ramadão – o nono mês do calendário islâmico, durante o qual os fiéis praticam um ritual de jejum. Durante este mês (de 17 de maio a 14 de junho), entre o nascer e o pôr do sol, abstiveram-se de comer e beber. Mas, como em todas as regras, há exceções e, neste caso, as mulheres menstruadas são uma delas. Segundo os ensinamentos do Alcorão, no Islão as mulheres não são superiores nem inferiores ao homem, mas apenas diferentes, razão pela qual em muitas situações não são tratadas da mesma forma. No que diz respeito à menstruação, há ainda muitos tabus, mas que dependem muito mais do contexto cultural onde se inserem os praticantes do que da religião em si.

São 20h. Elas chegam, cumprimentam as mulheres que se encontram à porta e descalçam-se. Depois, entram na sala de culto e sentam-se no chão ou nas cadeiras que se encontram dispersas um pouco por todo o espaço. Estamos no primeiro andar da Mesquita Central de Lisboa, onde rezam as mulheres muçulmanas – os homens, esses, ficam no rés do chão. Aos poucos, a sala vai ficando composta. Há crianças – meninas e meninos com não mais de 3 anos – que acompanham as mães, jovens e mulheres mais velhas. São oriundas de países tão diferentes quanto o Paquistão, Moçambique, Guiné-Bissau ou Egito. Em comum têm a religião que praticam.

Homens e mulheres não rezam no mesmo local porque elas são vistas como uma tentação.

À semelhança dos homens, as mulheres muçulmanas juntam-se ali para celebrar o Ramadão, naquilo que parece ser uma festa: leem e beijam o Alcorão com largos sorrisos, conversam entre si e, no chão, há pratos de plástico com tâmaras e chocolates. Sara Carmali chegou pouco antes das 20h30 – a tapar-lhe o cabelo tinha um lenço coral e no corpo um traje preto –, com o filho pequeno e rapidamente encontrou uma amiga também com crianças. Quase não chegou a entrar na sala de culto para ficar a tomar conta dos mais novos. “Querem pintar um desenho?”, perguntou ela. E ali ficaram, sentados num dos sofás que se encontra mesmo à entrada.

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As mulheres, explica ao Observador, Paulo Mendes Pinto, investigador na área da Ciência das Religiões da Universidade Lusófona de Lisboa, “ficam num espaço diferente do dos homens porque as religiões de matriz semita (como são o Islão e o Judaísmo) fazem uma distinção entre os homens e mulheres”. A principal justificação para o fazerem é, segundo ele, o facto de “no fundo [homens e mulheres] serem pessoas de natureza diferente”, razão pela qual “estão melhor” a rezar em espaços distintos.

A mulher é vista como uma tentação e se estiver no mesmo espaço de oração que os homens vai distraí-los”, prosseguiu.

Sara Carmali nasceu em Lisboa mas tem outras origens. Os avós eram da Índia, mas os pais nasceram já em Moçambique depois da forte migração que houve na época. Mais tarde, uma nova onda migratória fez com que o cenário se tornasse a repetir e os pais acabaram por vir parar a Portugal devido à guerra colonial. Como a maioria das crianças, Sara começou a jejuar por imitação ao que os pais faziam. A partir dos 13 anos começou a fazê-lo aos fins de semana e aos 15 já jejuava na escola porque “sentia que aguentava”.

Num outro ponto da Europa, está Cadija Baldé que se descreve como “uma muçulmana moderna” porque, diz, é “difícil continuar a seguir a 100% o que manda a religião” quando se sai do país natal e se vai viver para outro totalmente diferente. É guineense e chegou a Portugal com dois anos – hoje estuda em Londres. Foi em Bragança que se instalou com os pais e nunca chegou a viver “rodeada de muçulmanos”. Ao Observador, contou que, a partir do momento em que veio da Guiné, a mentalidade dos pais se alterou bastante.

Acho que ali éramos a única família de muçulmanos, até porque é uma cidade muito pequena. Só tinha os meus pais que eram muçulmanos e a mentalidade deles mudou imenso a partir do momento em que chegámos a Portugal. Um muçulmano na Guiné dizer aos filhos que podem não seguir aquele caminho é um bocadinho chocante. E foi isso que aconteceu, eles nunca me obrigaram a nada, sempre me deram essa liberdade”.

Ablução

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No Islão, a ablução é obrigatória antes de cada oração. A religião preza muito a higiene e a ablução é o ritual que permite eliminar as impurezas do corpo. Os muçulmanos têm, assim, de lavar os membros um por um: começa-se pelas mãos e dedos, depois a boca, o nariz e o rosto, os braços, o cabelo e as orelhas, os dentes e, por fim, os pés.

Teve toda a liberdade para escolher o caminho e aos sete anos já sabia ler e rezar em árabe e fazer a ablução (ou purificação) – aprendeu a fazê-lo em casa, mas também porque todos os fins de semana ia ter aulas à Mesquita do Porto. No ano seguinte já dizia à mãe que queria jejuar e ela deixou que começasse a fazê-lo durante meio dia por ser ainda uma criança. De ano para ano, foi aumentando o tempo de jejum e, aos 12, jejuou pela primeira vez durante quatro dias seguidos.

A menstruação é um tabu ou uma questão cultural?

Aos 14/15 anos, porém, o cenário alterou-se com a chegada da menstruação. As mulheres estão proibidas de jejuar durante o Ramadão quando estão menstruadas “porque todas as religiões de origem semita têm a pureza da pessoa como matriz fundamental e os fluxos de cariz sexual são considerados impuros”, explica o investigador da Universidade Lusófona.

Quem não jejua durante o Ramadão

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As mulheres menstruadas estão proibidas de jejuar durante o Ramadão porque o sangue do período é considerado impuro. Nem todos são obrigados a jejuar, como é o caso das grávidas, pessoas idosas, doentes, mulheres em período de amamentação e as crianças.

Quando menstruada, a mulher encontra-se “incapaz” de participar na oração, de entrar na mesquita, de fazer o Ramadão. Nem Cadija Baldé nem Sara Carmali (à semelhança de todas as outras mulheres muçulmanas) puderam continuar a fazer o ritual da mesma forma como até então.

Nas últimas semanas, várias mulheres muçulmanas desabafaram na internet sobre como é ter o período durante o Ramadão. No Twitter escreveram frases como: “Extremamente irritada pelo facto de as pessoas ainda fazerem com que as mulheres muçulmanas se sintam desconfortáveis por comerem durante o Ramadão, quando estão com o período” ou “Esperam que nos escondamos durante o Ramadão quando não estamos a jejuar por causa do período? Que disparate.”

Jackline Ibrahim, por exemplo, contou à revista The Lily que começou a ter o período quando estava numa escola islâmica, em Melbourne: “Nós [raparigas] temíamos ter o período durante o Ramadão porque sentíamos que tínhamos de ser reservadas quanto ao assunto. Se comesses no pátio, todos saberiam que estavas com o período.”

A verdade é que no século XXI a menstruação ainda continua a ser um tabu em muitos locais. Um estudo publicado pela associação Plan International mostra, por exemplo, que, em 2017, dois terços das mulheres na Europa se sentiam desconfortáveis a falar do período com os homens que conhecem (incluindo os pais e os namorados). Mas será, afinal, uma questão religiosa?

A mãe de Cadija foi quem conversou com ela e lhe explicou as questões mais íntimas relacionadas com o período. “A minha mãe explicou-me que não podemos jejuar quando temos a menstruação, nem sequer rezar”, disse, acrescentando que passado esse tempo – em que o sangue da mulher é considerado impuro, sujo – se devem repor os dias em falta. Quando perguntámos se o pai alguma vez tinha abordado o assunto com ela, a guineense não hesitou: “Era muito estranho o meu pai explicar-me isso, se bem que ele também não tinha à-vontade para falar dessas coisas.”

A jovem considera que a sua religião ainda vê a menstruação como um tabu e que “olha a mulher como impura e intocável” quando está com o período: “Os valores que me foram transmitidos foram, por exemplo, que a mulher não pode cozinhar quando está menstruada, ou pelo menos, que o marido não deve comer o que ela cozinhou. Daí os muçulmanos terem duas mulheres ou mais”, acrescentou. Paulo Mendes Pinto, contudo, alerta para o facto de que não são as mulheres que são consideradas impuras. “Naquela situação [quando menstruada], a mulher encontra-se numa situação de impureza, que é muito diferente”, sublinha.

Apesar de Sara falar abertamente com a mãe sobre a questão da menstruação, que, diz, nunca foi um tabu lá em casa, foi a professora de religião (que ia a casa dar-lhe aulas privadas) que lhe explicou que já não podia jejuar da mesma forma quando lhe veio o período — “Disse-me que durante aquela fase do mês não podia nem fazer o jejum nem rezar.” É certo que o pai não lhe falava desse tipo de questões, mas Sara diz que nunca teve de se esconder ou se sentiu envergonhada por causa do período.

Nunca tive aquela sensação de ter de me esconder e fingir que vou fazer jejum. Eu comia à frente do meu pai e ele perguntava-me: ‘Hoje não estás de jejum?’ e eu respondia: ‘Não, hoje não posso’, e ele percebia”, contou ao Observador.

A religião é frontal, está escrito no Alcorão que a mulher menstruada não pode jejuar”, diz, acrescentando que tem amigas que sentem algum incómodo, mas que isso se deve ao “contexto e cultura locais”. Mas a portuguesa vai mais longe e afirma que “a beleza do Islão é que olhamos para o Alcorão e nada é tabu, é o livro em que Deus revelou a sua mensagem para nós e”, pergunta, “se lá não há tabus porque é que tem de haver tabus em casa?”.

Paulo Mendes Pinto reforça a ideia e diz que “o facto de a menstruação ser ou não um tabu é uma questão cultural, porque em termos corânicos e de tradições do profeta não há nada que diga isso.” Quando acontece, no fundo, “vem da dimensão cultural e não da religiosa”, explica. Aliás, o investigador chega mesmo a dizer que “a menstruação é menos tabu no seio da religião islâmica do que no da religião católica” porque, “em termos de práticas sexuais, por exemplo, no Islão não são tão reprimidas como na religião católica” e “se há efetivamente algum constrangimento em falar sobre a menstruação, se calhar em muitos horizontes católicos é maior que na religião islâmica”, concluiu.

A condição de mulher de Cadija leva-a, por vezes, a sentir vergonha quando come em frente aos homens durante o Ramadão. Não por poderem perceber que está com o período, mas sim porque “toda a gente está a jejuar e tu não”. A jovem guineense explica que “por questões de respeito a quem está de jejum” evita comer em frente aos familiares e diz que provavelmente é isso que “a maioria das mulheres muçulmanas também tenta fazer”. Mas com Sara não acontece. Antes pelo contrário, diz que comer em frente a quem quer que seja, durante o Ramadão, “é perfeitamente normal” pois “está escrito no Alcorão” que é assim que deve ser. “É uma coisa ótima a mulher não fazer jejum, porque há uma série de necessidades que o corpo tem. É uma benesse e algo que considero bastante positivo, até porque, por exemplo, quando estou com o período tenho muito mais apetite”, contou.

O Islão faz parte da vida das duas desde que nasceram, mas nem sempre teve o mesmo significado. Cadija só agora começa a perceber o sentido da religião e conta que está cada vez mais ligada a ela. “Por exemplo, há muitas pessoas que me perguntam como é que consigo ficar tantas horas sem comer. Isso para mim não faz sentido porque eu faço-o de livre e espontânea vontade, não é nenhum sacrifício, nós vemo-lo como uma bondade”, diz. Por sua vez, Sara foi questionando o facto de ser muçulmana ao longo do seu crescimento: “Será que sou muçulmana porque nasci muçulmana ou porque acredito efetivamente nas crenças e valores?”, pensava. Na tentativa de encontrar respostas, começou a ler a cada vez mais sobre as doutrinas que lhe tinham sido incutidas e, há medida que o ia fazendo, foi-se tornando cada vez mais crente. Depois, as respostas chegaram. “Sou muçulmana porque acredito e não porque nasci muçulmana.

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