Título: “O meu inimigo mortal”
Autora: Willa Cather
Editora: Relógio D’Água

Myra Driscoll, órfã criada por um tio-avô tão abastado quanto rude e obstinado, apaixona-se pelo rapaz “errado”: Oswald Henshawe, recém-formado por Harvard e filho de um professor da terra – a ficcional Parthia, no Illinois – com o qual o tio-avô embirra figadalmente. Quando Myra manifesta intenção de casar-se com Oswald, o tio-avô adverte-a que não herdará dele um cêntimo. Myra desafia a autoridade patriarcal e as convenções e foge com Oswald, tornando-se numa figura lendária em Parthia, sobretudo entre as jovens – entre as quais está Nellie Birdseye, narradora e sobrinha de Lydia, uma das melhores amigas de Myra.

Quando, anos mais tarde, Nellie conhece Myra, esta parece-lhe uma figura fascinante, à altura da lenda, mas quando, uns meses depois, a visita em Nova Iorque, apercebe-se, pouco a pouco, de aspectos amargos da sua personalidade, nomeadamente quando, durante um passeio de cabriolé por Central Park, com Myra, se cruzam com uma conhecida desta, que se desloca numa luxuosa carruagem: “Aquela, Nellie, é a última mulher que queria ver a passar por mim e salpicar-me de lama, e eu num cabriolé!”.

Central Park, 1901

A reacção de Myra deixou Nellie desiludida por ter vislumbrado no seu ídolo “uma ambição sem sentido” e este se atormentar a “desejar uma carruagem, e estábulos e uma casa e criados, tudo o que vinha com a carruagem!”. O encontro envenenou o resto do passeio para Myra, que, sob a expressão trocista que afivelou no rosto, ficou a ruminar sobre ele, rematando, ao reentrar em casa, que “é muito mau ser pobre!”.

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As falhas de carácter de Myra tornam-se ainda mais evidentes quando, anos depois, Nellie, que se empregara como professora numa cidade da Costa Oeste, reencontra acidentalmente os Henshawe, que vivem no mesmo aparthotel – “um edifício mal construído, que, embora fosse novo, já caía aos pedaços” – em que Nellie se alojara. A vida do casal perdera o glamour que Nellie testemunhara em Nova Iorque e Myra, que está gravemente doente, atribui a sua infelicidade ao facto de ter escolhido o amor em vez do dinheiro e lamenta-se por “ter de morrer assim, sozinha com o meu inimigo mortal” – dando a entender que este seria o marido, Oswald, com o qual a relação fora azedando.

Todavia, é difícil sentir empatia por Myra, pois não só o seu remorso pela impulsiva e romântica escolha de juventude revela uma perspectiva mesquinha e materialista, como, bem vistas as coisas, a maior parte da vida não lhe correu mal do ponto de vista financeiro: quando os Henshawes viviam em Nova Iorque, Oswald era secretário do presidente de uma companhia de caminho-de-ferro e a rotina de Myra é a de uma ociosa “senhora de sociedade”, que passa o tempo em festas, compras, visitas a amigas e tertúlias da elite intelectual. Poderá não ter o luxo que ambicionara, mas de está muito longe de ser “pobre”.

Mesmo no final da vida, apesar de Cather carregar nos tons lúgubres, a sua miséria material é relativa e a sua infelicidade não deriva da falta de dinheiro mas de, no fim de contas, o “inimigo mortal” de Myra ser ela mesma.

Willa Cather, em 1912

Este romance – na verdade uma novela de 78 páginas – de 1926 é o oitavo de Willa Cather (1873-1947), autora distinguida com o Prémio Pulitzer em 1923, por One of ours, e que embora seja prestigiada nos EUA, é quase desconhecida por cá, não fosse a Relógio D’Água ter publicado há uns anos Uma mulher perdida.

O registo de O meu inimigo mortal narra os eventos de forma concisa, pondo em prática os princípios formulados por Cather num ensaio de 1922, em que lamentara que os romances estivessem “atravancados de mobiliário”. Porém, este despojamento acaba por ser excessivo, não havendo elementos suficientes para dar substância ao relacionamento entre Myra e Oswald e para permitir ao leitor perceber porque degenerou o seu amor tão puro e arrebatado numa relação tão azeda e porque se mantiveram eles mutuamente acorrentados quando essa degeneração já era óbvia.

A Relógio D’Água tem vindo a ilustrar as capas da sua colecção “Clássicos para Leitores de Hoje” com quadros bem escolhidos, mas neste caso é difícil perceber o que liga uma narrativa passada nos EUA da segunda metade do século XIX com a paisagem veneziana – com o Campanile, a Basílica de S. Marcos e gôndolas – representada em “Rapariga numa varanda, Veneza” (1886) de Pierre Franc-Lamy.