Começaram como vendedores e revolucionaram o mercado dos óculos em Portugal. Experimentaram colecionar e hoje têm centenas de modelos raros, cobiçados em qualquer parte do mundo. Quiseram fazer os próprios óculos e acabam de abrir uma loja, em pleno Chiado, com um atelier lá dentro. Sete lojas e 37 anos depois, a história da André Ópticas é uma espécie de introdução ao empreendedorismo. A primeira lição? As vantagens de se manter um negócio na família. Para esclarecer qualquer dúvida sobre a matéria, Plínio e Ana Leal são os mestres, os fashionistas e os fundadores da ótica que abriu as portas à moda.

“Antigamente, era assim que uma ótica funcionava: havia meia dúzia de operadores que representavam as marcas e que vinham às lojas com tabuleiros mostrar os óculos. Comprávamos aquilo que tinham e andava toda a gente a vender a mesma coisa. Foi o que nos levou a procurar outras coisas. Olhávamos para os óculos e eram todos iguais, todos feitos na mesma fábrica, apenas com chancelas diferentes nas hastes”, conta Ana, numa conversa com o Observador. Em 1981, com o marido, abriu a primeira loja. Ficava na Rua da Figueirinha, em Oeiras, onde ainda hoje se vendem óculos. Na altura, tinha 20 anos. Plínio tinha 22. André, filho do casal e inspiração para o nome da loja, tinha nascido há três meses.

Inspirada num cabinet de curiosité, a nova loja da André Ópticas no Chiado reune parte da coleção privada da família Leal © João Miranda

Atualmente, é também ele quem assume as rédeas da empresa. Dizem que o crescimento paulatino é o segredo do sucesso. Na última semana, abriram a sétima loja de um pequeno império concentrado no eixo Lisboa-Cascais (abriram a sexta loja no CascaiShopping, há dois anos). Tudo está suficientemente perto para ser acompanhado de perto. À família de seis — onde contabiliza também Rita, a mulher, e os dois filhos –, André junta os 64 colaboradores. No centro de Lisboa, este é o terceiro espaço da André Ópticas. Mais do que uma loja, este atelier de portas abertas inaugura um novo capítulo na história da marca e, claro, da família também.

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Amor e uma ótica

Mas recuemos mais um pouco. Conheceram-se ainda na escola, quando ele tinha 16 e ela 14. Anos depois, viram-se a trabalhar juntos, numa ótica que ainda não era a deles, mas sim da irmã de Plínio. Um dessas lojas viria depois a cair-lhes no colo. “Éramos muito jovens e sem experiência. Vimos ali uma oportunidade para construirmos um futuro, através daquele métier que nos apaixonava. Conseguimos. A partir daí, foram dez anos de trabalho conjunto, sem férias. Os encargos eram muitos e não tínhamos ajuda para poder fazer paragens”, recorda Plínio. Durante quase duas décadas, continuaram a trabalhar lado a lado, nos 30 metros quadrados que compunham o primeiro piso da loja. Ele passava horas no gabinete de optometria, ela ao balcão, ou então a fazer montras. “Às vezes já o via mal, mas punha os óculos e começava logo a vê-lo bem”, admite Ana.

É uma busca permanente. Há peças que estão connosco há 20 anos, outras estão connosco há 15 dias”, afirma André Leal.

“Não era assim que eu perspetivava o meu futuro. Costumava fazer as montras nas lojas da irmã do Plínio, depois comecei por brincadeira e fui ficando”, continua. Em 1987, a veia criativa levou-os a Munique, cidade onde receberam um prémio por uma montra com óculos a Christian Dior. O foco já era a moda, mas o apetite por modelos diferentes e por marcas independentes começou a falar mais alto. “Lembro-me de comprarmos armações e de colocarmos lentes de sol, criávamos os nossos próprios óculos”, acrescenta.

André Leal e Rita Fortunato, à esquerda, e Plínio e Ana Leal, à direita © André Carrilho/Observador

Nos anos 80, as opções eram bem menos. Além das grandes marcas de moda que, através de óculos, perfumes e maquilhagem, tornavam as suas etiquetas acessíveis aos comuns mortais, entre elas a Chanel e a Dior, nomes como a Ray-Ban estavam reduzidos, pelo menos em Portugal, a seis modelos de óculos. Viajar abriu-lhes os horizontes e, consequentemente, o leque de alternativas para os clientes. “Fomos a Londres e comprámos uns óculos vintage numa loja qualquer, eram maravilhosos. Cá, ainda ninguém ouvia falar em marcas tipo Cutler and Gross e Oliver Goldsmith”, explica a fundadora. Marcas que descobriram e trouxeram para Portugal em primeira mão. A clientela, segundo explica o casal, era informada e com um poder de compra acima da média. A ótica chamada André vingou com uma aposta na diferença e, em 1998, abriu mais duas lojas, ambas no Oeiras Parque. Portugal virava-se para os grandes centros comerciais, Ana e Plínio não perderam a boleia.

De vendedores e fazedores

O momento foi preparado durante anos. Além da experiência adquirida através da relação com grandes marcas, do sentido de gosto apurado e de uma rede de contactos que põe a André Ópticas ao nível das grandes concept e fashion stores internacionais, foi preciso recorrer à formação. Pai e filho visitaram a Sociel, a última grande fábrica portuguesa especializada na produção de óculos. Depois disso, André fez vários cursos na Europa. Os primeiros óculos feitos à mão saíram da loja do Chiado — não da recém-inaugurada, mas do espaço ocupado pela família Leal em 2006. Contudo, os metros quadrados eram escassos para dar lugar à técnica e à arte das armações feitas à mão. Com um segundo espaço no Chiado, isso deixou de ser problema.

“Esta loja é o nosso restaurante Michelin”, afirma André. “Se fosse só colocar os óculos aqui, estávamos tramados. É cada vez mais difícil termos marcas únicas e coisas exclusivas, há lojas na cidade que começam a trabalhar as marcas que trabalhamos. É por aqui que nos podemos distinguir. E o mundo quer experiência, quer savoir faire, quer alma, precisamente porque as coisas estão cada vez mais desprovidas disso, andamos todos iguais, é tudo descartável”, continua.

Antigamente, era assim que uma ótica funcionava: havia meia dúzia de operadores que representavam as marcas e que vinham às lojas com tabuleiros mostrar os óculos. Comprávamos aquilo que tinham e andava toda a gente a vender a mesma coisa”, recorda Ana.

Para perceber do que fala André, é preciso descer até à cave da nova loja. Ao contrário do primeiro piso (comecemos pelo fim), aqui a atmosfera é meio secreta, apenas ao alcance de uma frase mágica: “Quero desenhar os meus óculos”. O rol opções é, na realidade, muito maior. Tudo é possível, desde produzir uma peça a com as formas favoritas do cliente ou replicar aqueles óculos do avô a partir, pura e simplesmente, da fisionomia para chegar ao objeto perfeito. A longa bancada está cheia de máquinas e ferramentas e há apenas três funcionários que as dominam na perfeição. Imediatamente ao lado, há um mostruário dos materiais possíveis, pequenas placas de acetato e chifre que se multiplicam por dezenas de cores, padrões e texturas. São os “melhores do mundo”, segundo André e muitos deles não terão reposição quando chegarem ao fim.

André contou ao Observador que já houve quem quisesse tatuar o logótipo da loja. Ninguém proibiu, apenas foi pedido ao cliente que pensasse melhor no assunto © André Carrilho/Observador

Num país sem tradição na produção de óculos, os Leal introduzem a arte de cortar, moldar, montar e polir. No caso do chifre, proveniente de espécies cuja carne é consumida, como acontece com o búfalo-d’água e o zebu na Índia, André garante que são os primeiros a trabalhar. A madeira vem a caminho. “Se é único agora, vai ser muito mais único daqui a 20 ou 30 anos, quando tudo estiver a ser feito por uma impressora 3D”, continua. O objetivo é dar ao cliente a possibilidade de acompanhar o próprio processo de execução dos óculos, uma experiência de luxo, num espaço concebido à altura. “Isto não é uma loja, é uma das assoalhadas da nossa casa. Mandámos fazer as mesas, os espelhos, este carrinho. Fui buscar estes candeeiros a uma fábrica, em França. Tiveram 40 anos sobre uma bancada a assistir ao fabrico de óculos das mais famosas marcas do mundo, por isso, tinham de ser estes. Podemos passar o dia inteiro a falar com as pessoas sobre aquela cadeira, sobre esta mesa, esta máquina, aquele sofá. Tudo aqui tem uma história”, explica. “Lisboa está mais rica”, conclui o filho dos fundadores, relembrando a especificidade da indústria e o facto de continuar concentrada em França, Itália e na Alemanha, no Japão e na China.

Um par de óculos pode ser a coisa mais banal do mundo, mas também pode ser a mais rara”, diz André.

Talvez essas sejam as próximas paragens. Hoje, a André Ópticas é reconhecida em todo o mundo. Em 2016, a loja da Avenida da Liberdade foi escolhida para o lançamento da Private Eyewear Collection by Tom Ford. Um ano antes, tinha sido a Cartier a escolher o mesmo espaço para instalar uma exposição itinerante com peças que fundiam ótica a joalharia. Edições especiais, colaborações e peças de desfile — a família Leal anda de mãos dadas com a moda e quer apostar cada vez mais nas parcerias internacionais.

O bom filho à loja torna

André é hoje o rosto mais visível do negócio. Com a chegada da André Ópticas ao Chiado e à Avenida da Liberdade, a ótica de Oeiras conquistou novos públicos e modernizou-se. O percurso do filho dos fundadores é que não foi assim tão linear. Aos 21, foi trabalhar com os pais, depois de ter tirado um curso de optometria e outro de fotografia. Pouco tempo depois, foi despedido. “Não chegava a horas, os clientes ficavam à espera dele. Não podia ser”, explica Ana, na época, a grande responsável pela decisão. “A optometria não era a minha paixão. Queria arranjar um emprego que me permitisse surfar cinco ou seis horas por dia, era a minha prioridade na altura. Por isso, fui arranjar um emprego das duas da tarde à uma da manhã”, conta André.

Um ano depois voltou para a ótica à procura de uma segunda oportunidade. E teve-a. “Cheguei a uma fase em que precisava de me sentir útil e, acima de tudo, de começar a aliviar os meus pais, de retribuir a vida fantástica que me tinham proporcionado. Estava na altura de deixar de pensar só naquilo que queria fazer. Não gostava, mas paciência”, conta. Voltou para a optometria, mas não demorou muito até dar sinais de que podia ser uma peça chave na expansão da marca. Concentrou atenções no centro de Lisboa e, em 2006, abriu a primeira loja fora de Oeiras, na emblemática Óptica do Chiado, fundada em 1888. Quatro anos depois, aí por influência de Ana, abriu a loja da Avenida da Liberdade, com 600 metros quadrados e a maior variedade de sempre de óculos.

“Hoje, a André Ópticas também é um bocadinho de mim e isso é um orgulho. Não queremos ser só o filho do patrão, queremos sentir que somos uma parte válida e fundamental da empresa. É complicado, mas encontrámos esse caminho”, conclui. Rita, a mulher de André, foi a última a juntar-se ao clã e também ela tem um pelouro muito próprio. Em 2015, a André Ópticas tornou-se numa loja parceira da Farfetch. Atualmente, é uma das dez com esse estatuto em Portugal e a única do ramo. Rita é a chefe das operações. Tal como Plínio, passa mais tempo no escritório, enquanto Ana e André circulam, sobretudo, pelas lojas. Ainda assim, nas vésperas da abertura da nova loja, a família veio em pesa para o Chiado. Para dispor os óculos, para desenrolar tapetes, para se empoleirar em bancos e escadotes a dar os últimos retoques.

Expostos na loja, uns óculos da coleção da família © André Carrilho/Observador

Fora do ambiente de trabalho, o cenário não é muito diferente. Moram a menos de 500 metros, jantam juntos ali, passam o fim de semana acolá. As férias em família também são tradição. Nunca ninguém se lembrou de fazer um reality show dos Leal, mas fica aqui a ideia. “Eu e o André chocamos mais, eles ficam calados a ver”, admite Ana. “Se puserem uma tenda, é um circo. Se puserem um telhado é um manicómio. Mas sempre com este mood: rimos muito e muito alto. É espetacular”, remata André. Quantos aos dois filhos (ainda pequenos, mas já com as mãos gravadas nos degraus da loja), não é certo que queiram dar continuidade ao trabalhos dos avós e dos pais. Ainda assim, há mínimos a cumprir. “Podem não trabalhar no negócio da família, mas uma coisa é certa: vão saber fazer óculos”, afirma. Prova de que a dinâmica familiar é levada muito a sério, foi desenvolvido um novo logótipo, onde cada uma das estrelas simboliza um membro da família. A partir de agora, todos os óculos feitos neste atelier, levam o brasão dos Leal.

Tesouros de coleção

Em outubro de 2014, a coleção da família Leal resultou numa exposição. O MUDE (Museu do Design e da Moda), em Lisboa, encheu uma sala inteira com cerca de 400 peças, selecionadas a partir de um espólio pessoal com 4000 óculos. A viagem começava nos anos 50, com autênticas relíquias, e chegava até aos modelos futuristas lançados já no século XXI. Um cenário idêntico ao que vemos no primeiro piso da nova loja. Se lá em baixo é a arte do fazer à mão e da personalização que está em destaque, quem entra dá logo e caras com a face menos conhecida desta família: o colecionismo.

“É uma busca permanente. Há peças que estão connosco há 20 anos, outras estão connosco há 15 dias”, explica André, que herdou dos pois, entre outras coisas, o gosto por colecionar óculos. Uma ínfima parte dessa coleção está exposta nestas prateleiras, mas aqui, todos estão à venda. A amostra vai de modelos claramente vintage a clássicos intemporais, praticamente sem época. É o caso de uns Cartier Diabolo, em preto e dourado, do final dos anos 80. Até Lady Gaga já usou uns destes, não é há toa que são os mais caros da loja — custam 3.000 euros. É uma mistura de extravagância e luxo minimal, que pode ter vindo de uma loja de antiguidades em Veneza, como de um ferro-velho de uma vila francesa do interior. Mais uma vez, também para se ser um bom colecionador, viajar e ter os contactos certos é essencial.

A colecionadora de arte e milionária norte-americana Peggy Guggenheim, fotografada em 1964, em Veneza. Os seus óculos de sol ficaram, bem como o seu estilo extravagante, ficaram para sempre na história © Keystone/Getty Images

“Houve uma reedição de 100 peças dos óculos da Peggy Guggenheim, à venda, em exclusivo, na loja do museu, em Veneza. Conseguimos comprar duas e, na inauguração da exposição do MUDE, esteve lá o representante da fábrica que fez os óculos, uma das três maiores do mundo. Perguntou como é que tínhamos aquilo ali quando ele próprio tentou comprar e não conseguiu”, conta.

Para enquadrar convenientemente todos os óculos e as respetivas histórias, os Leal deixaram os interiores da nova loja nas mãos de Joana Astolfi, amiga da família, fã e cliente. As estantes brilham por si, perfeitamente desenhadas e encaixadas para exporem os tesouros da coleção. Quiseram todos que a inspiração deste espaço fosse um velho cabinet de curiosités. Dito e feito. Vieram as mandíbulas de grandes répteis e os esqueletos de aves para decorar. À medida que nos encaminhamos para o andar de baixo, o fascínio pela natureza dá ligar ao culto do próprio ofício de oculista, com vitrines que encerram instrumentos antigos, bem como livros técnicos já amarelados. No fundo, tudo aqui é uma ode a um único objeto. Isso e o legado de uma família. Como diz André: “Um par de óculos pode ser a coisa mais banal do mundo, mas também pode ser a mais rara”.

Nome: André Ópticas
Morada: Rua Serpa Pinto, 12, Lisboa
Telefone: 21 584 8300
Horário: De segunda a sábado, das 10h às 19h30