Face a concertos anteriores de David Byrne em Portugal, o espetáculo do fundador dos Talking Heads esta quarta-feira, em Cascais, não terminou em festa desbragada ao som de “I Wanna Dance With Somebody” de Whitney Houston. A mudança foi abrupta: em vez de terminar com essa cover, David Byrne acabou o concerto com uma homenagem às vítimas de violência policial nos Estados Unidos da América.
A canção escolhida para o encerramento foi “Hell You Talmbout”, de Janelle Monáe, sobre a vida nos bairros pobres dos Estados Unidos. Uma canção que, disse Byrne, “infelizmente mantém-se relevante” mas que o músico quis alterar. Enquanto a cantava, o fundador dos Talking Heads, a sua banda e os seus bailarinos iam elencando nomes de vítimas. Walter Scott. Jerame Reid. Michael Brown. Muitos outros, demasiados. Ordenavam “say his name”, “say her name”, como se nomear fosse antídoto ao esquecimento.
Não foi a única mudança face aos espetáculos anteriores, foi a mais sintomática do que é American Utopia, o novo disco de David Byrne, e daquilo que é a nova fase na carreira do músico. Fatores que fizeram com que a atuação no arranque do EDP Cool Jazz fosse tudo menos “só mais um concerto”. No meio das mudanças, o que se manteve foi uma banda irrepreensível, uma boa escolha de alinhamento — com espaço para muitas canções novas ,mas também com muitos êxitos antigos dos Talking Heads, dos discos Speaking in Tongues, Fear of Music, Remain in Light e Naked — e uma grande performance do cantor e guitarrista.
A entrada de David Byrne em palco deu-se às 22h33, já depois da trompetista Jéssica Pina ter oferecido banda sonora para o jantar num pequeno palco do jardim do Hipódromo Manuel Possolo e de Sara Tavares ter feito as honras de abertura do palco principal. A cantora lisboeta de ascendência cabo-verdiana foi escolhida pelo próprio David Byrne, garante a organização do festival, o que até nem surpreende dada a estreita ligação de Byrne com a música lusófona (via Brasil e Caetano Veloso).
A missão era espinhosa: Sara Tavares não teve muito tempo para tocar e foi obrigada a dar um concerto curto. “Não foi fácil. Não estou habituada a fazer primeiras partes. Não temos tempo para tocar o resto”, queixou-se a cantora no final do espetáculo. Ainda assim, deu um bom concerto, levando a uma plateia quase inteiramente branca, de classe média e média-alta, o seu crioulo cabo-verdiano, a sua africanidade, os ritmos quentes trazidos por uma banda competente e as bonitas canções de Fitxadu. Como o irresistível single “Coisas Bunitas”, que apresentou assim ainda no primeiro terço do concerto: “Hoje deram a desculpa no trabalho, disseram que estavam doentes, ‘bazaram’ para o concerto da Sara Tavares e do David Byrne… [Canta] Diz-me coisas bunitas… Se me disseram coisas bunitas podem ficar para o concerto”. O público respondeu razoavelmente, mas era visível que a grande maioria estava ali sobretudo para ver David Byrne. Como não?
Um cérebro, Trump e um apelo: “Têm de votar”
O espetáculo que o fundador dos Talking Heads montou para a digressão de apresentação do seu novo álbum é o mais performático e teatral que se lhe vê em muito tempo. Em alguns momentos, traz até à memória “Stop Making Sense”, o filme que o realizador Jonathan Demme fez a partir do concerto dos Talking Heads no teatro Hollywood Pantages, mas também o conceito de ópera e os musicais americanos, levando-nos a imaginar como seriam os Jersey Boys se fossem um grupo coral mais vanguardista e provocador (e ainda tocassem de forma exímia). Byrne não escondeu o jogo e mostrou-o logo de início. Começou por cantar o primeiro tema, “Here”, sentado sozinho a uma mesa, com um objeto que parecia um cérebro à sua frente e com uma disposição cénica atrás de si que lembrava as cortinas de um teatro.
Os bailarinos e a banda entraram ainda durante o primeiro tema, andando como robôs pelo palco e reforçando, através das coreografias e da música (espantosamente tocada ao vivo, tão espantosamente que David Byrne sentiu necessidade de reforçar que não utilizava música pré-gravada nem fazia playbacks), as mensagens de união comunitária das canções. “Here is an area of great confusion / here is a section that’s extremely precise / and here is an area that needs attention / here is a connection with the opposite side“, cantou David Byrne no primeiro tema. Estava explicado o cérebro.
Prosseguindo com “Lazy”, David Byrne ganhou o público à terceira canção, “I Zimbra”, na primeira de várias incursões pelo repertório dos Talking Heads e na primeira vez em que David Byrne se muniu da guitarra. Ele que, até aí, apenas cantou e dançou, com um microfone auricular. O público que estava na plateia sentada desinibiu-se, saltou da cadeira, cantou, gritou, começou a dançar. Seria assim até ao fim do concerto. A “I Zimbra” seguiu-se “Slippery People”, mais uma canção dos Talking Heads e mais um dos momentos de grande comunidade entre músico e público, que conhecia a canção e a aplaudiu com entusiasmo. Era altura de David Byrne soltar o primeiro “obrigado” da noite.
“I Should Watch TV”, tema que David Byrne compôs com St. Vincent (Annie Clark), interrompeu a proximidade (física e coreográfica) do fundador dos Talking Heads com a sua banda e os seus bailarinos. Byrne afastou-se, aproximou-se daquilo que pareciam ser cortinas de um teatro e cantou, isolado: “I think I should watch TV”. Ajoelhou-se, dançou desengonçado, saiu por instantes do palco. Talvez não fosse assim tão boa ideia?
Voltando às novas canções, que apesar das letras surreais (um traço identitário do músico) refletem mais o contexto político e social em que foram feitas do que quaisquer outras na carreira discográfica de David Byrne, o músico atirou-se a “Dog’s Mind”, tema dedicado — sem grande ternura, como se vê pelo título — ao novo presidente americano Donald Trump. David Byrne, músicos e bailarinos de pé lado a lado, numa fileira horizontal (espécie de fileira militar), cantando os mesmos versos ao mesmo tempo com pose rígida: eis a forte imagem que ficou. Era uma boa altura para um discurso político e David Byrne não o enjeitou. Algo ingenuamente ou é cinismo nosso?
A última vez que estive em Cascais foi num festival de cinema… Nós andámos em digressão nos Estados Unidos antes de voltarmos aqui e associámo-nos a uma organização cívica. Encorajo as pessoas que aqui estão a votar em todas as eleições. Até as pequenas têm importância. Podem achar que estão seguros em Portugal, mas as coisas estão a mudar na Europa. Têm de votar!”
O público gostou do discurso e daqui em diante a química só se reforçou. “Everybody’s coming to My House”, do novo disco, é sinónimo de dança rock fervorosa, com as guitarras a rasgar. A sucessão “This Must Be the Place (Naive Melody)” e “Once in a Lifetime”, ambos temas dos Talking Heads, foi uma viagem de velocidade espantosa do 8 para 80. Apesar do público ter alinhado no primeiro tema e cantado os “uuuhhhh” entoados por David Byrne, “Once In a Lifetime” é um dos maiores êxitos dos Talking Heads e foi acompanhado com intensidade pelo público, como se as saudades e as boas memórias dos anos 1980 estivessem ali mesmo, a apenas uns metros de distância, possíveis de se agarrar.
Com mais umas quebras pelo meio, o nível voltou a subir com “Everyday is a Miracle”, outra boa faixa do novo álbum. O primeiro final deu-se pouco depois e foi apoteótico, com “Burning Down the House”, tema dos Talking Heads, a parecer terminar em beleza um concerto de muito bom nível. Parecia porque haveriam dois encores, com o músico e a sua comitiva a voltarem a palco para tocar “Dancing Together” e “The Great Curve” (nesta última, David Byrne e restantes músicos deram provas evidentes de virtuosismo, com solos de guitarra e jams diabólicas) e para encerrarem o concerto com essa menos festiva, menos cantada mas simbolicamente poderosa “Hell You Talmbout”, de Janelle Monáe.
O balanço faz-se em poucas linhas: David Byrne mostrou mestria em aliar as canções do novo American Utopia (que não sendo brilhante, como se percebeu em palco, foi subvalorizado pela crítica) às grandes canções dos Talking Heads e a algumas das suas melhores cantigas a solo. É claro que faltaram algumas, faltariam sempre. “Nothing But Flowers”, por exemplo. Pérolas menos populares mas merecedoras dos maiores elogios, também — “Heaven”, do disco Fear of Music (dos Talking Heads) e “Walk on Water” e “Broken Things”, do ótimo disco a solo Look Into The Eyeball, de 2001.
Ainda assim, percebe-se bem a opção do músico em não abdicar dos temas novos: são eles que em 2018 fizeram de um concerto de David Byrne uma performance invulgar e personalizada, com uma mensagem para o mundo numa época em que a música de intervenção parece estar destinada ora a ser demasiado literal e ingénua, ora a simplesmente não se ouvir. Byrne não quis dar um concerto perfeito esta quarta-feira em Cascais, quis dar um concerto poderoso. E se o elevado nível de profissionalismo demonstrado (já referimos a afinação e timing de entrada dos coros, dos instrumentistas e dos bailarinos, sempre perfeitos?) não bastasse, se o próprio dispositivo cénico e coreografia idealizada e executada na perfeição não bastassem, os nomes evocados num final arrasador foram o certificado de que toda a gente saía do Hipódromo Manuel Possolo sem ignorar que temos mesmo todos de conversar sobre tudo isto.
Sim, David Byrne foi punk — na atitude, na subversão do que é suposto um concerto ser, na mistura despudorada de sonoridades que Byrne e os Talking Heads juntaram quando ninguém o esperava. E, apesar de celebrar o passado, como sempre, também em Cascais David Byrne esteve virado para o futuro.
Nota final – Como ponto negativo da mudança do festival para Cascais está a área da restauração. O cartaz e a afluência de público este ano, pelo menos nesta primeira noite de concertos, exigiam mais e maiores bancas de restauração do que as que se encontravam no recinto. Entre as 20h e as 21h, as filas para estas bancas avolumaram-se a níveis incomportáveis, obrigando muitos a desistirem de jantar a uma hora normal pelo exagerado tempo de espera.
Nota de edição – Inicialmente, referia-se no texto que o primeiro concerto do arranque do EDP Cool Jazz foi o de Sara Pina. A trompetista portuguesa chama-se, na verdade, Jéssica Pina. Pelo lapso, as nossas desculpas