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"Em Surdina". Quem não ouve também dança

Este artigo tem mais de 5 anos

O novo espetáculo de Marco da Silva Ferreira junta adolescentes surdos e ouvintes na dança e derruba barreiras no acesso à cultura. Estreia-se nesta sexta-feira, no Teatro Campo Alegre, no Porto.

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Jose Caldeira

Jose Caldeira

“Em Surdina” não é um espetáculo de dança qualquer. Foi pensado, desde a sua génese, para um público surdo. As vibrações provocadas no chão e nas cadeiras pelo som e a luz que marca as mudanças de cena deixam que se sinta o que nem todos conseguem ouvir. Afinal, porque é que a dança tem de ser só para alguns?

“You can’t start a fire without a spark
This gun’s for hire
Even if we’re just dancing in the dark”

É ao som de uma etérea versão a cappella de Bruce Springsteen que surgem os primeiros sinais de vida num palco ainda imerso no negro. Vemos a jovem que canta. A luz púrpura, que dança no escuro, vai dando a conhecer outros corpos. Quando o verso “dancing in the dark” (“dançando no escuro”) começa a ecoar repetidamente, vários jovens, até agora à margem da ribalta, ocupam o centro, movem-se, confundem-se. Entre os oito adolescentes, cinco são surdos. Mas ali não há intrusos – não se distinguem entre si no início e é provável que não se distingam no fim.

São adolescentes e, no palco, tal como na vida real, aventuram-se no conhecimento do outro, aproximam-se, descobrem-se. Por um lado, a necessidade de inclusão. Por outro, a vontade de afirmação e a tensão da competitividade – o fazer maior, o fazer mais rápido do que os pares. Ora estão sincronizados, ora autonomizam-se, sempre com a percussão e o baixo intensos de fundo. Tocam-se, deixam-se cair e vibram. Ao longo do espetáculo, os corpos são uma extensão das frequências da música de fundo, são uma nova orquestra de instrumentos, cada um com o seu próprio timbre, a seguir o mesmo compasso. Marco da Silva Ferreira, o coreógrafo, resume a analogia: “São uma sinfonia”.

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[um teaser em vídeo do espectáculo “Em Surdina”:]

A maior parte dos jovens protagonistas estuda no Agrupamento de Escolas Eugénio de Andrade, no Porto, uma escola de alunos “normais”, mas reconhecida como referência de educação bilingue de alunos surdos. A iniciativa é do Paralelo, o Programa de Aproximação às Artes Performativas do Teatro Municipal do Porto, que quis desafiar estes jovens a encontrarem a dança através de uma escuta interna, mas também nas vibrações que sentem no espaço, provocadas pelo som. Foi com esse objetivo que durante nove meses o grupo se reuniu, sob o olhar atento de Marco da Silva Ferreira, coreógrafo e já conceituado intérprete de dança de 32 anos.

Este foi um desafio totalmente novo para o artista, que já tinha trabalhado com adolescentes e não-bailarinos, mas nunca com surdos:

“Eles veem a dança como uma atividade física, uns truques que podem aprender. E eles sabem todos os códigos de dança da adolescência – a cópia é um grande estímulo para dançarem e para se sentirem integrados.”

Ao longo da coreografia impõem-se, aliás, várias referências à cultura da internet que qualquer adolescente entende à primeira vista, como o dab ou o floss, uma dança popularizada pelo videojogo “Fortnite”.

“Barreiras atrás de barreiras” no acesso à cultura

Nos ensaios, dentro e fora de palco, a diferença entre a Língua Gestual Portuguesa e o português não se fez obstáculo. Antes de entrarem em cena, por exemplo, Marco dá as últimas indicações, imediatamente traduzidas por uma das três intérpretes que estão envolvidas no projeto. Para chamar alguém de costas, bate o pé no chão, porque as vibrações chegam onde a voz não consegue chegar.

Foram feitos pequenos ajustes, mesmo ao processo de criação, explicou o coreógrafo, que já se “safa” na nova língua: “Tinha sempre intérpretes comigo e fui percebendo qual era a gestualidade básica de que precisava para dar indicações. Normalmente, eu guio as improvisações através da voz e não pude fazer isso aqui. Tive de reorganizar a minha forma de encontrar material coreográfico.”

Ana Rios é uma das peças fundamentais da engrenagem do espetáculo. A intérprete, que trabalha no Agrupamento de Escolas Eugénio de Andrade, foi quem fez a ponte entre o Observador e os alunos. Em poucos gestos, Nelson dá a resposta à pergunta que se impõe a qualquer ouvinte: “O que é que te estimula a dançar se não ouves a música?”. “Guio-me pela vibração. Aquilo que os ouvintes ouvem, eu sinto”, explica. É simples, mas nem sempre foi fácil, revela o rapaz de 16 anos:

“Quando cheguei cá pela primeira vez, vim com um grupo de colegas surdos e senti-me um bocadinho mal. Não estava habituado a este tipo de trabalho e nunca tinha dançado, mas agora estou a sentir-me muito bem.”

Esta também é a primeira vez que o seu colega Tiago dança, nos seus 15 anos de vida. Não foi fácil convencê-lo: “Tiveram que me provocar para eu aceitar participar. Desde pequenino que odiava a dançar. Entretanto, comecei a gostar, entusiasmei-me com este projeto”, conta com as mãos. Mas nem isso lhe tira o frio da barriga: “Estou orgulhoso com o resultado final, mas muito nervoso. Porque é a primeira vez que estou num palco.”

Também Ana Beatriz ganhou um novo gosto pela dança. Mas, com apenas 12 anos, não esconde a dificuldade que sente em aceder a eventos culturais deste ou de outros tipos, apenas por ser surda: “São barreiras atrás de barreiras. Estou a gostar imenso deste projeto, porque é acessível para nós.”

Matilde, de 16 anos, é uma das jovens ouvintes participantes. Ao contrário da maioria dos colegas, dança desde tenra idade. Mas esta experiência fez com que saísse da sua bolha e pôs à prova novas capacidades. Uma delas foi a paciência:

“No início, achava mesmo difícil trabalhar com eles. Achava que eles estavam um bocado ‘fora’, deslocados. Como era bailarina, fazia tudo mais rápido, com um certo método, e eles eram mais lentos. Mas, assim que começamos a conseguir comunicar, tornou-se mais fácil. Aprendi alguns gestos e já consigo olhar para eles e, sem precisar de intérprete, dizer-lhes mais ou menos o que sinto.”

“Agora é fácil comunicarmos uns com os outros. Estamos muito unidos. O grupo é fixe, o convívio também”, explica Nelson. Em poucos (e tímidos) gestos, Ana Beatriz completa: “No início, não nos conhecíamos, não falávamos. Agora, quando chegamos, já dizemos ‘Olá, está tudo bem?’. Já nos entendemos a todos.”

Ao longo dos meses de trabalho, Marco sentiu de perto o crescimento da autoconfiança e do “à vontade” dos aprendizes. Mas também ele sai diferente do desafio: “Normalmente os meus projetos partem de uma vontade muito intrínseca de ter algo a dizer. Mas, às vezes, podes não ter nada a dizer, pode não ser sobre ti. E essa é uma grande lição que levo daqui. Para mim, foi mais importante perceber o que é que este processo poderia trazer àqueles jovens. Foi mais sobre conhecer as pessoas, o canal intermédio em que a comunicação existe e como é que podia influenciar a vida delas da melhor maneira. E elas acabaram por influenciar a minha também.”

Os ensinamentos, esses, vão para lá da memorização e coordenação dos movimentos: “O que eles levam daqui, para lá da técnica, é a aprendizagem da vida. Há um desafio: eles podem desistir ou podem continuar. Aqui, esses desafios aconteceram e eles não desistiram.”

O espetáculo “Em Surdina” pode ser visto na sexta-feira e no sábado (13 e 14 de julho), às 21h30, no Teatro Campo Alegre. O bilhete custa 5 euros para adultos e 2 euros para crianças até aos 12 anos.

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