As velhas tascas tradicionais e a nova música portuguesa. O movimento e as zonas esquecidas da cidade. Os septuagenários e a criançada. Conceitos talvez paradoxais que andaram a par e passo no passado sábado, em Guimarães. O casamenteiro foi o mini-festival gratuito e itinerante Vai-m’à Banda que, pela segunda vez, levou artistas nacionais – e cerca de 3000 espectadores – para fora da zona turística da cidade. A edição “superou as expectativas”, confessou Miguel de Oliveira, da Revolve, a organizadora do festival. Legendary Tigerman recebeu de braços abertos uma enchente, os Toulouse tocaram pela última vez (por “tempo indeterminado”) e Tó Trips e João Doce foram banda sonora da maior fila para petiscos de Guimarães. Um cartaz com nomes sonantes, mas em que o vinho escorrido para as malgas de porcelana e o presunto ou as sardinhas com pão foram os protagonistas.
O sábado foi de calor e desde o início da tarde que os mais de 30 graus exigiam refresco. Vinho verde branco era o que mais saía da Tasca Expresso – quem queria cerveja, tinha de ir a outro lado. Nem por isso a fila emagreceu naquela casa que é uma breve visita ao passado, com as canecas e os molhos de cebola pendurados no teto, as caixas de fruta à venda encostadas a um canto, o ar frio, a pouca luz.
Cá fora, ao lado de velhos impressionados com o movimento da rua, crianças dançavam, mesmo sem música, ao som do inglês dos turistas e dos reencontros de conhecidos. O concerto de Mathilda, a cantautora da terra, chegaria só às 15h30, para interromper o burburinho da multidão e criar um universo alternativo à cidade ruidosa. A voz doce e as cordas dedilhadas contrastavam com o rugir dos motores dos carros, os inevitáveis sinos da igreja, o ameno convívio da gente amontoada no passeio. A pouco e pouco, a jovem de 18 anos acompanhada na guitarra acústica pelo vimaranense Gobi Bear, conquistou a atenção dos miúdos e graúdos. Não foi fácil. Era música chuvosa tocada em plena tarde de verão.
Um concerto sem hits, porque a miúda-promessa de Guimarães ainda não os tem, talvez à exceção da única música que lançou, em Novembro de 2017 – “Infinite Lapse”. Nada que a impeça de tocar ao vivo. Desde Março, já deu “cerca de 40 concertos”, feitos de “músicas-possíveis” de um álbum “que ainda está a ser cozinhado”, contou ao Observador. Estreou-se no Centro Cultural de Vila Flor, na cidade que a viu nascer e crescer. “E é sempre especial tocar em em casa”, confessou.
Mesmo depois da atuação, a fila para os comes e bebes continuou a alongar-se. Os dois senhores da Tasca Expresso não tinham mãos a medir – ora partia-se a broa, ora fatiava-se o presunto, ora enchiam-se as malgas de vinho. Um cliente habitual desabafava, numa mesa de esplanada libertada, finalmente, pelos visitantes: “Até me passei da cabeça quando vi tanta gente!”
Rui e Alexandra vieram com a filha pequena para o festival. Contaram ao Observador que vão a “todos os eventos culturais” que conseguem encontrar em Guimarães. E estão “bem servidos”. Este evento é, no entanto, uma “lufada de ar fresco para estes estabelecimentos”, explicou Rui, referindo-se à Tasca Expresso – “É curioso que se tenha aguentado nos últimos anos aberta. É complicado, porque não é muito atrativa ao grande público. Mas este evento aproxima as pessoas.”
Telma e os amigos estrangeiros, sentados diante de uma mesa ocupada por presunto e malgas de vinho tinto, são um bom exemplo desta proximidade. Há um ano que a lisboeta de 32 anos vive em Guimarães e já é fã da cidade: “A qualidade de vida que eu tenho aqui não tenho em Lisboa. Todas as semanas há coisas a acontecer – festivais, concertos, teatro, cinema – para todo o tipo de público. E Guimarães tem uma particularidade incomum. Consegues ter malta jovem num sítio geralmente frequentado por pessoas muito mais velhas e não há qualquer estigma, todos convivem tranquilamente.”
Também se apaixonou pelos petiscos, contou, entre risos. Mas nesse campo, a Penha é o seu sítio predileto. Vai lá uma vez por semana, sem falta, e é para lá que vai a seguir, para assistir à atuação de Tó Trips e João Doce.
Sardinhas fritas e pão pita: o cabeça-de-cartaz da Penha
Após uma breve viagem de teleférico, já na Montanha de Santa Catarina, o ponto mais alto (e com a vista mais bela) de Guimarães, uma longa fila dobrava o “quarteirão”. Dezenas e dezenas de pessoas, alinhavam-se para provar as célebres iguarias da Adega do Ermitão, um oásis gastronómico que se levanta entre a vegetação e os penedos da Penha. Viam-se pessoas mais velhas, de mesas recheadas de sardinhas fritas e pão pita, bem acomodadas, indiferentes à gente jovem que ali se amontoava. Rosa, de 62 anos, era uma delas. “Gosto muito da Senhora da Penha. Da comida, do ambiente e do ‘estar à fresca’.” Desta vez, coincidiu com o festival. “E é lindo!”, comentava a senhora de Vila Verde, sentada nuns banquinhos de pedra à sombra. À sua frente tinha uma malga de caldo verde e outra de vinho. As sardinhas e o bolo, um dos pedidos mais frequentes da Adega, já estavam na barriga. Apesar de tudo, aquela extensa fila não lhe era estranha: “Leva duas horas para comer umas sardinhas! É sempre assim, eles vendem muito. Mas compensa. Se não sairmos às oito, saímos às nove.”
A hora do lanche chegava quando a guitarra de Tó Trips (Dead Combo) começou a ecoar. Ali a música abafava quaisquer murmúrios e, se houvesse mais espaço para a ginga, poucos teriam medo de dançar de copo na mão. A vista era peculiar – dois músicos num palco, que não é mais do que uma plataforma de curtos centímetros coberta de tapetes velhos, e os abismais penedos por trás. Mesmo ao lado, duas crianças observavam, meias hipnotizadas, João Doce (Wraygunn) na percussão. Tó, de olhos fechados e pé impositivo com uma pulseira de castanholas, e João, a dividir-se entre mil e um intrumentos, viajaram até “Sumba”, lançado há dois anos.
Acabada a música, foram poucos os que abandonaram a Penha. O caldo-verde, as sardinhas, os bolos e bolinhos continuaram a sair. Mas só os mais gulosos encontraram coragem para enfrentar horas de fila. Foi o caso de Filipe, de 32 anos, que veio de propósito de Santo Tirso para o festival. Veio com o irmão, curioso pelo conceito. Agora quer vê-lo replicado: “O Norte é imenso e há mais concelhos que deveriam adotar esta ideia. Há muitos artistas de vários concelhos que também têm tascas onde se pode comer e beber bem.”
“Vitória, foi amor à primeira vista”
Ao pôr-do-sol, há quem fique a passear na Penha, há quem se dirija logo ao Largo do Trovador, para seguir o plano e assistir ao DJ set de Suave Geração, e há quem aproveite a pausa na música ao vivo para jantar. Afinal, os Toulouse só sobem ao palco às 22h. Ainda antes, entre a maioria dos vimaranenses, havia uma difícil decisão a tomar – entre a música e a bola. O Porto-Vitória começava às 21h.
Quando os Toulouse subiram ao palco, o Largo do Trovador já estava recheado e várias senhoras assistiam das varandas das suas casas ao movimento tão pouco habitual. O quarteto já conhecido da terra deu um concerto em volta do álbum de estreia “Yuhng”, de 2016, e anunciou que este seria o último, “por tempo indeterminado”. Francisco, baterista da banda, explicou ao Observador: “Vamos focar-nos noutros projetos profissionais e musicais. Não acabamos definitivamente, mas vamos fazer uma paragem. Depois, se voltarmos, voltamos já com mais bagagem para fazer coisas novas.”
Fechar o ciclo “em casa” tem um significado especial, adianta: “É bom tocar para a família e os amigos, que nos apoiaram tanto. É uma prenda para eles, tocar aqui, num sítio bonito, com bom ambiente e tanta gente.” É também um agradecimento à cidade e à gente “muito bairrista, que apoia a criação local” e que torna Guimarães numa boa cidade para se ser artista. Captain Boy, Paraguay, This Penguin Can Fly e Mathilda são os nomes que vêm à cabeça de Francisco – para ouvir e seguir.
Foi também Francisco que interpelou a audiência a meio do espetáculo de despedida. “Quanto está?”, perguntou. No público, duas mãos com dois dedos levantados em cada uma delas esclareceram-no. Pouco depois, vários festejavam mais efusivamente. O Vitória venceu por 3-2 na casa dos dragões – 22 anos depois. Mas a verdadeira romaria chegaria mais tarde, já o concerto de Legendary Tigerman ia avançado e o Largo estava totalmente lotado. Numa pausa entre músicas, dezenas de adeptos cobertos do preto e branco do clube começam a descer a Rua de Couros, abaixo do Largo. Acabavam de chegar do Porto, roucos, mas delirantes. Por escassos minutos, roubaram o protagonismo a Paulo Furtado e cantaram, em volta de tochas, “Vitória, foi amor à primeira vista/Mas que coisa tão bonita/Eu poder-te apoiar!.” Mas as atenções rapidamente voltaram ao concerto mais concorrido e longo do mini-festival. Uma atuação cuja receita pouco ou nada mudou ao longo do tempo, com as maiores malhas guardadas para o final, como a “Let’s do the bird all night long” e “Twenty first century rock ‘n’ roll”, que sempre convence a multidão a gritar em uníssono palavras de ordem.
Àquela hora dificilmente se encontrava um espaço vazio no Largo que, há uns anos, era visto de lado pelos vimaranenses, explica Daniel, gerente da Taberna do Trovador: “Esta é uma zona recente, que teve obras há pouco tempo, mas que tinha uma má fama associada. Era uma zona podre, esquecida, suja. Mas desde 2012 para cá que isso mudou um bocadinho. E estes eventos ajudam muito.”
Alexandre, de 24 anos, que ficou para a festa mesmo depois de Tigerman, acredita que o Vai-m’à Banda é “uma boa maneira de criar pontos de interesse fora do circuito habitual do centro histórico” – “Chamar as pessoas para o Campo da Feira, o Largo do Trovador ou até a Penha é uma forma de dinamizar zonas mais esquecidas e criar novos hábitos não só na população local, mas também em quem visita a cidade.” A cidade que já ensina a outras, maiores, que se pode apostar na música nova sem esquecer a tradição.