Nos mercados tecnológicos existe a ideia das killer apps: são softwares (ou mesmo hardware) tão providenciais e exclusivos que justificam a aquisição da plataforma ou dispositivo onde estão inseridos. Seja o Office nos sistemas Windows ou os próprios OS X dos computadores Mac, há muitos exemplos de aplicações obrigatórias que por si só vendem tecnologias. Os videojogos também têm exemplos facilmente identificáveis: seja o PokémonRed e Blue, que catapultou as vendas do já bem-sucedido Game Boy ou o recente caso do magistral The Legend of Zelda: Breath of the Wild, aquando do lançamento da Nintendo Switch.
Outrora, uma das principais concorrentes do mercado de consolas de videojogos domésticas, a SEGA, acabaria por sair do mercado na viragem do milénio, depois de ter somado dois lançamentos que ficaram aquém das expectativas. A última delas foi a Dreamcast, a primeira a ser lançada da sexta geração de consolas e que veria a concorrente PlayStation 2 a “vencer” a guerra por larga margem, vendendo cerca de 9 milhões de unidades na sua curta vida, ao passo que a PS2 acabaria por ser a consola mais vendida até hoje: 155 milhões de unidades, uma diferença esmagadora que acabaria por afastar definitivamente a SEGA do mercado do hardware doméstico. O insucesso das vendas não se traduziu na falta de qualidade do hardware e, muito menos, do software. Nos anos que se seguiram à sua descontinuação, a Dreamcast acabaria por receber um estatuto de culto, muito graças a alguns títulos verdadeiramente obrigatórios, dos quais Shenmue, do game designer japonês Yu Suzuki é o maior exemplo.
Lançado em Dezembro de 1999, aquele que era tido como o “jogo com a produção mais cara” até então, acabaria por não compensar o grande investimento financeiro da SEGA, mas viria a ficar marcado na história como um dos jogos mais influentes e a verdadeira killer app da Dreamcast. Shenmue vinha, com a sua abordagem inédita, mudar por completo o paradigma de criação autoral de um videojogo. O estatuto de culto que alcançou estendeu-se até ao lançamento da sequela em 2001, cujo enredo acabaria por terminar num cliffhanger. Depois de os jogadores terem implorado durante anos pelo terceiro título e a conclusão da série, seria durante a conferência da E3 2015 da PlayStation que Suzuki subiria ao palco para anunciar a campanha de Kickstarter para Shenmue III, cujo entusiasmo global levou a que a campanha de crowdfunding ficasse financiada por 1 milhão de dólares em menos de duas horas.
Ao longo de 18 anos, quem quisesse jogar os dois títulos de Shenmue teria de ter obrigatoriamente uma Dreamcast. Parte do sucesso da campanha de Kickstarter de Shenmue III passou por anunciar também uma remasterização dos dois títulos para as plataformas de nova geração: PlayStation 4, Xbox One e PC. A antecipar o lançamento do terceiro título no próximo ano, chegou há dias às lojas Shenmue I + II HD Remaster, que vai permitir a quem não possui uma Dreamcast poder experimentar dois dos jogos mais influentes de sempre. No entanto, é possível que muitas das pessoas que só tenham contacto com o jogo agora não consigam perceber a sua importância, especialmente porque muitas das inovações que o jogo criou acabaram por ser melhoradas ao longo de quase duas décadas por outros títulos.
O timing de contacto de Shenmue é providencial para conseguir relativizar o seu valor real, sobretudo porque, apesar desta versão remasterizada ter novas texturas, o jogo continua a ser marcado visualmente pela estética poligonal da sua época, longe do realismo técnico em que vivemos hoje. Mesmo sendo um jogo histórico, que muita gente ouviu falar, é difícil que novos jogadores tenham qualquer apelo de compra para com esta antologia, tal é o seu desfasamento tecnológico para o que encontramos nas prateleiras nos dias de hoje.
Shenmue veio trazer novos pontos de vista do que deveria ser um videojogo, longe do hábito mais despojado de uma década pautada pela ação e pela diversão constante das consolas e máquinas de arcadas. Uma visão de videojogos vigente que para muito contribuiu Suzuki, criando alguns dos jogos de arcadas mais conhecidos da década. Mas para Shenmue, Suzuki tinha uma ideia diferente: ajudar os videojogos descer ao campo do mundano e do rotineiro, desenvolvendo algo que rítmica e esteticamente apelidamos hoje como um life simulator.
Shenmue passa-se no Japão em meados dos anos 1980, onde Ryo Hazuki, um estudante de artes marciais vê o seu pai ser assassinado por um estranho homem chamado Lan Di. Numa clara história de vingança, Ryo parte em busca da verdade sobre a morte do seu pai, numa investigação que vai levar a cabo ao longo de dois jogos. O facto desta história de origem ser um dos maiores clichés dos filmes de ação asiáticos não é um mero acaso. Suzuki quis pegar neste lugar comum dos filmes de Kung Fu e trazê-los para o campo do mundano, em que mais do que a ação irrealista que o cinema nos habituou, temos os problemas quotidianos de um jovem que paralelamente ao seu dia-a-dia anda em busca de vingança.
Este jogo fez uma ligação atípica à realidade até então. Mais do que andarmos em lutas de rua constantes, passamos grande parte do tempo a interagir com as pessoas da região de Yokosuka, tentando encontrar pistas sobre a verdade. Mas o mundo do jogo tem ciclos de dia e de noite, e horas do dia bem definidos. Sobre isto, Suzuki decidiu também estabelecer vidas artificiais para os personagens, definindo as suas rotinas, os seus quotidianos. Os autocarros, as lojas e as pessoas têm horários para podermos interagir com elas. Se soubermos que um personagem apenas sai à rua a uma determinada hora, temos de esperar que o relógio marque esse momento para encontrar.
Uma alteração feita do primeiro para o segundo título é que o segundo já permite avançar o relógio, ao passo que o primeiro nos obriga a esperar a passagem das horas e a mudança do dia para a noite e da noite para o dia. Para isso, neste jogo que é uma espécie de génese dos life simulators, encontrámos formas de passar o tempo, como ir para salões de arcadas jogar ou, aquilo que mais marcou quem o jogou aquando do seu lançamento: a necessidade de trabalharmos. Na maioria dos jogos de ação e de luta, somos alguém que não tem necessidades básicas de vida e podemos dar-nos “ao luxo” de passar o dia em escaramuças com criminosos. Em Shenmue, todo esse paradigma irrealista mudou e tínhamos de levar Ryo a trabalhar como condutor de empilhadoras, sequências jogáveis no qual éramos recompensados com dinheiro depois de terminarmos as nossas tarefas.
O combate propriamente dito era menos frequente do muitos desejariam e não era, de todo, o centro do jogo. Ao contrário do que possamos sentir, Suzuki acabou por criar um jogo de Kung Fu, no qual o quotidiano e o mundano são os verdadeiros protagonistas. Um mundo aberto com rotinas e horários, no qual a escala mais reduzida tornava-o mais verosímil e simultaneamente mais relacionável.
Comparando as versões originais e as atualizadas em alta definição, detetámos alguns problemas, especialmente ao nível do som. Com problemas técnicos de acesso às faixas de voz originais gravadas em 1999, o resultado que encontrámos nesta antologia são linhas de áudio de baixa qualidade, com ruído, e que quase estragam a experiência de jogo.
Esta versão remasterizada é a oportunidade perfeita para perceber todos os pequenos elementos cinematográficos e autorais que foram inseridos no pensamento criativo dos videojogos, graças a Yu Suzuki e a Shenmue. É verdade que, no passado recente, existe uma série (também ela desenvolvida pela SEGA) que pega nos pressupostos de Shenmue e os eleva para outro patamar, como Yakuza, de Toshihiro Nagoshi. Mas, em boa verdade, este nunca existiria tal como o conhecemos se Shenmue não tivesse servido de pedra basilar para esta abordagem nos videojogos.
Shenmue I + II HD Remaster tem, como muitos jogos seus contemporâneos, algumas dificuldades em sobreviver ao teste do tempo e dificilmente, sem a carga histórica, seria apelativo, por si só, para cativar novos jogadores. Jogá-lo deve ser um ato de compreensão da sua importância e influência, “desculpando” com estes quase vinte anos de distância a evolução tecnológica e criativa que aqui não existe. Mas que possivelmente não existiria se Shenmue não tivesse sido lançado no momento em que foi.
Ricardo Correia, Rubber Chicken