Os deputados da comissão de Defesa Nacional receberam na semana passada, em cima da audição ao ministro Azeredo Lopes, uma denúncia sobre uma transferência de material de guerra para os Paióis Nacionais de Tancos. De acordo com a informação que chegou ao Parlamento, a transferência terá sido realizada 15 meses depois do assalto àquelas instalações e quase um ano após a ordem do Chefe do Estado-Maior do Exército para que o espaço fosse desativado. O documento não passa, neste momento, de uma denúncia anónima que ainda não foi analisada pelas autoridades judiciais, mas foi preventivamente enviado para a Procuradoria-geral da República (PGR) e poderá ser anexado ao inquérito sobre o furto de junho de 2017.

Num folha única, sem assinatura, e escrita apenas de um dos lados, o autor faz uma breve introdução para defender a “descoberta da verdade” sobre o maior assalto de sempre a instalações militares em Portugal. Depois, passa ao concreto: nove pontos (um dos quais, o sexto, deixado em branco) que denunciam, entre outras questões, o que diz ser um “total descontrolo” na gestão do material de guerra no Exército.

O ponto central do documento é aquele em que se relata uma operação de “trasladação” de explosivos, munições e projéteis para os Paióis Nacionais de Tancos no início deste verão.

No dia 7 de julho (sexta-feira à tarde) [sic], mais de uma tonelada de material pirotécnico foram transportados [sic] do Regimento de Engenharia 1 (RE1) para os Paióis Nacionais de Tancos”, refere o texto a que o Observador teve acesso.

Esses materiais “estavam no RE1 de forma ilícita, com o conhecimento do comando da unidade”, sendo que “tal qualidade e quantidade de material só poderia e deveria estar num sítio: armazenada em segurança nos PNT”, considera o autor da carta.

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No início da semana, a denúncia chegou às mãos do presidente, o deputado Marco António Costa (PSD), foi distribuída aos coordenadores de cada um dos partidos com um pedido de “reserva” e, por iniciativa do social-democrata, enviada para a PGR. Não é, de resto, a primeira vez que cartas como esta chegam ao Parlamento — algumas são endereçadas à comissão de Defesa, outras aos grupos parlamentares e nalguns casos chegam diretamente aos coordenadores desses grupos.

O documento não foi sequer matéria de discussão entre os deputados da comissão de Defesa. Mas, na audição parlamentar do ministro da Defesa a propósito do furto de junho de 2017, no dia 12 de setembro, e sem fazer referências explícitas à carta, o Bloco de Esquerda rondou o assunto em duas das perguntas que colocou a Azeredo Lopes.

O deputado João Vasconcelos pediu ao ministro um ponto de situação sobre os paióis de Tancos e pediu garantias de que as instalações estavam, de facto, de portas fechadas. O bloquista também quis saber se haveria material de guerra disperso por unidades militares além de Marco do Grilo, do Campo de Tiro de Alcochete e do Campo Militar de Santa Margarida.

Sobre a situação dos PNT, Azeredo Lopes remeteu Vasconcelos para o relatório que o Ministério da Defesa tornou público em março deste ano. Aí, faz-se referência a um comunicado do Exército, de 30 de outubro de 2017, onde o ramo se disponibiliza para explicar todo o processo de transporte de transferência de material de guerra para os novos destinos, depois de ter concretizada a decisão de “desativar os Paióis de Tancos”.

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O ministro disse ainda que “o material à disposição das Forças Armadas não pode estar concentrado em dois ou três lugares no país”, porque várias unidades — como é o caso do Regimento de Engenharia 1 — recorrem com frequência a material de guerra para as instruções que realizam nas próprias instalações. A preferência, admitiu depois Azeredo Lopes, é a de que haja uma “relativa concentração do material”.

Denúncia enviada para investigação judicial

Na audição do ministro, o assunto não voltou a ser referido. O timing em que a carta chegou ao Parlamento motivou reservas de alguns deputados, mas ainda antes de Azeredo Lopes se sentar na sala já o documento estava a caminho da PGR para, eventualmente, poder ser anexado ao inquérito sobre o furto a Tancos que corre no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).

Na leitura de alguns dos deputados, apurou o Observador junto de outra fonte parlamentar, o documento revela o desnorte que se vive no Exército relativamente à gestão que continua a ser feita deste tipo de material. É, aliás, isso que o documento assinala, nomeadamente quando aponta o “total descontrolo de material explosivo” que acabou por ser retirado do RE1 a 7 de julho.

A carta anónima — o envelope aponta o próprio “Regimento de Engenharia 1” como remetente mas esse dado foi encarado como uma estratégia para despistar a origem do texto — refere que a transferência do material foi supervisionada pelo comandante do grupo de equipas de inativação de explosivos (a EOD — Explosive Ordenance Disposal) e também conta que, num primeiro momento, houve “intenção de destruir este material no Campo Militar de Santa Margarida”. Essa proposta não foi autorizada e terá entrado em marcha o plano B: Paióis Nacionais de Tancos.

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A versão provocou estranheza junto de outros militares. Uma alta patente ouvida pelo Observador lembrou — e confirmou — que os PNT foram efetivamente desativados no final do ano passado. Os mais de 20 armazéns que ocupam uma extensa área de terreno junto ao Regimento de Engenharia 1 e ao Regimento de Paraquedistas (RPara) são, neste momento, guardados por um efetivo bastante reduzido, que se limita a garantir que o espaço não é deixado ao total abandono.

Aquilo que é referido na carta como tratando-se dos PNT pode, na verdade, referir-se aos paiolins construídos na sequência do “caso de Tancos”. São dois armazéns construídos junto ao RE1 para guardar material explosivo a que os militares recorrem com frequência e que, logisticamente, não faria sentido transportar para qualquer dos três locais apontados pelo Exército como sendo preferenciais para colocar explosivos, munições e outro material sensível. Uma versão que colhe apoio na resposta que Azeredo Lopes deu ao deputado João Vasconcelos na audição de quarta-feira.

O Observador tentou confirmar, junto do Exército, a situação em que se encontram os PNT, se teve conhecimento da transferência de material relatada na denúncia e se foram instaurados inquéritos internos para apurar os contornos da operação. Não houve qualquer resposta até ao momento.

Exército alega “melhoria das condições de segurança”

Apesar de não ter respondido às questões sobre que o Observador colocou por e-mail no dia 13 de setembro, esta quinta-feira — quatro horas e meia depois de a notícia ser publicada — o Exército enviou um “esclarecimento às redações” referindo um transporte de material de guerra do Regimento de Paraquedistas (contíguo ao Regimento de Engenharia 1) para os Paióis Nacionais de Santa Margarida e para a Unidade de Apoio Geral de Material do Exército. Fê-lo por “condições de segurança”.

Fazendo referência à existência de “várias incongruências” na denúncia anónima que a Comissão de Defesa enviou para a PGR, o Exército refere que “o Regimento de Paraquedistas, que tem um paiol no seu aquartelamento, que não faz parte do complexo dos Paióis Nacionais de Tancos, a 5 de julho (quinta-feira) e por ordem da estrutura de Comando do Exército, efetuou um movimento de munições e explosivos” para aquelas duas instalações.

O “esclarecimento” reafirma que os PNT “estão desativados por ordem do general Chefe de Estado-Maior do Exército” e que, desde a desativação, foi “mantida a presença física e a vigilância às instalações, por questões de segurança física das infraestruturas”, como o Observador já referia na versão inicial do artigo. E revela ainda que “as razões que levaram a esta transferência de material resultam de uma necessidade de intervenção nos Paióis do Regimento de Paraquedistas, com vista à melhoria das condições de segurança” naquelas instalações.

Até esta tarde, o Exército não tinha partilhado qualquer destes dados com o Observador, apesar das questões colocadas há uma semana (13 de setembro, às 13h33). Nesse e-mail, o Observador deu conta de uma “denúncia anónima” a que tinha tido acesso e que continha “informações sobre o transporte de material de guerra — munições, explosivos e outro — do Regimento de Engenharia 1 para os Paióis Nacionais de Tancos”. Uma operação que teria ocorrido a 7 de julho.

Nesse e-mail, o Observador questionou o Exército sobre alguns dos pontos abordados na denúncia. Pediu, em concreto, a confirmação de alguns dados:

  1. Os PNT estão desativados? E isso significa que não há qualquer material de guerra naquelas instalações?
  2. Foi removida “uma tonelada” de material de guerra para outras instalações? Se sim, para onde? E que material?
  3. Por que razão estava esse material guardado no RE1? Essa decisão respeita as regras internas do Exército para preservação e armazenamento deste tipo de material?
  4. Qual a razão para que o material tivesse sido transferido para outras instalações?
  5. Foi instaurado algum processo de averiguações interno? Com que resultado?

A 29 de junho de 2017, o Exército comunicou publicamente o “desaparecimento de material de guerra” dos Paióis Nacionais de Tancos no dia anterior, de que os militares que estavam de segurança às instalações se deram conta durante uma “ronda móvel”, durante a qual foi detetada uma “violação dos perímetros de segurança dos Paióis Nacionais de Tancos” e o “arrombamento de dois paiolins”.

[Notícia atualizada às 19 horas de quinta-feira, 20 de setembro, com os dados que constavam do “esclarecimento” que o Exército enviou para as redações]