Quilómetro 38. Era aquele o momento. Rosa Mota tinha tudo combinado com o treinador José Pedrosa: se naquela fase do trajeto ainda seguisse acompanhada, olharia na sua direção. Foi o que aconteceu. Rosa colocou os olhos no técnico e ele devolveu-lhe um “é agora ou nunca”. A atleta acabava de receber a ordem para o ataque final. Aproveitando uma ligeira descida, ligou o turbo e conseguiu deixar para trás as suas ‘sombras’ naquela altura — a australiana Lisa Martin, a alemã Katrin Dorre e a soviética Tatiana Polovinskaia. Já ninguém teve pernas para acompanhar a atleta portuense. Faz este domingo 30 anos, Rosa Mota cruzou em primeiro lugar a meta da maratona dos Jogos Olímpicos de Seul e levou Portugal, pela segunda vez, ao lugar mais alto do pódio — depois de Carlos Lopes ter ganho o primeiro ouro olímpico português quatro anos antes.

Nessa mesma prova, em Los Angeles, Rosa Mota tinha arrecadado o bronze, tornando-se a primeira atleta feminina portuguesa a conquistar uma medalha olímpica. Tinha também sido campeã da Europa duas vezes consecutivas (Atenas/82 e Estugarda/86) e campeã do mundo em 87 (Roma) — onde terminou com sete minutos de vantagem sobre a segunda classificada, um recorde até então. Um ano depois, em 1988, o ouro olímpico era a prova que faltava. E Rosa Mota partia para a capital coreana no lote das favoritas.

Rosa Mota liderava o grupo de atletas quando, ao quilómetro 38, descolou para a vitória final (KRAIPIT PHANVUT/AFP/GETTY IMAGES).

De tal forma que, antes da prova, quase se gerou um incidente diplomático. José Pedrosa resolveu poupar Rosa Mota a grandes trabalhos e decidiu que a atleta portuense não ia estar presente no mundial de estrada de 15 quilómetros, que acontecia a apenas dois meses dos Jogos de Seul. A Federação Portuguesa de Atletismo não gostou e abriu-se um diferendo que chegou a dar castigo para a atleta — que foi proibida de se inscrever em provas.

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O tempo passava, era cada vez menos o que faltava até aos Jogos e era real o risco de a maratonista falhar os Olímpicos. Rosa Mota chegou mesmo a traçar um plano B: inscrever-se pela Federação de Macau. O conflito era de tal ordem que foram precisas as intervenções de Mário Soares (então Presidente da República), de Cavaco Silva (primeiro-ministro) e de Roberto Carneiro (ministro da Educação).

A novela foi longa e tortuosa, mas não teve consequências práticas — o segundo ouro português não chegou a ser o primeiro de Macau. Ainda assim, podia ter atrapalhado a preparação para o grande dia. Enquanto o treinador José Pedrosa tentava resolver todo o imbróglio em Lisboa, a atleta treinava nas montanhas de Boulder, nos Estados Unidos. Ou seja, os treinos eram feitos por… telefone.

Mesmo com toda a novela que antecedeu os Jogos, Rosa Mota era o grande alvo a abater pelas atletas inscritas para a maratona. E o treinador assistia a tudo de camarote — quase literalmente. É que, meses antes dos Jogos Olímpicos, uma estação televisiva coreana tinha estado no Porto e fazer uma reportagem com Rosa Mota. No final, quis pagar à atleta — que não o aceitou. Em contrapartida, atirou que o melhor presente era levarem o técnico no carro dos repórteres durante a maratona. E assim foi. Tal como, na altura, contou ao jornal A Bola, José Pedrosa foi acreditado como jornalista e acompanhou a prova no carro da estação coreana, podendo ver a sua atleta de perto em vários momentos da prova.

Não era ali que estava — e sim na berma — quando lhe gritou para o ouro olímpico. O grito que, finalmente, desatou o nó da prova. É que, ao contrário da maratona de 1984, em Los Angeles (a tal que terminou com o bronze de Rosa Mota), em que a vencedora Joan Benoit correu isolada desde o primeiro quarto de hora da prova, em Seul ainda eram 12 as candidatas ao quilómetro 25. O grupo de líderes foi caindo mas, mesmo assim, foi preciso o sprint final de Rosa Mota.

Lisa Martin chegou em segundo lugar, com as pernas trémulas, acabando mesmo por cair no chão — sendo levantada pela atleta portuguesa.

Rosa Mota correu para a zona da bancada onde estava José Pedrosa e envolveu o treinador num abraço demorado. Só foi parada pelos juízes da prova, que não a deixaram dar a sonhada volta olímpica — como a prova decorreu no primeiro dia dos Jogos, os coreanos tinham receio de algum incidente que pudesse inviabilizar o recinto.

Rosa Mota viria a confessar depois que a volta de honra que não deu foi a grande mágoa que a prova lhe deixou. Não a deu, é certo, mas escreveu o seu nome na eternidade. Naquele dia, a “menina da Foz” passou a ser a “Rosinha do nosso contentamento”. Já passaram 30 anos.