No dia 21 de novembro de 2007, chovia copiosamente em Londres. Wembley recebia nessa noite um jogo decisivo para as aspirações da seleção inglesa: a equipa, na altura orientada por Steve McLaren, precisava de apenas um ponto para se apurar para o Campeonato da Europa do ano seguinte. O elenco de jogadores ingleses contava ainda com David Beckham, Frank Lampard e Steven Gerrard — e o adversário a bater era a Croácia. A seleção croata tinha como principal estrela o (ainda não) veterano Darijo Srna e como líder o capitão Niko Kovac e precisava de vencer para competir no Euro da Áustria e da Suíça. A Inglaterra esteve a perder por 2-0, conseguiu empatar mas acabou por sofrer um golpe de misericórdia de Petric. A Croácia foi ao Europeu 2008; a Inglaterra ficou em casa e Steve McLaren foi despedido.
Este poderá ter sido o momento decisivo na carreira de Luka Modric. Naquele já longínquo novembro de 2007, o croata tinha 22 anos e fez o que quis de Wayne Bridge, com passes curtos e precisos que desnortearam ainda mais a já pouca virtuosidade do lateral inglês. Na altura, o The Guardian escrevia que “Luka Modric, que no verão poderá rumar ao Chelsea, assinou vários passes de artesão”. Acertaram na cidade mas falharam no destino. Ainda antes de um Euro 2008 em que a Croácia regressou a casa nos quartos-de-final, aos pés da Turquia — mas onde o jovem médio mostrou tudo o que sabia e o que viria a saber com exibições magistrais contra a Áustria, a Alemanha e a Polónia –, Modric já tinha acordado em rumar ao Tottenham. Esta segunda-feira, quase 11 anos depois daquela noite chuvosa em Wembley, o médio croata de 33 anos bateu Cristiano Ronaldo e Mohamed Salah e acabou com a hegemonia do português e de Lionel Messi ao ser considerado pela FIFA o melhor jogador do mundo.
E porque estas coisas do destino não fazem nada por acaso, 2007 foi também o último ano em que alguém que não Ronaldo ou Messi venceu o prémio de melhor jogador do mundo. Naquele ano, o brasileiro Kaká levou para casa o troféu e tornou-se o último consagrado antes da rivalidade anual entre o português e o argentino que se desenrola desde aí.
Mas vamos recuar. Muito antes de Wembley, antes do Euro 2008 e antes do Tottenham, Modric era um miúdo de cinco anos que cuidava das cabras do avô, de quem herdou o nome. Em 1991, com o agravar da guerra pela independência na Croácia, a família foi obrigada a sair de Zadar, a localidade onde viviam e também o sítio onde Luka começou a jogar à bola. Durante a fuga, o avô do jogador do Real Madrid foi executado por rebeldes sérvios e a casa da família foi incendiada. Tornaram-se refugiados, o pai de Luka alistou-se no exército croata enquanto aeromecânico e o rapaz continuou a jogar à bola, acabando por se inscrever numa academia de futebol (paga principalmente pelo tio, já que os pais não tinham possibilidades para o fazer). No final de 2001, com apenas 16 anos, Modric impressionou treinadores e olheiros depois de participar num torneio em Itália e acabou por assinar pelo Dínamo Zagreb. Era a oportunidade para sair das dificuldades, do dinheiro contado, dos trabalhos temporários que o faziam faltar às aulas e para garantir aos pais a vida confortável que um dia tinham tido.
Fez uma época nas camadas jovens do Dínamo e foi emprestado ao Zrinjski Mostar, da principal divisão da Bósnia-Herzegovina, onde estabeleceu por fim um perfil de jogador box to box, que é a ligação perfeita entre a defesa e o ataque. Foi considerado o melhor jogador do campeonato com apenas 18 anos e disse mais tarde que “quem consegue jogar na liga bósnia consegue jogar em qualquer lado”. No ano seguinte, regressou à Croácia e foi emprestado ao Inter Zaprešić, onde ficou apenas durante uma temporada, durante a qual ajudou a equipa a chegar ao segundo lugar do campeonato e a apurar-se para as rondas preliminares da Taça UEFA. As boas exibições valeram-lhe, como não podia deixar de ser, o bilhete de volta para o Dínamo Zagreb.
Assinou um contrato de dez anos com o principal clube croata e comprou de imediato uma casa nova aos pais. Integrou-se rapidamente no onze inicial de uma equipa que tinha Eduardo, o avançado que passou pelo Arsenal e joga agora no Légia Varsóvia, e Mario Mandzukic, atual companheiro de equipa de Ronaldo na Juventus. Marcou 31 golos ao longo de quatro anos em Zagreb e ajudou a conquistar três campeonatos e duas Taças da Croácia — no último jogo em casa antes de partir para Londres, foi ovacionado pelos adeptos.
Até que chegamos à ida para o Tottenham. Modric incluiu o pacote de três jogadores que rumaram a Inglaterra altamente inflacionados pelo Euro 2008: o croata foi para o Tottenham em conjunto com o russo Pavlyuchenko, enquanto o também russo Arshavin foi contratado pelo Arsenal. Modric sofreu uma lesão no joelho pouco depois de chegar a Londres e a afirmação não foi imediata, até porque a sua baixa estatura (tem 1,72 metros e pesa 66 quilos) deixavam muito a desejar aos adeptos habituados a centro-campistas possantes e exímios a destruir — em detrimento da construção. Juande Ramos, o treinador do Tottenham na altura, começou por colocar o croata no apoio direto ao avançado, na posição 10, mas rapidamente aproveitou a sua versatilidade para o testar em terrenos mais próximos do corredor esquerdo, onde a performance de Modric, ainda que sempre competente, não era acima da média.
A chegada do inglês Harry Redknapp, na temporada seguinte, restituiu a Luka Modric o lugar do campo onde se fez jogador no Dínamo Zagreb, algo entre o 6 e o 8 que não é nem uma coisa nem outra mas é ambos e muito mais. O médio esteve quatro temporadas em White Hart Lane e conseguiu ajudar o Tottenham a ficar por duas vezes nos quatro primeiros lugares da Premier League, à frente do Manchester City e do Arsenal. A sensatez que o rege fora e dentro de campo manteve-o à margem do assédio continuado do Chelsea, que queria levá-lo para Stamford Bridge desde que pisou o chão do Aeroporto de Gatwick, e fê-lo esperar por voos maiores. A chamada de Madrid chegou durante o verão de 2012 — altura em que era José Mourinho era o treinador dos merengues.
Um contrato de cinco anos, 30 milhões e um troféu 36 horas depois de aterrar na capital espanhola: Modric estreou-se frente ao Barcelona, ao entrar no minuto 83 da Supertaça espanhola para substituir Mesut Özil, e o Real Madrid venceu o jogo. A presença de Xabi Alonso, de Khedira e do próprio Özil no mesmo plantel complicou a afirmação de Modric e obrigou o médio croata a empenhar-se, a trabalhar mais, a ficar no campo de treinos quando todos os outros recolhiam ao balneário. Modric sabia que não podia basear-se na força, na altura, nos golos ou no impacto imediato — não era o tipo de jogador que decidia finais e torneios. Era o jogador que passava a bola ao colega de equipa que passava à bola a quem decidia finais e torneios. E Modric tornou-se o melhor dos nossos dias a fazer isso.
Joga com os dois pés e é absolutamente exímio a virar o rumo do jogo com um passe longo que parece desenhado com dois botões de um comando de PlayStation. Tornou-se o mestre da pré-assistência e é, nos dias de hoje, um dos últimos maestros, playmakers ou regista — a posição tão bem desempenhada por Rui Costa, Pirlo ou Xavi tende a desaparecer e tem em Modric um dos derradeiros discípulos. Tem uma das visões táticas mais apuradas do futebol internacional e demonstra uma noção do planeamento estratégico de uma equipa que um dia o vai tornar um grande treinador. É tudo menos um goleador. É tudo menos Messi e Cristiano Ronaldo. E talvez seja por isso que este croata pequenino com ar de quem cai assim que é pressionado venceu esta segunda-feira o The Best FIFA 2018.
Em 2017/18, ao serviço do Real Madrid, conquistou a Liga dos Campeões — a terceira consecutiva e a quarta da carreira –, a Supertaça Europeia e o Mundial de Clubes. Além disso, foi o líder da segunda geração de ouro da Croácia, que levou a seleção da camisola aos quadrados à final do Campeonato do Mundo e na Rússia mostrou ao mundo inteiro aquilo que Harry Redknapp já sabia quando o treinou no Tottenham: “É um jogador do caraças e pode jogar em qualquer clube de topo”. Foi considerado o melhor jogador do Mundial e já ganhou o prémio da UEFA para o melhor jogador do ano. Superiorizou-se a Neymar e Mbappé como sucessor de Cristiano Ronaldo e Messi e pode ser coroado o melhor jogador do mundo. Não marca muitos golos, não está na lista dos 25 jogadores mais bem pagos do planeta e não é pessoalmente patrocinado por nenhuma marca. Modric é a prova de que o que importa ainda é o futebol.