Se se comprovar que João Ribas, diretor demissionário do Museu de Serralves, no Porto, foi coagido pela administração a retirar fotografias da exposição de Robert Mapplethorpe e a criar uma sala de acesso reservado a imagens de teor sexual sadomasoquista, então o Governo deve afastar o atual conselho de administração da Fundação de Serralves, que tutela o museu. A opinião é Pedro Lapa, crítico e historiador de arte, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Em entrevista ao Observador, o também ex-diretor artístico do Museu Coleção Berardo (2011-17) e do Museu do Chiado (1998-2009) analisa a polémica que estalou na sexta-feira, um dia depois de inaugurada a exposição, e entende que ela se deve ao que classifica como falta de “currículo cultural” dos administradores. Garante que a obra de Mapplethorpe não é pornográfica. Mas sublinha: o obsceno e o pornográfico têm lugar nos museus.
Com base nos factos conhecidos até ao momento, considera que houve censura, ou autocensura, na exposição de Mapplethorpe em Serralves?
Obviamente, houve censura. Estava previsto um determinado número de obras que não foi exibido, o curador terá sido intimado a retirar algumas obras, algumas obras são apresentadas de forma marginal relativamente às outras, há uma interferência que contradiz tudo aquilo que o curador da exposição anunciou previamente. Portanto, é óbvio que houve coação, algo absolutamente inadmissível em qualquer prática museológica no sentido contemporâneo ocidental.
Se, por hipótese, as fotografias de Mapplethorpe tivessem sido escolhidas à partida pelo curador já com o objetivo de não mostrar certos aspetos da obra, isso não seria censura, seria critério curatorial?
Qualquer curadoria é sempre um ato de seleção, por isso é que a curadoria é assinada, tem uma dimensão autoral. Podemos perceber numa exposição que a seleção foi condicionada por fatores demasiado extrínsecos ao discurso da exposição, por fatores como o moralismo, por exemplo. Aí, existe uma autocensura. No entanto, uma seleção do curador não implica uma censura, implica uma escolha fundada em critérios que ele apresenta de forma verbal ou no próprio discurso expositivo.
Neste caso, considera que houve censura porque terá sido o conselho de administração de Serralves a tomar decisões?
Se atendermos às declarações do curador, prévias à inauguração da exposição, e à situação que agora se verifica, existe um abismo. Como o curador não parece ter mudado radicalmente de opinião no processo de montagem da exposição, tanto não mudou que até apresentou a demissão, obviamente houve interferência de quem não pode nem tem preparação para interferir. A administração de Serralves pode agora encontrar certas nuances nos factos, mas transparece um ato óbvio de censura e uma coação para que essa censura ocorresse. O curador pode ter-se deixado coagir, pode ter hesitado e assumido essa censura parcialmente, e depois mudou de opinião. Somos todos humanos, essas oscilações existem. O grave, aqui, é a coação.
O artista e curador Paulo Mendes, citado pelo jornal i, garante que durante os três últimos dias de montagem da exposição “foram feitas três visitas por elementos da administração às salas de exposição” e que durante essas visitas “apontaram várias obras que tinham de mudar de localização”. É comum?
Isso não pode nunca acontecer por imposição de um conselho de administração. O artista ou o curador, durante a montagem de uma exposição, podem subitamente fazer alterações, por concluírem que uma peça se relaciona melhor com outro núcleo, por exemplo. Isso está dentro do discurso expositivo. Quando essa alteração é realizada por terceiros estamos perante um ato de pura ingerência, absolutamente intolerável e provinciano. Se se verificou isso em Serralves, é um escândalo.
Conhece outros exemplos de interferência de administrações na direção artística de museus portugueses?
Não tenho memória disso. Como curador, nunca me confrontei com um conselho de administração que fosse visitar uma exposição que eu estivesse a montar, para fazer alterações. Nunca. Lembro-me de que no Museu Berardo, quando fizemos a exposição retrospetiva de Pedro Cabrita Reis, havia um conjunto de fotografias declaradamente pornográficas e ele delineou um espaço para a apresentação dessas imagens. Havia uma indicação ao público de que poderia ser surpreendido.
Defende um aviso à entrada sobre o conteúdo explícito, mas não o acesso condicionado a certas salas?
O acesso condicionado ou uma sala mais fechada pode ser o desejo de um artista, ao montar uma exposição. Com certeza, não há dogmas. No entanto, se é criada não pelo artista ou pelo curador, mas por um agente exterior que tem apenas uma reação moralista e que despreza o discurso estético implícito nas obras, é uma declarada ingerência. Hoje é por causa do sexo, amanhã é por causa da raça. É intolerável no nosso país.
João Ribas fez bem em demitir-se?
Teria de conhecer pormenores, mas, para já, toda a situação aponta para uma atitude de coragem da parte de João Ribas, que me merece a maior solidariedade. Defendeu o exercício de liberdade que tem de presidir a qualquer trabalho cultural. Seriedade é o que pede o público que visita uma instituição cultural. A liberdade é o princípio mais elementar dessa seriedade. Pode num museu haver uma indicação clara, à entrada, dirigida a visitantes mais sensíveis a situações violentas, sexuais ou outras. Mas isso não pode alterar o discurso expositivo. Aquilo a que aqui assistimos não é apenas um caso de censura moral, isto tem que ver com uma estrutura de funcionamento.
Estrutura de funcionamento de Serralves?
De Serralves e dos conselhos de administração na maior parte destas instituições. Alguns serão mais avisados e não se dão a situações destas, mas há um problema na relação entre administrações e direções artísticas. Na maior parte das instituições culturais em Portugal temos assistido a uma sobreposição crescente das administrações às decisões de curadores e diretores artísticos.
Quais são os limites de uns e de outros?
O problema é a lógica empresarial no funcionamento dos museus, das fundações, das instituições culturais. Essa lógica empresarial tem códigos e mecanismos de funcionamento específicos e no topo está o conselho de administração, que decide tudo. O que o público espera é ver boas exposições e boas obras. Para isso, quem tem a última palavra é quem percebe do âmbito disciplinar que enforma a instituição, ou seja, o diretor artístico. As administrações fazem a gestão financeira e de recursos, dentro de um programa traçado por um diretor artístico, que por sua vez se articula com os meios definidos pelos próprios administradores. Os museus não são máquinas de público. Administrações compostas por representantes indicados pelo Ministério da Cultura deveriam antecipar situações absurdas como a que se vive em Serralves e contribuir para um contexto normativo de liberdade expositiva. Isto ocorre também porquanto os elementos das administrações não têm qualquer preparação para as funções.
Polémica em Serralves: chovem críticas à administração do museu
É o caso de Serralves?
De Serralves e de quase todas as instituições culturais, com exceção óbvia da Culturgest, que tinha Miguel Lobo Antunes e agora tem Mark Deputter como administradores. São pessoas do meio. O que temos encontrado são administradores que vêm do meio financeiro, do meio empresarial, e que chegam aos museus com modelos absolutamente desadequados. Têm subvertido o perfil das instituições. O papel dos administradores do Estado nestas instituições deveria ser o de recentrar, o que não tem acontecido porque o governo nomeia pessoas, de um modo geral, muito distantes dos problemas concretos. Qual é o currículo destes administradores em termos culturais? É zero. Não é só em Serralves.
Os dois administradores nomeados pelo Estado para a Fundação de Serralves são José Pacheco Pereira, ligado à história e às artes, e Isabel Pires de Lima, ex-ministra da Cultura…
Mas isso é muito vago. Cultura é um campo muito amplo. Ninguém põe em questão o perfil cultural da professora Isabel Pires de Lima, mas é uma especialista em literatura, sobretudo do século XIX. Não é uma especialista nestes assuntos. Não gostaria de particularizar demasiado. Este caso tem um enquadramento mais geral. Serralves, não é só de agora, tem assumido uma posição de vanguarda nesta transformação do museu-fundação numa lógica de empresa. Desde cedo, Serralves começou com o modelo de exposições “blockbuster”, à procura do sucesso de públicos, ou seja, de números. E esta situação veio tomar conta dos princípios reguladores de muitas instituições. O sucesso de público tem de se medir por outros critérios, nomeadamente a fidelização, a regularidade, aquilo que as pessoas aprendem, o que o museu contribui para a vida quotidiana. As instituições culturais não existem para bater recordes.
Os estatutos da Fundação de Serralves preveem que o Estado possa requerer a destituição do conselho de administração. Deve fazê-lo?
Se houve censura, deve. Se passarmos ao patamar da destituição, isso tem de ter um enquadramento jurídico rigoroso, bem diferente do juízo genérico que agora emiti.
O ministro da Cultura já deveria ter falado?
Há muito tempo. Deveria estar atento, deveria ter sido informado desde o primeiro momento pelos representantes do Estado na fundação – e acredito que tenha sido – e já deveria ter levado esses representantes a não se fecharem numa posição verdadeiramente insustentável perante estes factos, independentemente de haver nuances de que ainda não tenhamos tido conhecimento.
A obra de Robert Mapplethorpe pode ser considerada pornográfica?
Não vejo que exista ali pornografia. O tratamento que ele dá à sexualidade e à exposição da genitália é por vezes tão lírico e metafórico que me atrevo até a dizer que pode roçar o kitsch. Está longe da pura visibilidade, minuciosa e mecânica. Não existe essa frieza nele.
O obsceno e o pornográfico têm lugar num museu?
Têm. O obsceno, o abjeto, o informe, o pornográfico. Tudo tem lugar na arte. A arte lida com tudo, não exclui. Claro, um artista poderá estar mais ou menos interessado nisso. Não existem matérias eleitas à partida. Isso é claro desde 1865, quando Manet expôs o “Olympia”.
Mapplethorpe ainda é escandaloso? A resposta está em Serralves
Quais são os limites do que pode ser mostrado num museu?
Os limites de um discurso são formados no próprio discurso e no conflito que ele gera com outros discursos. Só existem limites nesses conflitos.
Nas redes sociais, por estes dias, falava-se em sexualização das crianças ao serem expostas às imagens de Mapplethorpe. Que sentido faz?
Esse é um papel importante dos serviços educativos dos museus. Uma exposição não exibe apenas modelos de virtude, também exibe situações muito negativas e o mundo é composto por elas. Desde há dois séculos, desde o princípio da Modernidade, foi posta em causa a ideia de arte que exalta apenas as virtudes. Por isso é que falei em Manet. Por vezes, a arte moderna caminha por zonas obscuras do pensamento e do sentir humano. Aquilo de que todo o visitante precisa, sejam crianças ou seniores, é de instrumentos que o ajudem a refletir, a pensar, a interrogar. Só assim pode despertar uma sensibilidade para o facto de certo artista ir buscar um aspeto que consensualmente está arrumado de determinada forma para o mostrar de súbito com um perfil jamais visto ou imaginado. É isso que a arte faz. Não nos devolve o que já conhecemos, não devolve o que já sentimos, nem nos educa no sentido virtuoso. A arte mostra aquilo que sentimos ou pensamos, de maneira diferente.