Quatro meses depois da última sessão de julgamento e no dia em que se pensava que ia ser conhecida a sentença do caso que provocou um incidente diplomático entre Portugal e Angola, o juiz decidiu comunicar alterações à acusação. Os arguidos no processo entraram esta segunda-feira no Campus de Justiça, com advogados e familiares, e acabaram por sair, pouco depois, com o sentimento de que continuam com a “vida suspensa”, como disse um deles, o magistrado Orlando Figueira, acusado de ter sido corrompido pelo ex-vice-Presidente angolano, Manuel Vicente.

O Ministério Público acusou Orlando Figueira de corrupção passiva, branqueamento, violação do segredo de justiça e falsificação de documento, sob o argumento que recebeu um total de 763.429,88 euros para arquivar os processos-crime em que investigava Manuel Vicente. O advogado Paulo Blanco e o empresário Armindo Pires foram acusados de terem sido os seus corruptores, por isso respondem por corrupção ativa, branqueamento, e falsificação de documento. Blanco também foi acusado de violação do segredo de justiça.

A sessão estava marcada para as 14h00, mas só começou cerca de 20 minutos depois. “Aviso já que vou fazer umas comunicações”, disse o juiz presidente Alfredo Costa mal se sentou. Fez-se silêncio e o magistrado elencou uma série de “alterações não substanciais aos factos que constam na acusação”. Significa isto que o juiz corrigiu alguns lapsos que considerou existirem no despacho proferido pelo Ministério Público.

No final, perguntou se alguém tinha algo a dizer. Os advogados de Paulo Blanco e de Armindo Pires, Fernando Seara e Rui Patrício respetivamente, requereram um prazo para se pronunciar e o juiz deu-lhes dez dias. Só depois será marcada nova data para a sentença.

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Que alterações foram estas?

Além de alterações em datas que se revelaram incorretas ao longo do julgamento, o coletivo de juízes fez alguns ajustes na qualificação dos crimes que são imputados aos arguidos: o de corrupção passiva e o de branqueamento.

No caso do crime de corrupção, o coletivo de juízes decidiu acrescentar à imputação o artigo da lei que define que o funcionário pode ser um magistrado do Ministério Público. Já quanto ao crime de branqueamento, imputado aos três arguidos, decidiram os juízes acrescentar o artigo da lei que especifica que incorre no crime de branqueamento quem ocultar um valor recebido ilicitamente independentemente do local onde o fez. “Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos”, lê-se no código penal. A alteração poderá prender-se com o facto de Orlando Figueira ter recebido 210 mil dólares numa conta em Andorra.

Refere a acusação que este valor é o pagamento de “luvas” para arquivar os processos que corriam em Portugal contra Manuel Vicente. O arguido defende-se e diz que esta foi a forma do banqueiro luso angolano Carlos Silva lhe pagar pelo trabalho de consultor jurídico, que o levou a abandonar a magistratura.

O coletivo de juízes quis também alterar algumas datas e palavras que vinham incorretas no despacho de acusação, como a data a que Orlando Figueira prestou serviço no Ministério Público, por exemplo. Mais, os juízes consideraram também acrescentar aos factos descritos pela acusação uma carta do Banco Privado Atlântico Europa a 20 de março de 2018 — já o julgamento tinha começado — a pedir a Orlando Figueira que liquidasse o crédito de 130 mil euros que ali contraiu. O MP considera este crédito fictício e diz que este valor foi parte das “luvas” recebidas por intermédio de Manuel Vicente.

Uma vida suspensa

No final da sessão, os arguidos manifestaram-se desiludidos e surpreendidos com a decisão do juiz, que podia ter sido comunicada por escrito há mais tempo. Aliás, ao longo do julgamento este coletivo de juízes optou sempre por dar resposta aos vários requerimentos dos advogados por escrito, para não perder tempo. Desta vez esperou pelo dia da sentença para comunicar as alterações que queria considerar.

“A produção prova terminou no dia 23 de junho, decorreram quatro meses, a minha vida está suspensa desde fevereiro de 2016 e esperava que este fosse o fim do pesadelo. Infelizmente isso não aconteceu”, disse Orlando Figueira no final da sessão.

O processo de Manuel Vicente sem Manuel Vicente

O caso começou a ser julgado há já nove meses, mas Manuel Vicente nunca chegou a comparecer em qualquer sessão no Campus de Justiça, em Lisboa. A sua defesa alegou sempre que nunca tinha sido notificado da constituição de arguido e da acusação do processo e pediu, por isso, ao Tribunal da Relação que entregasse às autoridades angolanas a investigação relativa a ele. Argumento: Manuel Vicente goza de imunidade enquanto político. Apesar de o pedido ter sido inicialmente recusado, o tribunal superior acabou por dar-lhe razão.

A sentença do caso Manuel Vicente descodificada

As testemunhas que o Ministério Público quer ver investigadas

Só o empresário Armindo Pires, que tem uma procuração para representar Manuel Vicente nos seus negócios em Portugal, pediu a abertura de instrução. Mas o juiz de instrução considerou existirem provas suficientes para o levar a julgamento. Figueira e Blanco não pediram e viriam depois a apresentar uma exposição ao Ministério Público onde acrescentavam algumas informações aos seus depoimentos iniciais. E foi essa a tese que defenderam ao longo de todo o julgamento.

O advogado Paulo Blanco diz que quem, afinal, pagou ao magistrado Orlando Figueira foi o banqueiro luso-angolano Carlos Silva. E pagou-lhe para contratá-lo para trabalhar em Angola, mas o emprego nunca chegou a efetivar-se. Figueira acabaria por prestar serviço em bancos ligados ao dono do Banco Privado Atlântico Europa, nomeadamente no Millennium BCP e no ActivoBank, sem nunca ter saído de Portugal.

Orlando Figueira corroborou a versão de Blanco, mas acrescentou uma outra personagem à história: o advogado Proença de Carvalho. O magistrado afirma que foi ele o intermediário de Carlos Silva na celebração do contrato de trabalho. No entanto, tanto Carlos Silva como Proença de Carvalho negaram em julgamento esta ligação contratual. Carlos Silva alegou que nem sequer conhecia Orlando Figueira. Proença de Carvalho diz que o ajudou a desvincular-se de um contrato de trabalho com a empresa Primagest, mas que esta nada tem a ver com Carlos Silva. Mas sim com um empresário que entretanto morreu.

Estes argumentos não convenceram, no entanto, procuradora do Ministério Público que acompanhou o julgamento. Leonor Machado, em alegações finais, manifestou mesmo o interesse em mandar extrair certidões e investigar se estas duas testemunhas estariam a dizer a verdade. Mas, até ao momento, ainda não o fez.

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