É com as paredes cobertas de esboços e protótipos de roupa em papel sobre as bancadas, ao lado de esquemas de fios entrelaçados, que Constança recebe quem se atreve a entrar no seu pequeno atelier, no Príncipe Real, em Lisboa. A porta está aberta, não é preciso bater, tão pouco fazer cerimónia. É nova no bairro, mudou-se de Xabregas para aqui, mesmo antes de ter vindo de armas e bagagens de Paris para construir a marca que dá pelo seu próprio nome. Daí a balbúrdia. No próximo sábado, estreia-se no calendário de desfiles da ModaLisboa. “Eram para ser 17 coordenados, mas acho que ainda vou ter mais”, admite. Um “cerca de 20” arruma a questão.

Além de ser uma presença nova no panorama da moda nacional, o caminho de Constança até chegar aqui está longe de ser óbvio. O desfile, marcado para sábado, perto das cinco da tarde, insere-se no LAB, plataforma da ModaLisboa reservada a designers em pleno processo de consolidação dos seus nomes e marcas. Com 24 anos, a criadora nunca apresentou uma coleção num desfile. Foi convidada a fazê-lo há precisamente um ano, na 49ª edição do evento lisboeta, mas em moldes bem mais modestos. No Wonder Room, espaço criado para dar visibilidade a uma seleção de marcas e designers maioritariamente portugueses (e onde, inclusive, se pode fazer compras) expôs algumas peças e apresentou meia dúzia de coordenados num formato de apresentação.

Constança Entrudo no seu atelier, no Príncipe Real, em Lisboa © André Carrilho/Observador

Agora, conquistou o passaporte para a passerelle. “Defino muito bem os meus objetivos, às vezes, até sou um bocado quadrada nisso, mas isto, simplesmente, foi acontecendo. Tenho 24 anos e achava que este momento ia chegar para aí aos 26”, afirma ao Observador. O currículo de Constança Entrudo é invejável. Aos 17 anos, mudou-se para Londres, depois de concluído o ensino secundário na área de economia (agora, bem que pode dar jeito para montar o próprio negócio). De olho nas artes, não entrou à primeira na Central Saint Martins. À segunda, ingressou no curso de design têxtil. “Não me considero uma designer de moda. E na altura, os meus interesses estavam na pintura, na escultura, na relação do vestuário com a experimentação dos materiais e com a arte”, admite.

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Pode dizer-se que concluiu com o curso com distinção. Bateu à porta dos portugueses Marques’Almeida, onde estagiou durante seis meses. Seguiu-se um ano e meio na marca Peter Pilotto, a ser aquilo a que os ingleses chamam “print designer“. Foi aí que Constança deu largas à sua especialidade — a moda que parte dos padrões elaborados e só depois encontra a forma e o corte que lhes convém. Há um ano, surge o convite para participar no Wonder Room da ModaLisboa. A criadora, que nunca tinha ido ao evento, aceitou e surpreendeu-se com o resultado. “Abriu-me muitas portas, não esperava. Foi aí que comecei a minha própria marca”, conta. Com as primeiras encomendas, a tentação de assentar e instalar um atelier em Lisboa. Mas era cedo demais e, depois de seis anos a viver e a trabalhar capital britânica, rumou a Paris, onde entrou diretamente para a equipa de Olivier Rousteing, na Balmain.

A coleção primavera-verão 2018, apresentada na 49ª edição da ModaLisboa © Constança Entrudo

Em fevereiro, chegou o convite para desfilar na 50ª edição da ModaLisboa. Mais uma vez, era cedo. Paris, em particular a maison com mais de 70 anos de história, estava a ser uma nova escola, de cortes, de acabamentos, de como a moda pode ser pronto-a-vestir e, ainda assim, especial. No último verão, Constança aproveitou as férias para montar o seu próprio atelier em Lisboa. Há duas semanas, deixou a Balmain e concentrou todos os esforços na sua primeira grande coleção em nome próprio. “O meu lado naïf está mais polido”, afirma, enquanto olha para os esboços da nova coleção, dispostos na parede do atelier. “Agora, por exemplo, nem todos os tecidos estão a ser feitos por nós. Mas estou a pensar mais na forma, a ser mais designer de moda”, acrescenta.

Sem pressas, a moda também pode ser colaborativa

É neste terreno fértil, o da interseção do design com a arte, que encontramos Constança Entrudo. Esta é só a primeira de muitas conexões, conceito central na coleção da próxima primavera que, no sábado, é apresentada no interior do Pavilhão Carlos Lopes. Às técnicas que já fazem parte da linguagem da designer e que reconhece como terapêuticas — é o caso das linhas que, unidas, formam uma espécie de tecido por tecer — Constança convidou outras designes e artesãs a colaborar nas suas peças (conexões, lá está). Os botões são feitos por uma designer de joias francesa, que trabalha com materiais menos nobres, repescados em feiras e mercados de velharias. Pelos desenhos da coleção, já tínhamos percebido que os botões iam ter um papel importante. A criadora revela, entretanto, que as peças se transformam, assumem diferentes formas e podem ser usadas de várias maneiras.

A seis dias do desfile, o work in progress dentro do atelier © André Carrilho/Observador

Da Dinamarca, chega o trabalho de uma especialista em malhas. São peças com impacto visual, às quais se juntam os chapéus de uma designer britânica. As peças da coleção estão espalhadas pela Europa, mas não admira — Constança é uma pesquisadora por natureza, de materiais, de imagens, de ideias e de palavras. Para isso, nunca há pressa. Mais do que viagens a destinos paradisíacos, é nas bibliotecas e arquivos que passa semanas, meses até. “Se formos bons designers está tudo em nós, não é preciso ter mundo para fazer uma boa coleção”, declara. As viagens inspiradoras não estão fora dos planos da designer. De visita a Moçambique, por exemplo, mais do que os padrões e as cores vibrante, deixou-se fascinar com o styling local. Um pano e as suas mil possibilidades ficaram-lhe na memória. A última descoberta, na origem desta coleção, foi o livro Difficult Loves, de Italo Calvino. São histórias de amores em cadeia, tal como a roupa, que além de conectar uma mão cheia de designers (há ainda uma peça que foi tecida por uma artesã durante uma semana), ainda as liga ao portador final.

Nono atelier, Constança conta com ajuda de uma designer e de cinco estagiários, estudantes de moda da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa a quem lançou um desafio criativo. Deu dez euros a cada um e pediu que fossem à Feira da Ladra em busca de objetos que pudessem dar origem a peças de vestuário e acessórios. O retorno foi surpreendente. Apareceram discos de vinil, cuecas e até colheres. Roupa, arte contemporânea, velharias e literatura — a visão que Constança tem da moda é total, holística. “A moda não é só um bem de consumo, é uma também uma ciência social. O que vestimos afeta imenso o que somos. Acredito que, quando valorizamos o design, isso muda o dia das pessoas”, reflete.

As cores, as técnicas e os materiais — aos 24 anos, Constança conseguiu criar uma linguagem própria © André Carrilho/Observador

Entre o atelier do Príncipe Real e a fábrica onde as peças são produzidas, em Almada, Constança dá continuidade ao trabalho de explorar novas técnicas e materiais. Diz que é mais fácil fazê-lo em Portugal, onde os meios de produção estão abertos à inovação e ao teste. Em modo freelance, Constança continua disponível para colaborar com outros designers. Diz-se muito nova para se fechar na sua própria marca. Tanto o investimento financeiro como a roupa têm tempo para crescer, slowly, devagar e talvez sem fazer tantos planos. Está visto que a moda antecipa e adia quando menos se espera.