Por muito tempo que passe e por muitos ciclos do futebol internacional que comecem e terminem, um Ajax-Benfica será sempre um clássico europeu. Não é necessário que nenhuma das equipas lute de forma competitiva pela Liga dos Campeões, não é necessário que holandeses ou portugueses tenham chegado longe na principal competição europeia em anos recentes e nem sequer é preciso que Ajax ou Benfica tenham um dos melhores jogadores da atualidade. As equipas de Amesterdão e a de Lisboa ganharam a reputação de “grandes” do futebol europeu nas décadas de 60 e 70: quando estes três requisitos estavam reunidos.

Esta terça-feira, na Johan Cruyff Arena, Ajax e Benfica reeditam um dos confrontos históricos do final da década de 60 e início da década de 70. Na altura, o Benfica começava a despedir-se dos anos de glória europeia e vivia as primeiras desilusões pós-maldição de Bélla Guttmann; o Ajax, por outro lado, promovia à equipa principal um rapaz magrinho com pouco mais de 20 anos que agora dá nome ao estádio do clube. O Benfica de Eusébio, Simões, Coluna e José Augusto começava a dar lugar ao Ajax de Cruyff, Rep, Keizer e Swart.

Depois da conquista da Taça dos Clubes Campeões Europeus em 1961 e 1962 – e com um Mundial de 66 pelo meio, que ainda mais atenção trouxe para Eusébio e para o futebol português -, o Benfica perdeu três finais europeias: contra AC Milan, Inter Milão e Manchester United. Na época 68/69, Eusébio e Coluna estavam em final de carreira, a equipa de Otto Glória já não apresentava o fulgor de outros tempos mas os encarnados continuavam a ser os vice-campeões europeus. O Ajax tinha pouca experiência europeia, tinha feito a estreia europeia apenas dez anos antes mas começava a implementar no futebol europeu uma maneira de jogar que rapidamente se tornou universal.

Keizer, capitão do Ajax, e Eusébio, durante a terceira mão da eliminatória da Taça dos Campeões Europeus de 1968/69

O futebol total. Na altura, os defesas defendiam, os médios organizavam o jogo e os avançados atacavam. Aquela equipa do Ajax, orientada por Rinus Michels, foi a primeira em que os laterais percorriam todo o corredor para cruzar, em que os avançados recuavam para ir buscar jogo atrás e onde um médio-centro podia facilmente jogar a defesa central ou a número 10 se a tática assim o exigisse – todos atacavam e todos defendiam. O Ajax inaugurava aqui o estilo de jogo que deu à seleção holandesa o apelido de “Laranja Mecânica” e que contribuiu em larga escala para a chegada às finais dos Campeonatos do Mundo de 1974 e 1978.

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Em fevereiro de 1969, Ajax e Benfica encontravam-se nos quartos de final da Taça dos Clubes Campeões Europeus: os holandeses tinham ultrapassado Nuremberga e Fenerbahçe; os portugueses eliminaram o Valur da Islândia e ficaram diretamente apurados para os quartos. A primeira mão, assim como esta terça-feira, foi em Amesterdão. A experiência europeia dos encarnados habituou jogadores e equipa técnica a jogar em relvados cobertos de gelo ou neve, com temperaturas negativas e ambientes hostis. O palmo de gelo que cobria o campo do Olímpico de Amesterdão não foi então impedimento para uma exibição quase brilhante dos rapazes de Otto Glória, que regressaram a Lisboa com uma reconfortante vitória por 1-3 no bolso. Jacinto, Torres e José Augusto enterraram um Ajax que só conseguiu responder com um golo solitário do sueco Danielsson. À chegada à Portela, a atmosfera era de confiança na passagem à fase seguinte e no muito provável apuramento para mais uma final europeia – com a esperança de que fosse desta que o enguiço levantado por Guttmann fosse quebrado. Uma semana depois da primeira mão, era altura de receber os holandeses na Luz.

O velhinho Estádio da Luz carregou naquela noite de 19 de fevereiro de 1969 cerca de 60 mil pessoas. Logo aos nove minutos, Danielsson voltou a bater José Henrique e relançou a eliminatória; aos 12 e aos 32, Johan Cruyff iniciava uma carreira memorável no futebol europeu e gelava a Luz. A perder por 3-0 em casa à meia-hora, os encarnados estavam fora da Taça dos Clubes Campeões Europeus. José Augusto e Adolfo entraram para os lugares de Simões e Jacinto, Otto Glória tentou empurrar a equipa para o ataque e aos 70 minutos chegou o balão de oxigénio. Torres bateu Bals e atirou a eliminatória para a negra – naquela altura, em caso de empate na soma dos resultados das duas mãos, não existia prolongamento e era agendado um terceiro e decisivo jogo em terreno neutro.

O palco escolhido foi o Olímpico Yves-du-Manoir, em Paris. José Augusto voltou a começar no banco e Otto Glória voltou a preferir dar a titularidade ao mais jovem e explosivo Simões, na altura com 26 anos. Do outro lado não havia surpresas: Cruyff, Keizer, Swart e Danielsson eram titulares. E os carrascos do Benfica voltaram a ser os mesmos. Em pouco mais de dez minutos, um golo de Cruyff e mais dois de Danielsson acabaram com as esperanças encarnadas. Depois de ter chegado à final na temporada anterior, o Benfica colosso europeu começava a despedir-se da gloriosa década de 60 e a dar lugar ao Ajax colosso europeu que em cinco anos chegou a quatro finais e venceu três Taças dos Clubes Campeões Europeus. E Cruyff, o maestro de uma equipa de qualidade acima da média, calçava as botas de Eusébio, Pelé, Puskás e Di Stéfano e erguia a cabeça enquanto melhor jogador do mundo.

O Ajax passou às meias-finais, eliminou o Spartak Trnava da Eslováquia e apurou-se para a final, onde seria goleado pelo AC Milan de Trapattoni, Prati e Sormani. No ano seguinte, o Benfica caiu na segunda eliminatória depois de perder na decisão por moeda ao ar com o Celtic (o resultado das duas mãos tinha ficado em 3-3) e o Ajax nem sequer participou, tendo perdido o único lugar holandês para o Feyenoord. A tão anunciada e procurada glória europeia chegou em 70/71, quando depois de ultrapassar o Tirana da Albânia, Basileia, Celtic e Atl. Madrid, Cruyff e companhia bateram o Panathinaikos na final de Wembley e sagraram-se finalmente campeões da Europa.

Até que chegamos a 1971/72. Depois de no ano anterior ter perdido a vaga europeia para o Sporting, o Benfica estava de volta à Europa. O Ajax, com o estatuto de campeão europeu, queria revalidar o título. Encontraram-se nas meias-finais, depois de os portugueses terem vencido o também holandês Feyenoord e de o Ajax ter eliminado o sempre favorito Arsenal. Em comparação com o último confronto, três anos antes, tinham mudado treinadores – Jimmy Hagan estava no Benfica e Stefan Kovacs no Ajax -, já não havia Coluna nem José Augusto mas havia Jaime Graça, Nené e o sempre virtuoso Vítor Baptista, e Cruyff já não era o menino maravilha mas sim o homem coroado melhor do mundo no ano anterior. Como parece ser tradição, a primeira mão foi em Amesterdão. Swart marcou um único golo à passagem do minuto 64 e levou grande parte das decisões para Lisboa – mas nada mudou. A eliminatória não teve mais golos, Bélla Guttmann voltou a ter razão e o Ajax seguiu caminho para a final onde haveria de vencer o Inter Milão com um bis de Johan Cruyff.

O Ajax ainda venceria a Taça dos Clubes Campeões Europeus mais uma vez no ano seguinte, antes de dar lugar a três títulos o Bayern Munique, dois do Liverpool e outros dois do improvável Nottingham Forest de Brian Clough. O fim da era de ouro dos holandeses bateu certo com a saída de Cruyff para o Barcelona, em 1973, onde ficou durante cinco temporadas e conquistou um campeonato e uma Taça do Rei. Regressou a Amesterdão em 1981, para juntar mais dois campeonatos ao palmarés até terminar a carreira no rival Feyenoord.

O Benfica, por outro lado, andou alheado das grandes decisões europeias até 1988, quando voltou a chegar a uma final da Taça dos Clubes Campeões Europeus para ver Veloso falhar a sexta grande penalidade e perder com o PSV Eindhoven em Estugarda. Dois anos depois, em 1990, Sven-Göran Eriksson levou Diamantino, Valdo e Magnussen até à final com o AC Milan de Rijkaard, van Basten e Gullit e voltaram a ser holandeses a deixar os encarnados com um sabor amargo na boca. Mais recentemente, em dois anos consecutivos, Chelsea e Sevilha bateram o Benfica na final da Liga Europa e continuam a perpetuar a maldição do húngaro Bélla Guttmann.

Esta terça-feira, quase 50 anos depois daquela eliminatória decidida a três mãos e da passagem à final garantida pelo golo solitário de Swart, a Johan Cruyff Arena volta a receber um clássico do futebol europeu. Mesmo com alguns particulares pelo meio, todos já durante o século XXI, a verdade é que este é mesmo o primeiro jogo oficial entre Ajax e Benfica desde as meias-finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus de 1971/72. Será que André Almeida, Pizzi e Jonas vão finalmente vingar Torres, Eusébio, Coluna e Nené?