Vichai Srivaddhanaprabha é descrito como alguém reservado e generoso mas há questões que muitas vezes só se pensam quando a resposta deixa de estar disponível. É isso que se percebe no perfil do tailandês traçado pelo The Telegraph. “Os novos donos do Leicester compraram o clube em 2010, apesar de nunca ter sido muito claro o porquê”, destaca. Até esse ano, a única nota que havia do interesse do empresário no futebol passava pelo camarote que tinha na bancada oeste de Stamford Bridge, em 2006, quando os blues tinham ganho nova vida com José Mourinho – a box 8, claro, por ser um número de sorte na cultura chinesa. Daí que o maior de todos os feitos nos oito anos de liderança dos foxes tenha sido outro que não o impossível título em 2016: apesar de não falar muito bem inglês, conseguiu perceber como ninguém a cultura de um clube de futebol.

Ao contrário de outros, não teve a tentação de derrubar essa cultura. Não impôs regras ou normas que chocassem com aquilo a que o Leicester estava habituado. Em alguns momentos, conseguiu até reforçar essa mesma cultura. E é por isso que, nas últimas horas, milhares de pessoas têm passado pelo recinto em lágrimas, numa última homenagem ao tailandês (apesar de só ter havido confirmação oficial de que estava no aparelho que se despenhou mais de 24 horas depois do acidente) que, entre alguns costumes excêntricos que também tinha, era o bilionário mais mundano da Premier League.

Mesmo sem confirmação oficial da morte, adeptos já fazem homenagem ao dono do Leicester

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Nascido em abril de 1958, abriu a primeira loja duty free pouco depois dos 30. Era pequena, era honesta. Hoje, a King Power Duty Free é um verdadeiro império. Três décadas depois, continua a ser um exemplo. Vichai Srivaddhanaprabha, o quinto tailandês mais rico da atualidade e 388.º em todo o mundo, criara um negócio de biliões de euros sem nunca perder o sentido da proximidade com os funcionários. Era uma estrutura megalómana gerida com espírito familiar, um pouco à semelhança do que foi fazendo no Leicester. Para alguns, o segredo do sucesso desportivo (e empresarial) passava também por aí.

Milhares de adeptos do Leicester já passaram pelo estádio este domingo, numa homenagem ao proprietário (BEN STANSALL/AFP/Getty Images)

Em 2010, quando comprou o clube a Milan Mandaric por cerca de 43 milhões de euros tendo já nas camisolas o patrocínio da sua King Power Duty Free, nomeou o filho Aiyawatt como vice-presidente. Nos treinos, nos jogos ou nas cerimónias dos foxes, gostava sempre de contar com a família por perto. Casado e com quatro filhos, tinha por hábito chegar e abandonar o estádio de helicóptero. Aquilo que em Portugal seria uma grande surpresa tornara-se a coisa mais normal do mundo para os adeptos da equipa, que até estranhavam se a aeronave não estivesse presente. A mesma aeronave que, este sábado, caiu e ficou transformada numa bola de fogo pouco depois de levantar, numa zona de parques de estacionamento anexos ao recinto.

Srivaddhanaprabha era o presidente que, quando fazia anos, distribuía cerveja, cachorros e donuts pelos adeptos que passassem pelo King Power Stadium (em 2018, na comemoração dos 60 anos, inovou mais um pouco com pequenas medalhas de chocolate com papel dourado). Era o presidente que, por ser um convicto budista, levava monges consigo para poderem distribuir a força positiva necessária no campo e aos jogadores para que tudo corresse bem. Era o presidente que, após o triunfo na Premier League de 2016, distribuiu um BMW i8 azul por todos os atletas, num valor acima dos 100 mil euros cada. Era o presidente que, por ser assim, revolucionou um clube e uma cidade com 300 mil habitantes nos East Midlands, mesmo sendo público que o seu grande desporto era o polo – era jogador (e bom jogador), proprietário de uma equipa (Bangkok VR Polo Club) e grande impulsionador da Associação de Polo da Tailândia. Era também um apaixonado pelas corridas de cavalos.

A aventura do Leicester também vem dos monges?

Em 2010/11, por pouco não se cruzou com Paulo Sousa, que saíra do clube em outubro. Assim, o primeiro treinador com quem trabalhou foi outro conhecido do futebol português, esta semana confirmado como novo selecionador das Filipinas: Sven-Goran Eriksson. Andy King era a grande figura de um conjunto com três jogadores nacionais – o guarda-redes Ricardo (que entrou a meio da temporada, por se encontrar então como jogador livre), o central Miguel Vítor e o defesa/médio Moreno – que terminou a temporada no Championship, o segundo escalão de Inglaterra, na décima posição (Yakubu e Jeffrey Bruma, então cedidos por Everton e Chelsea, respetivamente, eram outros nomes sonantes).

Vichai Srivaddhanaprabha com Nigel Pearson na festa da subida do Leicester à Premier League, em 2014 (Matthew Lewis/Getty Images)

Na primeira época desde início, o primeiro “dilema”. O tailandês podia não ser um perito em futebol mas, por uma questão de princípio, pensava uma, duas, dez vezes quando as decisões tinham impacto no clube. À 13.ª jornada, perante uma campanha fraca do Leicester que somara apenas 13 pontos, conversou com Sven-Goran Eriksson e chegou a acordo para rescindir contrato. Não pelos resultados em sim mas pela influência que o falhanço no ataque ao mercado tinha como reflexo na produção da equipa (apesar de ter sido o ano em que Kasper Schemichel foi contratado ao Leeds). Quase sem receitas de vendas, investiu 18 milhões de euros em contratações e acabou na nona posição já com Nigel Pearson no comando técnico. No ano seguinte, a base da equipa manteve-se, houve ligeiros reajustes e os foxes acabaram em sexto; em 2013/14, ainda com um investimento mais baixo (500 mil euros num jogador do Le Havre chamado… Mahrez), primeiro lugar e subida à Premier League.

Essa equipa já contava com alguns nomes como Kasper Schmeichel, Danny Drinkwater, Riyad Mahrez ou Jamie Vardy, a que se acrescentavam outros como Andy King (um símbolo por ter saído da formação do clube), Miquel ou o avançado Kevin Phillips. A eles juntaram-se contratações como Leonardo Ulloa, Kramaric – as duas grandes compras no Verão de 2014 –, Danny Simpson, Robert Huth, Albrighton e Esteban Cambiasso. As assistências aumentaram à dimensão do entusiasmo entre os adeptos e foi por isso que o 14.º lugar acabou por saber a pouco. No final da época, havia a perceção de que, para chegar a voos mais altos, poderia ter de haver uma troca no comando técnico. Pearson saiu mas, como acontecera no caso de Eriksson, a amizade ficou. E é por isso que o inglês está agora no OH Leuven, equipa da 2.ª Divisão da Bélgica… propriedade de Srivaddhanaprabha.

A conquista da Premier League em 2016 foi o grande momento no Leicester, festejado com a família (ADRIAN DENNIS/AFP/Getty Images)

Claudio Ranieri foi o homem do leme que se seguiu, naquele que seria o início de uma autêntica história de encantar que não é nada previsível que se volte a repetir a breve prazo: com um conjunto reforçado por N’Golo Kanté, Shinji Okazaki, Gökhan Inler ou Christian Fuchs (50 milhões gastos nesse Verão), o Leicester sagrou-se campeão com 81 pontos, mais dez do que o Arsenal, mais 11 do que o Tottenham e mais 15 do que os dois gigantes de Manchester, United e City. Se o tailandês já era uma figura querida pela forma de ser e por tudo aquilo que fizera com o clube, passou a partir de então a ser adorado e apoiado em qualquer decisão, como aquela que teve de tomar em fevereiro de 2017, quando a equipa continuava de forma perigosa perto dos lugares de despromoção após 100 milhões em reforços. As regras do futebol acabaram por prevalecer aos seus princípios de vida e, na decisão mais complicada que tomou nos foxes, dispensou o técnico campeão italiano, promovendo o adjunto Craig Shakespeare que levaria os ingleses aos quartos de final da Liga dos Campeões frente ao Atl. Madrid.

Dreams do come true. Leicester é campeão inglês

Shakespeare começou a temporada seguinte quase como uma forma de agradecimento pela tarefa hercúlea que superara com distinção mas não demorou a ser rendido pelo francês Claude Puel, atual treinador do Leicester. No plantel já não está o argelino ex-Sporting Islam Slimani, emprestado ao Fenerbahçe, mas continuam dois portugueses: Adrien Silva, antigo capitão leonino contratado no Verão de 2017 que só teve autorização para jogar a partir de janeiro por 14 segundos de atraso; e Ricardo Pereira, lateral ex-FC Porto que se transferiu depois do Mundial para o King Power Stadium. Kanté, Drinkwater e Mahzez também saíram mas em negócios milionários que pagavam o investimento feito desde 2010 na equipa.

Vichai Srivaddhanaprabha agradece apoio dos adeptos do Leicester no último jogo da temporada de 2017/18 (Ross Kinnaird/Getty Images)

Jon Rudkin, antigo diretor da Academia do Leicester hoje responsável pelo futebol, foi sempre uma das pessoas de confiança do bilionário, tal como Susan Whelan, diretora executiva do clube e da King Power. No entanto, foi na capacidade de transformar na prática o significado do último nome (Srivaddhanaprabha) que lhe foi concedido pelo rei da Tailândia em 2012 – nasceu e chegou ao futebol inglês ainda como Vichai Raksriaksorn –, e que significa “luz da glória progressiva”, que conseguiu o que todos achavam impossível (em 2015/16, o ano do título, as odds multiplicavam por 5.000 cada libra investida). Uma luz que iluminou também a cidade de Leicester, fosse em grandes projetos como os quase 2,5 milhões de euros doados para a construção de um hospital pediátrico, fosse em pequenas ações como os 25 mil euros que deu a um adepto que tinha um filho com uma doença rara. Foi também por isso que, apesar de falar mal inglês, conseguiu entrar como mais nenhum magnata nos corações do clube que adquiriu e foi reconhecido com o grau mais alto pela Universidade de Leicester.